Um conto de André Alvez
André Alvez nasceu em Campo Grande-MS. Formado em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda pela UNISA-SP, é cronista do caderno B do jornal Correio do Estado, principal jornal diário de Campo Grande e do Estado de Mato Grosso do Sul, desde 2008. Participou da coletânea de Crônicas e Prosas Retratos Urbanos, lançada pela Editora Andross de São Paulo em 2007. É autor dos livros: No Pantanal não existe pinguim – Editora Agbook – São Paulo, 2011; O santo de cicatriz – Editora Life – Campo Grande-MS, 2013; Crônicas da cidade – Chiado Editora – Lisboa 2016; A Bruxa da Sapolândia – Chiado Editora – Lisboa 2017; Nossas Crônicas – Coletânea de crônicas, juntamente com as autoras Lucilene Machado, Raquel Naveira, Maria Adélia Menegazzo e Theresa Hilcar – Editora Life. Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores de MS – 2017 à 2019. Organizador da Mostra Cultural Professora Maria da Glória Sá Rosa – Morada dos Baís – 2017. Organizador da Palestra “O autor e sua obra” – Mário Prata – Dezembro de 2018. Palestrante do tema “Crônicas de Jornal” e “A bruxa da Sapolândia – a origem, a lenda, o livro” – 2019. Cronista do jornal eletrônico Campo Grande News. Redator e Diretor do Grupo Teatral Catropa – 2013 até a atualidade.
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ABERRAÇÃO
No Domingo de Ramos, logo após a procissão eu o encontrei escondido na saída do beco, o rosto repleto de sardas e encharcado de ranhos, a boca de quem morre de sede. Do vão da janela do meu quarto dava para ver os detalhes. Os cabelos loiros há muito não viam água e sabão, sujos, sebosos. Achei tudo tão nojento, mas uma febre segurou minhas mãos quando tentei puxar a cortina. Então ele me olhou, como se ouvisse um chamado, seus olhos de lobo em noite sem luar se encaixaram perfeitamente nos meus e de nada adiantou a minha cara fechada, o meu gesto rude de alisar os punhos, nada disso o fez recuar. Quando finalmente consegui fechar a janela e a procissão se dissipava lá embaixo, notei um último olhar: já não eram os olhos de lobo em noite sem luar, era uma espécie de mistura entre a meiguice e a sedução. Senti meu sangue gelar. Se o visse novamente, desceria até ele para tirar satisfações. Um murro bem dado talvez resolvesse.
A fome era tanta que já não sentia sede. No beco, todos correram para os vãos quando aquela gente passou com um galho de árvore nas mãos. Talvez eu pudesse comer aquela rama. Estiquei os braços pedindo ajuda, algo para comer, mas eles estavam mesmo interessados na oração. “O pão nosso de cada dia”, disseram, e eu pensei que também tivesse direito a um pedaço do pão. Mas me ignoraram. Com o olhar diziam palavras: homem precisa ganhar o próprio sustento, mas eu era apenas um menino fraco e abandonado. De repente uma luz escapou do alto do prédio em frente, a figura magra, os bigodes finos e a boca redonda de um tanto que imaginei um desenho feito à mão. Ele me encarou e decidi não me esconder. Olhei de volta, lancei um pensamento, quem é você, por que me encara? Ficamos assim por vários minutos, nos olhando, calados e ao mesmo tempo gritando em pensamento. No final, sem motivo algum, ele fez um gesto de enfezo e não soube responder. Apenas sorri e voltei para a escuridão do beco levando comigo o estômago rugindo de fome.
Acordei cedo e fiquei vigiando a saída do beco, a cortina entreaberta, apenas um vão deixando passar a luz do dia cinza. Ele custou a aparecer. Quando surgiu, imediatamente olhou para o alto e me procurou. Minhas mãos novamente sentiram um peso, como se algemas me prendessem. Ele conseguiu me enxergar mesmo assim. Sorriu como os olhos me preenchendo e o ódio me invadiu. Moleque ordinário, como se atreve? Ah, se eu pudesse descer e lhe dar uma surra. Mas as chaves estão longe e o dia promete chuva. Melhor me recolher. Algumas pessoas estão tossindo, outras com os olhos vermelhos, tão intensos, tão temíveis. Recuei alguns passos até sentir meu corpo desabar. Por que me olha intensamente. Chego a sentir o cheiro da carne podre, o suor impregnado por todo o corpo. Nojo, nojo. Cubro minhas mãos e os meus braços de álcool gel, meus pelos se esticam, tudo limpo diante dos meus olhos, mas a sujeira está na minha mente e é impossível limpá-la.
Acordei tarde e todos já haviam partido. O beco é mais triste na solidão. Alguém deixou um resto de pão. O movimento da rua estava fraco quando resolvi sair em busca da sobrevivência. Eles agora usam máscaras e apenas os olhos ficam de fora, aqueles mesmos olhos de antes, que fingiam não nos ver. Uma luz atrás da cortina. Era ele, me espreitando, como se estivesse há muito tempo naquele exato canto do quarto, atrás da cortina, aguardando o momento que eu sairia, como se fosse o caçador e eu a caça. Sorri para ele, mostrei o pão, uma migalha me fazendo caminhar; minhas mãos ligeiramente trêmulas e o corpo dolorido, consumido pela febre. Ele me encarou brevemente, mas logo transformou o rosto numa rudeza insana, tão cruel, como se eu o tivesse ofendido. Na esquina, encontrei o bando e passeamos pelas ruas pedindo ajuda. As portas estão fechadas e os passos dissipados. Um carro passa e para no sinal. Oferecem comida e imaginamos o recheio feito de veneno. Seria a solução simples, eliminar o problema. Morrer de fome ou envenenado? A fome dói muito mais. Devoramos tudo em poucos segundos. O tempo todo desse dia longo, a imagem do homem magro atrás da janela não abandonou o meu pensamento um segundo sequer.. Hoje acordei mais cedo do que de costume. O horizonte chamando o sol num começo de luzes azul do céu. Abri uma garrafa de vinho. Quanto tempo até que o beco ganhasse vida. Eu precisava, tinha necessidade de ver novamente a aberração. Bebi um gole e juntei nos cantos da boca. Anestesia, prazer, muito prazer. Suspirei o ar do quarto inteiro. Senti vontade de fumar. Enchi o cachimbo do fumo predileto, acendi com o palito do fósforo que queimou até a metade, retirando do pensamento ações que não eram minhas, se eram, são aquelas que reprimo desde sempre. Outro gole de vinho, a hora que não passa, o sol que não nasce no horizonte. Será hoje o fim que andam dizendo? Uma tosse seca me consome, será um sintoma ou apenas pigarro? A aberração ainda dorme. Outra tragada, pensamentos de beira do abismo, o fim da existência seria uma solução, não mais me preocuparia com as vergonhas do mundo, tampouco notaria a aberração que se exibe em cabeça pontiaguda, dos cabelos buscando o sol no sopro do vento, escondendo as sardas com as costas das mãos, olhando para mim com olhos ardentes, como alguém tentando despertar paixões. Onde foi que escondi o taco de beisebol? Embaixo do sofá. É forte o suficiente. Só assim para acabar com a indecência, só assim para permitir restar no mundo um pouco de pureza da alma. Não suporto mais, não suporto. Desço até o andar de baixo, deixo a porta entreaberta e me escondo atrás dela. O tempo passa, ouço passos, depois o silêncio, ele não vem, deve me procurar no vão da janela do meu quarto. Sou estúpido, estúpido! Claro, é lá que ele me busca e me encontra. O litro de vinho já está pela metade e o cachimbo larguei num canto do quarto. Fecho os dedos em punhos, ah se eu pudesse pegar aquele rosto em torno dos meus braços, se pudesse socar até sangrar aquele sorriso, até que a aberração não mais respirasse, encharcado pelo próprio sangue, sem respirar, findo o sorriso irônico, a boca seca após o último suspiro, fim, nunca mais a aberração.
Acordei com um rato andando no meu rosto. O corpo dolorido, preciso arranjar um colchão. Levantei espreguiçando o corpo até estalar. Fome, sede, um resto de sono. Se pudesse, ficaria dormindo para sempre, porque a realidade é dolorida demais e nos sonhos, ao menos, eu posso falar sem sentir dor. A febre persiste, mas ainda consigo respirar sem dificuldade. O beco ainda guarda um resto de vida. Gritos na rua, os moleques indo e voltando com comida roubada. “Eles estão usando máscaras”, disseram e ninguém se assustou, não como da primeira vez, já estava se tornando comum. O ar que respiramos desprotegidos está repleto da morte invisível. Meus sapatos já não possuem solas. Eu ando e sinto a calçada roçando a sola dos meus pés. A morte também está no chão. Um dia isso tudo muda. Ou não. Caminho até a saída do beco e a primeira ação, até mesmo involuntária, é olhar para cima, para o quinto andar do prédio em frente. Ele não está lá e a janela está fechada, como está fechado o caminho e das vozes roucas despencam perdigotos assassinos. A porta do andar de baixo está aberta, estranhamente aberta, e eu o imagino no primeiro piso, erguendo uma taça de vinho, os olhos brilhantes, uma oferta de brinde, a taça nas mãos dele, contrastando com um resto de pão embolorado nas minhas. Mas não consigo entrar, falta coragem e ar nos pulmões. Encosto o corpo e fico aguardando por um bom tempo, até a janela do andar de cima se abrir e sim, lá está ele, em pé, buscando a minha figura. Faço gestos erguendo o punho e esmagando o pão. Ele responde num rosto enfezado, como se fosse um desafio que nunca pensei propor. Abro um sorriso em busca de paz e ele devolve num gesto de rosto amargo, destacando as sobrancelhas fechadas em arco inverso, para baixo, a extrema expressão da guerra que nunca propus, nem desejei.
Mais uma noite mal dormida. Preciso resolver isso. O rosto da aberração invade o meu sonho, está lá, desafiando os meus sentidos. Quero matá-lo, mas que vida pode existir depois disso? Os homens usam máscara, a despeito da febre que nos assola. Não há armas, é preciso o cuidado do isolamento. Mas como isolar ainda mais aquele que já não tem vida? A morte está no céu, no chão, nas paredes. Os mendigos e o povo dos becos disso não sabem, prosseguem em procissão, sem rumos, como um desafio de sobrevivência. Eu só almejo com as vistas a minha cruel aberração. Sim, ele está entre eles e novamente me oferece restos de comida. São poucos os degraus até dar com a rua. Amanhã, sem falta, assim que o sol raiar, darei vida a trechos do poema que atormenta a minha mente. “Muita seriedade e pouco riso, me portarei como uma espada, na selva escura e desvairada”. Venha, aberração, eu te espero, eu findo os seus olhares, a sua insinuação despropositada, a minha honra que derramarei com todo vigor assim que as primeiras luzes do sol iluminarem nossos atormentados rostos. Amanhã, nenhum dia a mais, se um dia a mais ainda houver.
Agora todos os homens usam máscaras, menos a minha atração no andar superior do edifício em frente. Ele não, mantém o rosto aberto, como se quisesse se mostrar para mim por inteiro, sem disfarces, apenas um desejo louco escondido, desnudado quando olha para mim. Eu sou a sua louca espera, o seu mais embaraçado desejo. O povo do beco foi o último a ceder, já usam luvas e máscaras, de repente todos se foram, os poucos que restam caminham rápido rumo à montanha, como se na montanha não houvesse vírus e o solo já não possuísse o mesmo veneno, vão sem olhar, sem se despedir, ajeitando as máscaras no rosto, mal olham para os lados, desconsideram a desesperadora incerteza em volta dos prédios de concreto. Única saída. Os carros passam, fechados como antes, mas podemos ver vultos lá dentro, as mãos que seguram o volante, os rostos que só olham para frente, o mesmo desespero nosso ao acordar e perceber que no beco não tem comida, não tem água, só resta o nosso próprio amparo, esse mesmo que agora se esvai. Vírus, gripe, pandemia, ouvimos alguns sussurros depois transformados em gritos, mas nós, que sempre vivemos dependendo de um sopro para sobreviver, nós podíamos até ensiná-los a sobreviver com os restos, com os sopros, com quase nada. Cai uma chuva fininha de fim de dia na rua deserta. A luz do beco já está quase apagada. A janela se fecha e eu aguardo. Ele desce, trazendo entre as mãos um taco de basebol. Olha para os lados, um de cada vez, com calma, até ter certeza que podia atravessar a rua sem ser importunado. Os brilhos dos seus olhos procuram os meus, perdidos no fundo do beco. Cinco ou seis meninos ainda estavam escondidos entre as latas de lixo. Olham para ele e depois para mim. Assossegam, se calam, somente os meus passos assombram o silêncio, até ficar diante dele, que fecha os punhos e me lançam olhares de ódios, bufa até espumar nos cantos da boca, a fera saindo de dentro, sem chances para retornos.
Caminhamos até o meio da rua.
Ele larga o taco de basebol que rola rua abaixo fazendo o som do atrito da madeira com o assoalho da rua, uma música, a nossa música. Paramos, olhamos fundo um para o outro.
Não há movimento na rua, o vírus apagou tudo. Ele vai me matar? Fecho os olhos e uma sensação de paz me invade. Ele me abraça, seus dedos percorrem meu corpo por inteiro, suspiro, busco a luz, ergo o rosto. Então ele me beija, sua língua me penetra, suga com força, até sentir meu extremo gosto, os últimos carros passam, com gente mascarada no seu interior, buscando a salvação sem nos perceber, sem sentir que para nós a salvação está na saliva que engolimos, um curando o outro, enquanto a nossa boca aberta permite o desfile das línguas, nos lugares mais misteriosos da alma, no nosso desembaraço, na nossa fiel entrega, conduzidos pelo amor que surgiu desde o primeiro olhar.
Chove com vento, a morte invisível se espalha, molhando nossos corpos.
Outro beijo, depois a entrega, o amor total, na porta do beco, ele dentro de mim, com força, com jeito, com amor, até o breve fim dos tempos que se aproxima.