Três poemas de Raquel Campos
Raquel Campos nasceu em Brasília, é doutora em literatura pela UnB, especialista em concretismo e na obra de Augusto de Campos. Já publicou seus textos no Suplemento Pernambuco, na revista Erratica, no jornal O Tranca Rua, entre outros.
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Bis
tenho 99 conflitos e a inabilidade de resolver o mundo
cheia de equações, números-primos e x da questão
abrigo minha casa na brisa doente da manhã
nasce outro dia em que meu relógio biológico
não se dá ao trabalho de nascer
tenho 40 manhãs pela manhã que me sucede
sofro de esquizofrenia precoce
assusto os fantasmas antes do amanhecer
tenho 17 canetas caso um dia alguma quebre
um secador, xampus, perversões e tabus
you can do it na curva da esquina
tenho 2 preocupações mas a outra eu me esqueci
dei-te um dêitico e você não me quis
doo como dói quem se machuca
parto sem enxergar minha cicatriz
o mundo cruel que nos destina o cartão postal
nunca perde a vez, sempre pede bis
tenho só 1 impressão de que
esse é meu final
*
Não biso
o tempo está me devorando por inteiro
nenhuma chance de fugir, eu pago o preço
me despedaço em cinquenta mil f(r)ases
se de todos os males eu for o primeiro
me avise sem tardar que eu desapareço
eu brindarei os raios da minha só vontade
jogo com os demônios e aposto todas as fichas
naquilo que eles não têm coragem
eu quero ver o oco eles querem um empate
dobro as apostas e percebo os blefes
vou dissecar minha sombra em plena viagem
ninguém sairá ileso dos confins
da minha própria maldade
acordei com o diabo ao meu lado
dei-lhe um bom dia e um trago
ofereci meu corpo e um cigarro
e apesar de tudo ainda paguei caro
depois dessa, não sou mais aquela
a quem cantam os pássaros
de mim se escondem as flores e
se assustam os palhaços
com minha magra figura infeliz
a mulher que por um triz
quis pular no próprio abismo
o diabo avançou e deu o aviso
a vida é kitsch e eles não bisam
*
A escolhida
Regurgitando palavras difíceis, falava a escolhida
Vomitando sua febre de conhecimento, falava sobre o dia:
– “um mais um é dois, você acredita?”
Petrificada com essa informação, em estado de choque
Aplaudi a confissão: “só você, só você, só você”
Escolhi o sarcasmo para lidar com os imbecis do dia
Deixo-os evacuarem suas tendências enciclopédicas em mim
Sorrio como quem sorri para a vida
E perdoo a mim mesma por escutar quem não deveria.
Mostraria ingratidão se falasse tudo o que penso
Seria expulsa da normalidade do planeta
Teria de seguir as prescrições alheias
Tomar remédios psicóticos, não comer de boca cheia
Fazer o dever de casa e ser boa para os pais
Família, trabalho, estudo e os demais
Sorrir para o bom dia, vacinar contra epidemias, ter boas maneiras
Twittar frases de efeito, rir dos problemas alheios e abraçar uma causa social
Me trancariam num lugar indócil: hospital, orfanato, lar de idosos
Me separariam de todo e qualquer livro
Proibiriam os escritos, os cadernos, meus distúrbios secretos:
Na certa a solidão.
Tanta solidão quanto sorrir para quem não compreende
Para quem não tenta e nem consente
Em se calar para privar os outros de si
Sorrio para a informação do dia, dois mais dois são quatro, quem diria?
E sigo com meu pesar modesto, passo a passo vou sozinha, nesse mundo decerto
Inteligente demais para que dê certo.