Três poemas de Rafael Mendes
Rafael Mendes (Rafael Alexandre Mendes Silva) nasceu em 1993, na cidade de São Paulo. Escreve poesia desde muito antes de se saber poeta, sendo que, na adolescência, já era uma paixão. Formado no campo das ciências sociais, mudou-se para Dublin na Irlanda em 2016, buscando aprender inglês. Em 2017, veio a primeiro coletânea, 32kg: uma antologia Brasil-Irlanda, pela editora Urutau. Em 2018, veio seu primeiro livro, Ensaio sobre o belo e o caos, também pela Urutau. No momento, trabalha numa coletânea em inglês e num novo livro em português.
***
juventude
interrompida a juventude em gaza, alepo
e também sanaá, não consideram esses
agravos — países distantes que rezam
ao deus desprovido de semblante
enganam-se! na baixada fluminense
no piauí, nos oito milhões de quadrados
quilômetros desta terra sem palmeiras e sabiás
também é suspensa a juventude
permanecem complacentes na fila do banco
compram prozac e xanax e cocaína
assistem fellini e leem balzac
mais uma criança morreu
felizes vão ao zoológico!
sentem-se menos animalescos diante da fera
antes liberdade, agora manilha, tomam sorvete
de limão ou milho ou nata — derretem-se
silenciada a juventude
volta-se o poeta ao poema:
não tem nojo dessas palavras vãs?
tudo é tolo se morrem crianças
detrás de qual verbo esconderá
sua impotência? poeta ditoso:
qual a validade da literatura
se outra criança acabou de morrer
teço esses quadrantes impotentes
não há recuo no tempo
somente espaço no perdão divino
para quem lembrasse da infância
*
biografia
antônio, 33 anos
antônio, 33 anos
(apenas nome e idade?)
antônio, 33 anos, trabalhador
(uma profissão com face?)
antônio, 33 anos, trabalhador, reside no bairro da Lapa
(quanta informação cabe num cep?)
antônio, 33 anos, trabalhador, residente da lapa, homem heterossexual
(a vida reduzida aos sexos?)
questões que nada dizem:
ser gente é matéria mais fina
e de maior alcance
tragam-no! pois na soleira do dia
este homem merece (e até mesmo necessita)
responder questões fundamentais
(o indivíduo precisa tomar posse de si)
antônio
emociona-se no clarão da manhã
quando formigas vão ao trabalho
no solo ainda revolvido pela chuva
antônio
aos domingos vai ao sebo
tocar lombadas de enciclopédias
que tratam de mundos
maiores que o seu
antônio
desistiu do amor e
suas apreensões:
seu estômago frágil
era dado a reviravoltas
antônio
enclausurou-se no convento
e saiu convicto de que
deus — se existe — era soberbo
antônio
nasceu nu
viveu plural
morreu humano
*
sobre orwell, porcos e igualdade
os porcos ostentam uma simetria entre
suas bocas e cus — rosáceos!
são varas sociedades igualitárias?
alimentam-se e defecam numa mesma
distância do solo — qual rufião poderá
denominar-se ou ser denominado
superior aos seus pares gorduchos?
pois, veja leitor:
napoleão tornara-se déspota devido
ao milagre evolutivo de seu bipedismo
ah, ah! eis a resposta do tolo:
extinto o caminhar em pé e tem-se
a sociedade análoga — o fim do capitalismo
rentista, da miséria distributiva
ah! a beleza do simplório, do reducionismo falho
riam — todos, unidos! — gargalhem da anedota
afinal, a verdade:
a miséria é um projeto de poder