Três poemas de Armando Martinelli
Armando Martinelli (1974) nasceu em São José dos Campos (SP). Jornalista, tem duas grandes paixões, a escrita, principalmente poesias e contos, e o cinema, com roteiros e produções de documentários. Publicou em algumas coletâneas e seu primeiro livro de poemas, Recital das Reticências, sai agora pela editora Urutau. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) na Unicamp, quando não está em alguma mostra de cinema pela cidade, ou recluso em seus escritos, pode ser encontrado com seus cães, que diariamente o levam para passear nos arredores do bairro em que vive, desde a infância, em Campinas (SP).
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A dança dos papéis mortos
Fantasmas não escolhem motivos
Rondam a madrugada
A deixa rotineira da distância ensolarada
Vai ver onde o casulo secou
Silêncio fracionado
Eles querem dançar sobre papeis mortos
Atirar rascunhos na enxurrada
Cuspir entranhas apodrecidas
Não chove há dois meses
Procura antever o furacão
Aposta em planos perfeitos
Perde o mistério
Perde o imprevisto
Sem perdão
Os vagabundos internos saltitam
Buscam entorpecer a vista
Pulverizar saídas
Acelerar a contramão
Vá modular o espelho
Destruir a imagem ao cardápio do dia
Reverter convenções
Cortejar a sublime paralisia
Vá reescrever a biografia
Remontar o quebra-cabeça
Decifrar abismos
Bocejar do apelo sensato
Escapar do batalhão de enfileirados
As pernas clamam
Vá e não volte
Desapareça
Sem hipocrisia
Caminha, caminha, caminha
Os vagabundos internos alucinam
Você só quer fugir
Viver em êxtase
Desconstruir fronteiras
Eliminar leituras
Zerar as baterias de atrocidades corriqueiras
Eles retornam
Insistem em recriar pesadelos
Aniquilar o cambaleio com trajes restritos
Amordaçar o amanhã
Sem qualquer vergonha
Sem qualquer direito
Pregam o novo
São os mesmos.
*
A invenção do instante
Mergulha no instinto sem asas
Escora a pilastra invisível
Projeção circular dos desejos
Vicioso imprevisto
Deixa antídotos de lado
Arranha com desdém o marasmo
Convulsão nas entranhas
Corpo eletrificado
Esquece os espinhos
Cruza campos feito índio
Demole barreiras antinaturais
Avista estrelas no fim da estrada
Não importam análises científicas
Teses do oriente
Lendas ancestrais
Não interessa a posição da lua
A fala da vidente
Teorias do além-mar
Intensidade distrai o tempo
Poeira cósmica a invocar novos ciclos
Energia rústica a desafiar enquadramentos
Se sonhos crescem no equilíbrio
E alçam voos na leveza
O sopro inicial
Sem reticências
É a beleza do delírio.
*
Desvios
Se apenas fosse certeza
De nada adiantaria atravessar o riacho
Consertar a gaveta emperrada da avó
Reler os contos de Cortázar
Observar o pássaro cruzar o quadro
Se apenas fosse concreto
De nada adiantaria subir na árvore da infância
Cambalear na calçada esburacada
Rever os Sonhos de Kurosawa
Passear com os cachorros no partir do dia
Se apenas fosse direto
De nada adiantaria rezar na cachoeira
Passar horas a vigiar o horizonte
Ouvir Bethânia no alarme matinal
Desorganizar as peças coloridas do armário
Se apenas fosse imperativo
De nada adiantaria plantar bananeira
Deslizar na poltrona de balanço
Declamar Drummond ao sobrinho
Esquentar o caldo de feijão de madrugada
Se apenas fosse cenário
Bastaria acordar e dormir
Refazer os mesmos trajetos
Reescrever a vida sem qualquer poesia
Perder o encanto de todos os desvios.