Um conto de Éric Graciano Gaúna
Éric Graciano Gaúna é formado em Letras (Português e Alemão) pela Universidade de São Paulo. É estudante, professor de idiomas, músico e tradutor. É também quase um escritor. Quase.
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No pequeno império dos pequenos deveres
Há algo que devo. Em geral, faço o que devo, também em meu trabalho, e às vezes me exaspero. E ainda que faça tudo o que por ora devo, fica uma lacuna. Faço o que efetivamente devo, mas nem sempre o que, de fato, deveria — algo da ordem do menor, ainda que preocupante a todo sujeito atento. A sensação é como um balão esvaziando por algum invisível furo. Se ouve o chiado, o incômodo apito, e se segura o balão, olhando, escrutinando. Se tateia, passa a mão. Leva o balão ao ouvido, busca o vazamento, a anomalia. Passa rasante e devagar a pele na fina pele do balão, esperando o ínfimo suspiro tocar-lhe a face.
Mas, em geral, devo ir lá, e vou. Devo fazer tal, e faço. Devo ficar aqui, diligentemente fico. Devo fazer o telefonema correto, à pessoa devida, e por fim, sucesso. Devo pagar alguma coisa e — salvo eventuais apuros — pago. Não me condiz permitir ser conduzido pelo débito ao outro. Posso não ser grande, mas não me envergonho do comedido e árduo trabalho da formiga, do cidadão, nem dos frutos de um propósito e um senso honesto de dever e trabalho pela paz. Tampouco me encastelo em uma agenda sem fim, escapando à vida. Atendo ao que se espera de mim e também posso conservar um zelo, um sentido de participação, minha face humana. E se devo dizer a palavra ideal num momento, convém fazê-lo e estou à altura, seja por profissão, seja por ocasião desportiva, e assim também agrado ou contribuo, então o faço. Os deveres da cidadania — dirigindo-me, espero, a leitor que preza a consciência cidadã, como eu — dispensam comentários. Não sou da estirpe dos filantropos ou reivindico qualquer insígnia de altivez ilustrada, mas cuido que conserve algum progresso da razão em meu espírito. Sem embargo, reitero que são vários os pequenos deveres, sempre numerosos e à espreita. Há os maiores, claros, mas as dificuldades reais surgem com os pequenos, e disso é que se trata o que segue. Pequenas coisas que podem permanecer inofensivas ou podem surpreender ao tornarem-se catalisadoras de falibilidade e tragédia.
Nem sempre devo fazer muito, o que aumenta esse terreno incerto, ainda que não resulte daí grande desordem ou mesmo grande lascívia, apenas um saber que, por vezes, decai a aspecto vago, torna-se uma pequena nuvem negra no límpido horizonte. É aí que pressinto a tribulação a caminho e já sei então: precisamente aquilo que de fato deveria fazer, exatamente neste momento, se apresenta com atraso, escapa à minha compreensão, escapa aos deveres que costumam caber-me, funda este meu singular traço de inépcia. É sempre precisamente isso que não faço. Deve, sem dúvida, acontecer com os demais. Só descubro quando alguma miudeza de dever, abafado pelo próprio caminhar natural das coisas, torna-se dívida, dúvida, confusão, e, para outros, eventuais dividendos, e aí, tarde demais; é um salto muito maior que o próprio tal dever, que pula como um gato do trampolim de minha negligência: do futuro do pretérito ao pequeno império do pretérito imperfeito. Às vezes, é questão mesmo de segundo — e garanto não se tratar de atenção. Sou veloz. Falo de coisa pequena mesmo.
Quando mandam que eu entregue alguma tarefa, eu o faço. Que assine ali, idem. Sou zeloso, tanto como é esperado dos demais. Quando tenho de chegar ali, chego mesmo antes, ainda que nem sempre. Mas mesmo quando chego antes, ainda assim, este minúsculo algo que importa mais chega, em verdade, antes de mim: discretamente, microbiótico, basicamente inconsciente, como eu, de seu futuro estrago. Na tentativa de alcançá-lo é que acabo nunca terminando de chegar. Permaneço chegando e atrasado, mesmo que o relógio esteja em ordem. Não é possível que não se enxergue aqui um absurdo, mesmo que pequeno — e de novo. Seja ele particular, de minha pessoa, ou não. Existo, então meu absurdo haverá de existir, ainda que apenas de novo e em mínimas dimensões; ainda que minha angústia seja só um apud, uma nota de rodapé. A vastidão do futuro com seus cabelos enganchados em alguma secreta mola miúda, comprimida, exposta à umidade, ao tempo e à alguma pontual inépcia.
A impressão é que não é de hoje, mas o presente vai assim tomando trejeito de futuro do pretérito. Sei que soa ainda abstrato, mas comprometo-me a chegar às vias de fato. Certo preâmbulo deve conter, em suma, seus aspectos mais conceituais, o que pode gerar alguma ausência de referencialidade, também porque falo de algo tão próprio de minha pessoa, mesmo em seus traços mais universais. Procurarei apelar ao mais sensível do que aos planos ideias, poupar as metáforas. Às vezes, me vem a sensação de que, mesmo quando tudo corre como normalmente deveria — o que é da ordem do incomum, para não ser assim tão normativo, não se trata disso — em todo seu esplendor e obviedade, ainda faltasse, talvez, um saltinho de alguns centímetros para lá, e estaria tudo salvaguardado, talvez até antecipasse algum desastre ou gerasse até mesmo uma novidade, uma compreensão mínima que chega a tempo. Nem mesmo algo que exige um esforço, sequer que se vista adequadamente ou se respire fundo antes do gesto.
Veja, em germe um pequeno gesto a refletir um simples, feliz e pontual entendimento, nada radical ou pioneiro, mas que, ao fracassar, pode sempre tornar-se algo de dimensões imprevisíveis. Estourar uma havaiana aos pés enquanto sobe uma escada molhada. Subir escadas molhadas sempre oferece perigo, mas subir calçado e com cuidado, basicamente não. Mas todos sabemos que havaianas estouram. Pior ainda se o passo é em falso. Em verdade, quem se atenta aos desgastes das tiras ou solas pode prever, claro. Mas aí, no máximo, cai prevendo. O tombo pode causar uma morte, e quem culparia a vítima? E a escada? E a havaiana? A água? É sempre algo da vasta ordem do ínfimo, uma semente de jequitibá, Anima vagula, blandula. Pequena alma que se decuplica, desfigura, nos faz temer.
Penso mesmo que não careço derrubar paredes, mas apenas de romper alguma fina membrana, e é nela que, com alguma melancolia, permaneço viscosamente preso. Assim também é quando espreita o menor dos agravos. Veja, sou esforçado. O que falta é outra coisa. Às vezes, talvez só uma mudança de postura. Ajustar a espinha dorsal, acrescentar algumas páginas ao dia, descruzar um braço, acordar uma hora mais cedo, um pouco mais de zelo, mindfulness, conservar a altivez do desinteresse ao máximo do necessário escrúpulo. Mais atenção, não. Ter o quintal reformado, se der. Mas, ainda assim, difícil saber se bastará.
Outro dia, foi mesmo necessário apenas uma resposta, um movimento simplesmente provisório (percebido em boa hora), para obter uma resolução que, dali em diante, em mais nada precisou resultar, algo que se pôde mesmo em seguida esquecer. Afirmo que para coisas assim, pequenas e terríveis, a melhor das soluções é a que se dissolve, que restitui. A medida sequer exigia que se constituísse hábito, ainda que exigisse alguma idéia da coisa — talvez, aos mais perdidos, alguma instrução — e sua complexidade não se explicava pelo ato em si, que em geral, em tais casos, é ato simples, pontual, por vezes só um gesto, mas pelo repetido desafio de toda uma vida e para a vida toda que é estar pronto e cumprir com aquele dever que, com frequência, não oferece tempo hábil e nem tamanho para deixar-se conhecer, principalmente estes tais pequeninos (às vezes por descuido mesmo, às vezes porque é simplesmente impossível). De toda forma, trata-se daquilo que deve ser devidamente compreendido no momento igualmente devido — ou seja, há de se compreender qual é o antes do durante enquanto o durante é nascente, e assim o antes não tropeça no agora e nem fica aí, cambaleando por cima do depois como um bêbado, como uma criança cansada, envergonhando o espírito. E aí, já passou. Como disse o poeta, “quando parei para pensar, todos os pensamentos já haviam acontecido”. Por vezes ocorre assim e uma pequena questão que parecia clara, um gesto quase reflexo, que até costuma ser eficaz, exige um quase incógnito detalhe a mais em sua coreografia ou fracassa e permanece sem solução por anos, envolvido em um sofrimento que se arrasta e cresce, ou mesmo destrói por completo. O resultado pode ser mesmo bruto e rápido, como um tombo na escada.
É mesmo comum que tantas coisas estejam por um fio. E só assim, com a prontidão, a ordem, a calma, a razão e a disposição que se evita o cataclismo ou se evita, ao menos, que ele se sinta provocado, convocado, conjurado, chamado à baila. Que Deus me perdoe a palavra, mas é assim. Ainda que se faça tudo, é assim, vencido na lacuna ou sobra quase lexical que antecede. Mesmo um atleta pode levar um improvável, mas possível tombo e então nec ut soles dabis iocos. Até grandes povos inteiros caem. Veja os Rapa Nui. Viviam em uma gloriosa ilha no Oceano Pacífico, quase tão longe das costas da América quanto o Brasil está do Senegal, e mais longe ainda da Austrália ou do Japão do que da América. Após algum período de bonança e glórias — tinham mesmo uma escrita sofisticada, que se conservou pelos séculos sem que alguém já tenha realmente conseguido ler o que escreveram —, já um tanto esquecidos de quem eram e do que os levou até ali, puseram imensas cabeças de pedra à praia para ajudá-los a lembrar, e morreram. O povo extinguiu-se. Teriam sido colonizados, mesmo tão longe de tudo? Teriam seus escritos se tornado ilegíveis a eles mesmos? As cabeças totêmicas seguem lá, traumatizadas, tentando se lembrar de alguma coisa. Nem o silêncio ajuda.
Um abanar de mãos, uma hecatombe. Ou então, um computador enlouquece e destrói, com um cálculo obscuro, longe dos olhos mais atentos, a bolsa de valores de algum país. É fatal. É a vida. É a natureza. Simplesmente virá. Sempre veio. Sempre foi. O primeiro descuido que eu percebo em mim, já sinto o calafrio da desconhecida catástrofe e os frios dentinhos desses necromantes em minha nuca.
Os desastres do futuro estão a ouvir cada um de nossos passos, e é isso que me estremece: sua gênese nas menores coisas, na imanente e minúscula contingência, essa excrescência da eternidade em sua troca de fluídos. Outros de nós, inquestionavelmente, são motivados, em alguma medida, pelas mesmas forças e temores. Ao menos um pouco. Não é necessário reiterar que tratamos aqui de coisa pequena. Outro dia ouvi meu vizinho dizer que, a partir de hoje, ele praticará a yoga e o amor, e encontrará a paz interior. Ele também ouve, sem dúvida, de algum lugar, o silvo de um balão. Outra coisa é que não seria. É um louvável salto, verdade, e aos que buscam paz, talvez seja a que resta, a quem restará, pendurada num fio de cabelo.
Devo enfatizar aqui a impossibilidade de não ouvir o que dizem meus vizinhos, em árdua luta com os menores de seus deveres, principalmente quando meditam. Seus mantras causam, estou convencido, leves abalos sísmicos em alguma viga em Perdizes, ou no solo tranquilo a sustentar as crianças que brincam em suas praças, diante de históricos edifícios públicos e batalhões. Uma vizinha uma vez gritou livre de sua janela, e juro que vi uma nuvem dividir-se em duas no alaranjado céu do entardecer. Ouvimos todos as nossas intrigas involuntariamente, mesmo as constrangedoras — todas voltadas ao telos da paz, revolvidas por esses pequenos deveres, silenciosos e irritantemente simpáticos, como mosquitos-de-banheiro, esses minúsculos e inconscientes profetas do ralo. Ainda que atirassem em meu bairro, como num horripilante pesadelo que tive, toneladas de almofadas por sobre as casas, eu os ouviria gemendo em seus colchões. São, ainda assim, estranhos, mas de tão familiares que me são, posso odiá-los sem muito compromisso, com propriedade e em paz, de meu próprio lavatório.
Nós às vezes devemos tanto, fazemos tanto, buscamos a correção, preocupamo-nos com a segurança, e aquilo que deveríamos mesmo, essa rebarba da verdade, desata sobre a vida como a espada içada por um fio de cabelo invisível, esticado diante do sol de ouro breve. E então? Então nos nega a vida e “não mais nos dás logojogos”. Para o berço do império civilizatório, aliás, dívida pequena ou grande, é sempre de todo modo ofensa: o pão nosso de cada dia nos dai hoje, et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris. Amen. Essa coisa que se deve mesmo antes que ela de fato exista, esse fantasma assassino do futuro, esse sopro que escapa do amanhã e, tornando-se tempestade, varre a eventual poeira de nossas esperanças, não é sem querer que ele vem. Vem por nossa culpa. Vem pelo débito em negligência; pequeno ou maior, a ofensa. Ainda que escape mesmo à vigília mais zelosa, como a eventual bolha que surge no fino vitral e o condenará. Afinal, às vezes é só um saltinho mesmo que falta, mas compreender fantasmas do futuro que atacam no presente é esporte de quem acredita em fantasma do futuro do pretérito e, por zelo, acaba dando ainda um saltinho. Esporte zeloso. Nós, obviamente, já não acreditamos verdadeiramente em fantasma algum, e o termo é provisório, confesso, visto o frequente caráter fugidio de tais coisas pequenas até que se tornem grandes problemas. Nos resta então escrutinar e acreditar nos saltos que corrijam esses pequeninos deveres, esses entes quase inexistentes, que às vezes podem mesmo sumir com alguma decisão e um gesto mais vigoroso da razão.
Eu, antes de partir à tentativa de explicar-me de modo menos abstrato, particularmente, espero ser desculpado, tanto pelo breve delírio fantasmagórico, quanto pelos deveres sem rumo aqui expostos, mas estou buscando ser didático a respeito da complexidade de minha situação e colocar em primeiro lugar o cerne conceitual, explicando em detalhes concretos adiante, ainda que possa me equivocar acerca de tal questão central, como qualquer um. Aliás, sou generoso, e estendo minha esperança aos demais, que desconheço, mas que merecem ser desculpados também. São, sem dúvida, ao menos alguns, também muito esforçados, como eu; também aos que merecem menos, visto que compõem maioria, e a vida parece se complicar demais a cada ausência muito ampla de desculpas — ao menos as que carecem de documentação e formalização. Bem, a esperança da desculpa é o que resta, pelo visto. Mas descalabro maior é aquilo pelo qual, talvez, nem precisamos ou mesmo poderíamos ser propriamente desculpados, ou coisas às quais não cabem, exatamente, desculpar ou absolver. Coisa pequena mesmo, mas que contém o germe do absurdo. No fim, às vezes o que mata é o primeiro, ou o último cigarro, ou coisa assim. Apenas de exemplo: é possível que, em alguns lugares, o cigarro mate mais que a violência. Em alguns países do mundo, ao menos desde os anos 60, o que mata mesmo é o racha-peito, ao lado de outros hábitos e coisas falazes: o telefone de ouvido e, hoje, mais que nunca, o plim plim plim. Em geral, esses pequenos deveres, os saltinhos negligenciados diante de abismos tão estreitos, o tipo furtivo de vão que não permite identificar a tempo se dar um passo é melhor que dar um pulo. O descarrilhar do trem no diminuto, quase inofensivo caroço no trilho.
A título de ilustração, para melhor compreender essas pequenas coisas, pequenas dívidas com nossa capacidade de antevisão, apresentarei uns poucos exemplos. A partir de agora, deixarei de lado as abstrações e buscarei constatá-las em casos concretos. Peço aqui a paciência e a confiança na veracidade dos relatos e crédito de eventuais fontes, também jornalísticas, que são disponíveis e facilmente verificáveis. Algo da bibliografia será mencionado, mas sem recursos excessivos, apenas como eventual suporte, que por vezes dimensiona. Mesmo uma simples pesquisa na rede permite constatar os elementos e fatos principais, caso haja dúvidas do que se apresenta acerca dos ocorridos, e garanto a veracidade de cada um dos detalhes. Os casos em si, isolados, importam menos que o conceito que minha angústia explica, mas caem como luva para ilustrar, por mais absurdos que pareçam. Alguns datam do passado, nenhum tão longínquo, já que a maioria dos fatos abaixo e seus desenvolvimentos relevantes se deram recentemente, no século XXI. Buscarei relatar imparcialmente, ainda que seja difícil que a narrativa, tão abstrusa, não receba alguma coloração de interpretações que são mais minhas.
Acompanhe-me neste intermezzo reflexivo e fatual. Inicio com um caso muito curioso e autoexplicativo, ainda que, justamente pelas menores coisas, inconcluso. Não foram poucos os homens a conseguir, por exemplo, matar com uma caneta, por mais insultante e irrelevante que algo assim pareça à primeira vista. Há, no entanto, um caso assim que vitimou uma mulher, convulsionou a Europa e teve desdobramentos sérios em outros continentes. Não faço gracejo ou chiste. É sabido que até mesmo presidentes já quase foram vítimas de canetas, e por algum motivo, com mais frequência no Caribe. Não estou tentando ser cômico, mas demonstrar que algo assim é apenas um passo para além do patamar de coisas como havaianas que arrebentam em um momento inoportuno, ainda dentro dos limiares do reino tirânico do real, mesmo que mais à sua periferia e limiar. Verá como temos aqui o nosso interesse inicial. Pequenas coisas que podem causar maremotos. Pequenas trincas que partem uma barragem ao meio. Mas observemos se é mesmo o caso.
As instituições clínicas psiquiátricas, por exemplo, sabem o estrago que uma caneta pode fazer e por isso chegam mesmo a ter protocolos muito rígidos na lida com tais objetos. Seus funcionários e mais altos administradores, compreensivelmente, usam canetas sem grandes impedimentos, com algum protocolo que cada um cuida mais ou menos por conta própria, sem grandes necessidades de supervisão, em especial quando não estão em meio aos pacientes. Quando com eles, usam-na também, afinal, a caneta está na mão do funcionário, não do paciente. Menos impedimentos ainda se não estiverem em seu expediente ou nas imediações clínicas. Mas é dentre os pacientes que as regras de não permitir uma única caneta ao alcance são rigorosamente observadas. Um paciente encontrado com uma caneta será imediatamente melhor investigado, isolado, terá suas imediações escrutinadas e terá de dar boas explicações. Confiando, claro, que falamos das mais corretas e exemplares instituições desse tipo. Nem todas têm tanto rigor. Ainda assim, imprevisivelmente, alguns homens conseguem o quase impossível, que é matar alguém com uma caneta, a ponto de pensarmos haver uma rede sólida e ordenada de outras pessoas que tornaram sua ação possível ou que tenham algum tipo de conexão com espíritos malignos. Constata-se em seguida sempre algo mais realista, ainda que talvez, às vezes, meio confuso e mais impressionante do que a imaginação concebe.
Se falo de atentado à vida com uma caneta, não preciso dizer que não estou me referindo aqui metaforicamente a “maus literatos”. Não faço apelos baratos e não cometeria esse atentado contra um solidário leitor. Falo de atos e crimes tão selvagens e ao mesmo tempo complexos que deveríamos temer que seus suspeitos autores venham ter à mão até mesmo um bolígrafo.
Vamos ao caso: na cidade universitária de Leiden, na Holanda de 1991, uma mulher inocente foi vítima de um atentado assim, que chegou a intrigar e horrorizar, ao fim, mesmo os tribunais internacionais. A mulher foi encontrada morta em sua casa. Encontraram a razão apenas após dois exames de corpo de delito: uma caneta atravessando seu cérebro por inteiro, tendo penetrado na caixa craniana pela órbita direita. Não se passou nas imediações de uma clínica de habilitação, como no exemplo anterior, mas na sociedade aberta. No seio familiar, em meio ao cotidiano local mais comum. As pesquisas mais sérias a respeito foram inicialmente financiadas e levadas adiante pelo Departamento de Ciências Culturais da Faculdade de Antropologia na Universidade de Maastricht, mas tomaram os debates também em outras academias, na Universidade de Wollongong, Austrália, por exemplo, onde fizeram revisões e novos papers sobre o caso, como o notável artigo de R. Ball, Como matar com uma caneta, que delineia o caráter pioneiro do caso para as ciências e a lei, advindo de algo tão ínfimo. Algo que se esperava ocorrer talvez no interior de um cárcere de segurança máxima vem a brotar no seio de uma família inocente, tudo pela via de uma quase inofensiva caneta.
Por favor, não pense que meramente divago, conserve sua paciência. Contenha o deboche. Retifique seu nariz. Reconhecerá o ponto. E o caso está só começando, não chegamos aos seus desenvolvimentos mais chocantes. A reflexão a seguir pode oferecer um mínimo de enriquecimento, formar alguma diferenciação do caos, que quando aparece, se pretende unívoco, quer ser o hybris do Platão. Como os estudos mencionados constatam, um homem capaz de assassinar uma senhora com uma caneta pode nos levar mesmo à necessidade de, depois de anos nos quais a Holanda dedicou ao caso muitos de seus peritos, revisar boa parte da ciência forense e até algo da antropologia. O caso pôde chegar mesmo a permanecer inconclusivo em certos aspectos, e talvez seja necessário simplesmente assumir que a vida, por vezes, em algumas questões, é indevassável, mesmo tendo o caso passado até por um tribunal em Haia. Sim, o caso chegou mesmo lá, o centro das nações civilizadas. O tribunal mais humano de nossos povos. Como se repetiu nos jornais, a incógnita mobilizou o país.
Ao longo dos anos que durou o processo e mesmo anos depois, as notícias circularam na revista Reuters, o holandês Netherland Times e outros Times. Também porque o próprio filho da vítima, um estudante de 21 anos, era o principal suspeito. Jim (seu nome) teria confessado à psicóloga, anteriormente, que assassinara a mãe disparando com uma besta. Em 1995 foi então preso, doze anos de sentença. Ele teria disparado uma caneta no olho da mulher, feito com que a caneta permanecesse totalmente oculta, ludibriando os envolvidos nas primeiras fases de avaliação do cadáver, e esta apareceu apenas na avaliação de um segundo legista. Como o primeiro legista não notou? Bem, o legista é sempre cuidadoso, sem dúvida, e lembremos que é muito comum que os mortos permaneçam de olhos fechados. Mesmo que o legista viesse a abri-los — o que é procedimental — para rastrear a morte a partir da córnea, a caneta estava enterrada ao canto extremo da órbita direita, o que a manteve imperceptível.
Quando, no segundo exame, notaram um leve inchaço na correspondente pálpebra, investigaram mais a fundo e se depararam com o horror causável por uma caneta bic enterrada por inteira na cabeça, introduzida pelo canto da órbita e atingindo os confins do lóbulo occipital da pobre mater familias. Até lá, consideravam ter sido um derrame, um mal súbito, qualquer coisa. Mas não, descobre-se uma caixa craniana transformada em porta-canetas, uma abominação. Uma pálpebra fechada é descoberta como um olho mágico escondido e transporta à visão do inferno, que por trás dela revolve-se como uma língua, debatendo-se por trás de um falso sorriso ou da boca fechada. Por uma breve atenção maior de um segundo legista, algo do real pôde ser compreendido e ecoou em universidades, jornais e ainda provocou boa dose de ansiedade ao menos em um país inteiro. É um feito algo louvável a se extrair desta história, ainda que diminuto e, no fim, o que se espera de um legista?
Sem dúvida, em pouco tempo as memórias do American Crowbar Case foram ressuscitadas nas mentes curiosas e angustiadas de Leiden, principalmente as cientificamente inclinadas — alguns já lambiam seus dedos. Voltaremos já à Holanda, mas vale a pena relembrar este outro clássico e incômodo caso, filogeneticamente associado à contemporaneidade. Na década de 50 do século XIX, nos EUA, um maquinista tem seu crânio atravessado por um cabo, mas inexplicavelmente sobrevive e continuará se comportando mais ou menos como um homem pelas quase duas décadas que se seguiram ao incidente. O cabo teve de ser aparado nas extremidades externas, mas era impossível desenterrá-lo à força da cabeça do homem sem levá-lo morte. É sabida a fixação que este caso do século XIX causou na neurologia, psicologia e neurociência, e que atingiu mesmo alguns nichos de afixações populares. São amplamente reconhecidos também os enormes avanços que este caso gerou ao impulsionar os primeiros estudos no papel do cérebro na determinação da personalidade, indicando como o dano de suas distintas partes pode causar distintas mudanças no comportamento. Após o acidente, o homem seguiu comportando-se como o maquinista que era e consciente disso, ainda que tantas alterações em sua personalidade e atitudes, que não tinham claras explicações, causavam espanto e desconforto em seus familiares e conhecidos. Mesmo assim, sabe-se também que o homem não viveu mais muito tempo, e que sua morte foi causada, direta ou indiretamente, pela presença ameaçadora do incômodo e irremovível cabo comprimindo seus pensamentos, memórias, desejos e medos por tantos anos.
Por conta também da distância na história, muitas contribuições à ciência já foram feitas a partir desse singular ocorrido nos Estados Unidos da América. Afastamo-nos assim provisoriamente de Leiden apenas para que ela elucide melhor seus traços e possibilidades pela ótica deste desditoso episódio com um cabo de ferro (e a sobrevivência de sua vítima). Chegaram a descrevê-lo como uma espécie de Teste de Rorschach coletivo imposto aos cientistas de então. O doutor H. F. Campbell, em sua obra Injuries of the Cranium — Trepanning, de 1851, obra pioneira e que marcou toda a modernidade, declarou que o caso, “mais que todos os outros, parece calculado para excitar nossa imaginação, ofuscar o valor da prognose e mesmo subverter nossas doutrinas fisiológicas”. Pense: um homem que, com um cabo atravessado no cérebro, na alta cadeia de comando de suas funções biológicas e cognitivas, segue por um bom tempo vivo e até reconhecível, mas começa a se comportar de formas absurdas — não obstante ainda humanamente reconhecíveis — e um dia morre. Por outro lado, presenteia a humanidade com tantos novos saberes. É certo que puderam explicar o cérebro, mas devemos admitir que talvez pouco foi realmente compreendido sobre o cabo em si.
Esse tipo de angústia é que espreita também o caso Leiden, mais de um século depois. No século XIX, explicaram também como o maquinista, para além da inexplicável sobrevivência, conseguiu inicialmente se recuperar do acidente e mesmo tentar tratar as dificuldades sociais subsequentemente adquiridas. Ele o fez passando uma temporada no Chile, onde levou uma vida mais tranquila como cocheiro. Contudo, se no século XIX o sujeito americano sobreviveu por um tempo, já a mulher holandesa de 1991 foi levada à morte pelo incidente — com uma caneta, e não um cabo de ferro — de forma abrupta. Digo provisoriamente “incidente” para o caso holandês, porque é difícil dizer “crime” de algo tão complexo, que ultrapassa a simples noção do direito. Demonstrarei que isso nada impede que se dê ainda ainda mais avanço e desafio científico, talvez não tão diretamente na neurologia, mas com certeza na ciência forense e na antropologia, ciências que eram meramente nascentes no século XIX.
Mas não mudemos de caso. Voltemos factualmente a Leiden, na Holanda. Em 1996, o absurdo do ocorrido com a caneta e as conclusões dos especialistas conduziram pesquisadores a provarem que era simplesmente impossível a hipótese do assassinato nas condições apresentadas na sentença — que incluía uma arma (uma besta) praticamente impossível de ser manejada como proposto. Os peritos também levaram adiante a apelação e conquistaram a soltura do filho da vítima (o dono da besta), preso desde o ano anterior, e assim, o tribunal de apelações — no processo jurídico que, a essa altura, já havia passado dos pacatos tribunais da universitária cidade de Leiden às graves cortes da cidade de Haia — rejeitava a confissão do filho, Jim, feita à psicóloga, única prova de ordem testemunhal, e determinou: a mulher caiu sobre a caneta. Não houve crime. A sentença anterior foi suspensa e o jovem, solto. Sim. Basicamente no coração das Nações Unidas, após ao menos quatro anos de investigações e estudos, inacreditavelmente, não se soube determinar de forma convincente se é assassinato ou acidente, mas o martelo do juiz teve de escolher o último mediante o risco de manter injustamente preso um jovem e de ser necessário assumir que tudo isso ainda era possível, porque prendê-lo parecia também exigir o estômago de assumir uma tal deprimente realidade como essa cadeia de absurdos descritas que, sem dúvida, deixou também o leitor atormentado.
Haia envergonhada por um estudante, uma caneta e uma mãe muito desastrada (ao menos segundo o veredito), talvez não nessa ordem. E disso também depende sua reputação, visto que a cidade sedia o órgão internacional responsável por julgar, na jurisdição de 123 países, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, que ao menos deveriam oferecer mais complexidade e exigir mais atenção que canetas assassinas. Se uma caneta assassina venceu Haia, que dirá se Haia tiver de explicar e julgar o que ocorreu na Síria, por exemplo? Mais de 500 mil mortos em dez anos de guerra. “Eles caíram sobre suas bombas” como veredito seria um desatino, no mínimo.
Sem pensar que talvez ainda haja, no caso de Leiden, um terceiro elemento insuspeito, um assassino muito mais eficaz que o filho e que permaneceu totalmente desconhecido devido à sua possível competência e experiência em matar com canetas e jamais ser punido, não sendo um mero estudante, como Jim. Imaginemos o que Haia não considerou: e se também um tal vulto anda em liberdade e agora só seguiu adiante para agir em outro país, deixando para trás uma mãe morta, um estudante traumatizado, um país europeu à beira da desordem, um caso inconcluso — pioneiro em seus desenvolvimentos e que pode se revelar ainda mais assustador conforme viermos a saber nos próximos anos — e ainda tenha usado a mesma caneta do crime para passar os bens da família para um nome falso, apresentado como herdeiro legítimo? Parece um pouco demais e ensaio apenas algumas hipóteses de minha cabeça, mas vimos que nada é demais para o demiurgo perverso que traçou o destino dessas almas holandesas, e que uma caneta pode paralisar uma nação.
Em um terceiro momento do processo, provou-se, por um outro grupo de cientistas, que a façanha com a besta era comprovadamente possível e que, mesmo que não fosse, o crime era da autoria de Jim, pois nada na avaliação técnica garantia que não tivesse sido ele o autor, e era simplesmente absurdo (também então cientificamente demonstrado) que a mulher tivesse caído sobre uma caneta. Tinham ainda a posse de outros indícios, dentre eles, a caneta, que pertencia à família, provavelmente ao filho. Não obstante, foi ajuizado ao final que não era mais possível que ele fosse preso, mais uma vez, sob mesma acusação. Ne bis in idem. É essa a lei. Reconquistou definitivamente sua liberdade, o que também se pode considerar em alguma medida positivo, visto que, de outra maneira, agiriam ao arrepio da lei e teríamos de conviver, em nossa consciência, com a ideia absurda, que ganharia oficialidade científica em Haia, de que matricidas de métodos muito perversos, quase debochantes, circulam de fato despercebidos no seio da civilização.
Mesmo assim, ainda mais curioso e estranho, contudo, é que no longevo código penal holandês, de 1886, examinando os artigos 54, 61, 68 e o artigo 142, frequentemente ao parágrafo 1, constata-se que condenações podem ser retomadas se for provada a necessidade de revisão do caso, levando à retomada do processo e, se então comprovado, à prisão, apesar do ne bis in idem, que então deixa de valer. Algo que o leitor nota que foi efetivamente sugerido a partir do segundo grupo de cientistas e sua contundente rejeição do tombo sobre a caneta. Os artigos dos códigos todos são sem dúvida sempre obscuros e lá parecem obstruir eles mesmos a lei. Obstruí-la ao ponto de, com ou sem bis no idem, quase levá-la a livrar-se de si mesma. Na hesitação daqueles à frente da lei nacional — e que mais esperar numa situação dessa — o martelo então tem de bater-se a si mesmo ou aguardar. Diante dos limites legais, o suspeito assassino da caneta, mesmo com as provas coletadas em anos de investigação e uma confissão (ainda que legalmente questionável), permanece, ao que tudo indica, em liberdade. É a justiça européia. Pensa inacreditável? Pois tome o trabalho de conferir por si mesmo — algo sabidamente indisponível e inalcançável a muitos, eu sei — e saberá.
Como esta mãe saberia o que estava a caminho? Uma mulher comum, certamente inocente, talvez vivaz, alegre. Se excluirmos da história, apenas por praticidade, a besta, é possível dizer que ela morreu sem a menor pista, até o último segundo, do que viria, ainda que a ponta da caneta já estivesse ali, parada, reluzindo na sala. O próprio filho? Teria ela observado brevemente a caneta à mão do rapaz, suposto que cumpriria com algum dever, que escreveria um recado a alguém, um poema? Talvez ele estivesse mesmo tentando fazê-lo e perdeu a cabeça. Atacou a primeira pessoa que encontrou, infelizmente sua mãe. Teria ela cruzado o caminho de uma caneta, ou uma caneta cruzou o seu? Talvez ambos estavam distraídos e foram visitados por um assassino profissional, ignorado há 30 anos. Independentemente, ela morreu mal prevendo que esta seria sua morte. Mesmo do além ela chora de desgosto e talvez sinta-se culpada.
Passado o tempo, já no século XXI, os avanços técnicos permitiram que haja ainda partidários de uma terceira hipótese — para nós, a quarta, mas já faz pouca diferença — para sua morte: a de que a mulher tenha se suicidado com a caneta. Sim, é difícil de crer, mas nossa ciência também já deu o passo de nomear tal atípico procedimento suicida como “intracranial-self-stabbing“, podendo agora trabalhar a palpabilidade da hipótese. Haia não se ocupará mais disso, mas os cientistas seguem intrigados.
Veja, pode ser coisa pequena, mas mobiliza a história. Tal passo científico da psiquiatria foi dado apenas na segunda década deste século, pelos australianos, que em New South Wales encontraram 47 casos similares — imagine, 47 casos de possíveis auto-apunhalamen… bem, casos parecidos com o de Leiden (envolvendo também muitas facas, não apenas canetas), ao longo de dez anos, todos, no fim, perfeitamente explicáveis por doenças psiquiátricas e a depressão. Apresenta-se o problema de que a hipótese de intracranial-self-stabbing não é aqui definitiva, e uma retomada do caso de 1991 já se provou, de toda forma, legalmente inviável. Há artigos que aparecem com mais força nesse sentido em 2012, 2013, mas também anteriores, como em 2008. Em verdade, um pioneiro artigo forense de 1988, no American Journal of Forensic Medicine and Pathology, foi o que parece ter cunhado o termo a partir do caso de um homem de 35 anos que meteu-se uma sovela à cabeça, mas evidentemente não era conhecido pelos holandeses nos anos 90. Tivesse essa minúscula, mas pioneira pesquisa se apresentado ao mundo a tempo.
A terminologia ainda não é encontrável na bibliografia psiquiátrica brasileira mais recente. Deparei-me com o emprego do termo em um artigo de Honduras, mas não pude consultá-lo melhor. Minha ideia inicial de traduzi-lo aqui como auto-trepanação me parece gerar terrível incompreensão e deshistoricização, além de ressoar incompleta. Remete demais à obra de H. F. Campbell de 1851 (a já mencionada Injuries of the Cranium — Trepanning), e mesmo que seja pioneira e o básico de tais questões surja também lá, há algumas diferenças que o termo deveria demarcar. Acrescentar “auto” ao “trepanning” explica pouco, e todos sabem que a trepanação é procedimento voltado à pacificação do cérebro, não à sua morte. Auto-apunhalamento-intracraniano é de péssimo gosto. Fiquemos com o inglês ou, provisoriamente, simplesmente suicídio. Haia já pouco se importa.
Observa-se que, por vezes, mesmo com todas as ferramentas à mão, a técnica, a disposição, a ordem, a disciplina científica e jurídica, até mesmo a pesquisa também se atrasa em encontrar a resposta a casos tão singulares no tempo devido, mesmo quando uma das possíveis respostas já estivesse na verdade circulando, mas sem colar à pergunta. Tampouco se tinha a pergunta certa em 1991 — não se pensava que canetas podiam levar ao suicídio. Se é assim, que deve fazer então um indivíduo perdido em seu anonimato, dentre as menores e confusas coisas, como eu? Morrerei eu no descuido de uma caneta? Meu caso sequer chegaria em Haia? E se chegar, ainda poderiam dizer que eu caí sobre a caneta, ou até que me enfiei uma caneta na cabeça e isso explicaria minha morte, o que me revolveria no meu hipotético túmulo. Novamente, é um pequeno dever diante do qual a humanidade fracassa, mesmo sua ciência. Não se trata de uma condição e angústia puramente individual, só minha.
Aí que está: essas pequenezas não se deixam prever, todas contendo o agravamento como possível destino. E a quem perdoar ou absolver? Permito-me o exagero, visto que é frequentemente necessário exagerar para dar o devido tom: quantos assumiriam o pequeno dever preventivo de impedir que esse filho da Holanda portasse uma besta, ou pior, uma caneta, e a empunhasse de forma fatal contra uma senhora, sua própria mãe? Nem faria sequer sentido todo o questionamento quando notamos que uma besta não pode matar sem flecha, disparando uma caneta, mas que temos ainda assim de reagir à questão levando em conta tamanhas inconclusividades, e mesmo a possibilidade sui generis aventada pelo segundo grupo de cientistas de Leiden; desconsiderando ainda as possibilidades que mesmo os cientistas e Haia negligenciaram.
É angustiante. E se um sujeito desse portar um guarda-chuva, por exemplo? Mataria do mesmo modo? O leitor poderia ressentir-se: “mas guarda-chuva? já estamos mais longe do que jamais fomos, não é passar do limite?” ao que replico: até Mumbai, na gloriosa Índia dos anos 60, teve seu próprio umbrella killer. Dirigia-se aos piores bairros, buscava os mais miseráveis e desvalidos, abandonados nos piores becos, e os redimia até a morte a golpes de guarda-chuva. Não estou brincando. Agiu livremente e impunemente por um bom tempo, matava praticamente a luz do dia. Em Haia sequer se conversa a respeito. Mumbai não é Leiden, e as pessoas se importam menos. Os riscos mediante os tais pequenos saberes e deveres se multiplicam, nascendo nos mais insuspeitos elementos, principalmente onde as coisas importam menos. Flutuarão corpos no Ganges, e Haia seguirá pálida e incapaz de segurar uma caneta na mão sem desejar ir logo para casa e jogar todas as canetas fora.
Não iríamos agora tão longe a ponto de alienar à bala que atinge o cérebro ou o peito sua devida causa mortis, mas, por vezes, temos de atribuir devido peso ao susto, ao medo ou ao imprevisível, o mistério; ao coração que fraqueja, engasga e, numa palpitação que supere o que comporta o tecido, gesta o infarto, a loucura ou o assassinato. A tragédia. O absurdo, etc. Coisas que parecem pequenas, sem vida, que infectam o corpo, o espírito, e por vezes a realidade como um todo. Essas sim, insidiosas, quando não matam, nos levam ao menos ao declínio. Veja: no nec plus ultra do que é sabido sobre o humano, basicamente coisas, muito frequentemente de baixo porte, ao rés.
Vamos deixar a áspera realidade, que é sentimentalmente muda, e nos aventurar pela fantasia, evitando que fiquemos presos a detalhes muito pequenos do mundo efetivo, que ainda correm o risco de nada significar. Proponho, aqui, meramente a imaginação de uma hipótese mais ou menos conhecida do brasileiro. Às vezes, a coisa se inverte de um jeito, em proporções tão misteriosas, que chega mesmo a se apresentar, no real, a possibilidade de que um guarda-sol mate seu portador ou um vizinho, ao invés de protegê-lo do sol ou mesmo da tempestade que o ameaça e aflige, à praia ou no campo, digamos, num dia mais tempestuoso. Ao voar com o forte vento, pode causar mesmo um acidente automobilístico, se na proximidade das ruas. Se proponho a imaginação duma tão singular, improvável e adversa situação particular, que beira o ridículo apenas em aparência, não é por apelo ao mórbido, que a vanguarda científica sempre parece emanar, ou por desrespeito à razão do leitor, mas para, correndo o risco de ser repetitivo, falar de intamanhas peripécias do real. Pode acontecer com qualquer um, se dadas as devidas e intrincadas condições. Mesmo considerando circunstancialmente que, por estarem os guarda-sóis geralmente em locais de descanso e deleite — tomemos logo a praia, por nos ser mais típico — os garçons locais, que basicamente vivem à praia, são os que mais estão expostos a tal risco, e sabem muito bem disso. Se o leitor fosse um garçom que trabalha na praia, saberia dos riscos que um guarda-sol apresenta.
Para não ser um trapaceiro: um acidente como esse de fato ocorreu em Itapema, em 2019, e o homem, atingido na cabeça, quase morreu. Teve de ser socorrido por uma ambulância. Era garçom e ainda era uma sexta-feira 13. Curiosamente, como se vê, o mais sortudo dia de azar, porque poderia ter morrido sem mesmo suspeitar, sem dizer uma última palavra. Mas o ponto é que essa catástrofe fantasmática pode ensaiar-se no real de forma mais assombrada, mais grave, causando ainda mais sofrimento. Veja que, no parágrafo anterior, o único ponto no qual provisoriamente escamoteamos a realidade concreta e efetivamente fantasiamos foi o seu (possível) resultado fatal. O guarda-sol era pequeno, quase um guarda-chuva, o que evitou que o horror marcasse o espírito das crianças que ao redor brincavam.
Itapema, São Paulo, Belo Horizonte, Washington, Leiden. Praia. Descampado. Eldorado do Carajás. Pau D’Arco. Santa Lúcia ou no Mar das Pedras. Não importa a idade, nome, seja Ângelo, Aylton, Ednaldo, Jofre, Rodrigo, Tonho, Ronaldo. Inácio. Jane. Pode acontecer? É da ordem do homem, mas ainda mais das coisas. Mais ainda se forem angulosas. Como já legitimamos a possibilidade fatal apresentada, sigamos apenas avaliando a hipótese. Ao bater daquele forte vento que parece vir de baixo, o guarda-sol ergue voo. Dependendo da habilidade ou inabilidade motora, da eventual incapacidade de manejá-lo na tempestade de forma treinada, internalizada (pode-se dizer “educada”), antevendo a dinâmica entre o shaft (o mastro) e o runner (hastes de sustentação) durante uma forte ventania, dependendo ainda também de algum azar, e dependendo justamente e finalmente de um pontual saber, que inverte-se em inépcia na capacidade de antevisão, em uma combinação absurda, que em algum segundo descuidou-se com sinal invertido para dentro da realidade tempestuosa, na qual é sempre difícil caminhar, temos o resultado: uma pobre alma, lançada na tempestade convulsa juntamente a um objeto apenas potencialmente perfurante, depara-se não mais com um guarda-sol em seu pacífico domingo, mas no umbral, com o voo de um arpão à caça de sua presa.
Em meio à tempestade, podia tornar-se guarda-chuva; mas não, o objeto transfigura-se em sentença de morte. A presa do destino enreda-se assim em uma mínima, ainda que real, possibilidade do acidente fatal, da tragédia — este é o termo, como já bem sabiam os gregos. Uma soma de desconhecidos números, mas ao final, calculado ou não, é zero. Quantos zeros são possíveis? A matemática e o Zeta de Riemann diz que são muitos. A realidade nos demonstra que são sempre o mesmo zero e os infinitos números primos, todos desconhecidos dos meros mortais e até entre si mesmos. Aliás, nossa amada Leiden fica curiosamente no “grau zero” de altitude. O Rio de Janeiro, por exemplo, está a 2,13m acima do nível do mar (descontando os morros, é claro). A altitude de Leiden é exatamente 0cm. Uma ressaca do mar e a cidade desaparece.
É óbvio que não estou dizendo aqui que o guarda-sol poderia ainda, na sequência deste episódio desditoso, ser arrancado pelo vento do corpo ferido da vítima — que é possivelmente um garçom — e mataria um segundo ou um terceiro, ou que saísse assassinando garçons na ventania. Ou mais delirante: que ao voar para longe, fosse soprado por um vento maligno de volta e golpeasse a mesma vítima uma segunda vez, ou até uma terceira. Brinco neste ponto apenas para demonstrar que, mesmo com coisas absurdas, devemos distinguir o palpável e o concreto, do ridículo, de tudo que é sempre possível de ser dito sobre ele.
Voltando ao guarda-sol mais verossímil, fica-se então diante do paradoxo de Tito: talvez morrer, talvez perder a vida. A odisséica probabilidade da minúscula circunstância que finalmente embosca sua vítima e torna-se vultuosa na realidade: uma lança partida em seu dorso, o corpo caído à sombra de uma abóbada florida de tecido, uma morte insultantemente colorida. O guarda-sol aberto, já protegendo o cadáver da chuva ou do sol até a chegada do Instituto Médico Legal. A trajetória dos descaminhos do real, contudo, já estaria toda ali, predizendo seu destino, e ela é traçada justamente como os mencionados pequenos deveres que se esgueiraram do futuro ao presente, despercebidos. Cruzam o céu como um relâmpago e podem assassinar. O ponto é esse: não é a regra, ora, mas é o real que a ultrapassa e funda um real novo. Coisas que eram amigáveis ficam hostis, e as hostis, amigáveis. Tornam-se aí difíceis deveres a corrigir, mas a impossibilidade da previsão de algo evidentemente muito complexo reside aí, nos menores deveres que tragicamente escapam ao mundo humano, à nossa ciência, nossos saberes e capacidades, nem sempre bem combinados.
Na tempestade, não se pode morrer de guarda-sol à mão sem deixar a marca da atenção extrema, que falhou apenas diante de um pequeno dever, um quase azar: talvez tê-lo imaginado anteriormente e considerado não usar mais guarda-sóis do tipo mais arriscado. Tê-los usado com parcimônia. Na dúvida, insegurança, abolir o guarda-sol e adotar a capa para a chuva e guarda-sóis mais seguros para os dias de lazer. Alguns possuem conselho mais pontual e prático, ainda que eficaz: em caso de chuva e vento, feche o guarda-sol. Treinar os garçons às praias para o manejo adequado dos guarda-sóis, contratar profissionais treinados para a observação dos guarda-sóis, digamos, um por equipe de cada sete ou oito garçons, concentrados na observação e possibilidade de prever tanto as ventanias quanto os guarda-sóis a alçar voo. Também esperar que não se corrompam na atividade de observação, que é tediosa — e convenhamos, já sempre mais ou menos despótica — e passem a exercer a tirania nas equipes por puros privilégios pessoais e por poder, ou mesmo por algum dinheiro. Os garçons já têm chefes e a vida se tornaria duplamente insuportável. Mas tais soluções são delirantes. Resumindo: talvez não sair de casa de todo se, diante de uma tempestade, o portador tiver à mão apenas um guarda-chuva ou guarda-sol do tipo mais arriscado. Imagine então se o assassino de Leiden tivesse à mão um guarda-chuva ao invés de uma caneta — um guarda-sol, na Holanda, seria muito mais improvável, e não é novamente necessário ultrapassar os limites do bom senso. Na Índia, como comprovado, os guarda-chuvas também matam. Os guarda-sóis provavelmente mais ainda. E mais que aqui, porque também são mais os seus habitantes. Tampouco sei como se comportam à praia.
Mas voltemos a ilustrar com mais casos reais em sua completude, sem fantasias, tranquilizando mais quanto à confiabilidade para a reflexão, visto que é melhor um excesso de real que um excesso de fantasia, mesmo que a fantasia às vezes ajude a entender alguma coisa, principalmente as menores. Ao menos sei que, se nosso particular e já algo desgastado entendimento dos minora mala perder seu apelo filosófico, o real, o bruto, o assistemático, este ainda permanece e diverte no que oferece à fantasia que sobra. É claro que um excesso de real pode também levar à loucura, ou pior; enquanto a fantasia é ela mesma uma loucura mais branda, mais difusa, às vezes até com alguma ordem, e contém sempre algum real sob suas batas, além de aliviá-lo de seu caráter constrangedor — e de ter de explicá-lo. A fantasia é mais saudável, o real mais recomendável. Algo no meio. Talvez seja uma solução de maior balanço, mas sempre exige seu retorno ao polo originário. Um delírio nos diz muito sobre seu portador, por exemplo. Ao próprio delirante, contudo, apenas se ele retornar de sua loucura à realidade, caso muito difícil.
Aproveitemos para focar agora mais no século XXI. No Japão, em Tóquio, ao final de 2000, assim como mais uma vez em Leiden (dessa vez em 2015, não em 1991), ocorreram mais assassinatos desse tipo absurdamente imprevisto, mas que parece tomar algum padrão: estudantes universitários que cometeram homicídios atrozes. O primeiro, no Japão, matou uma família de cinco camponeses (não sua própria) pouco antes de virar o século; o segundo, em Leiden, três adultos a passeio no mesmo dia e mesmo parque, mas em momentos distintos. Mas que cidade é essa, polo magnético de desespero e imprevisto?! Leiden presenteia a Airbus ao mundo ao preço de horripilantes ocorridos. Veja o ponto em que chegamos. Talvez as universidades devessem ser mais seguras, ou melhor vigiadas. Nem todo universitário é assim tão perigoso, depende também muito das estações do ano. Em Leiden decide Caim gotejar sua baba, seu nome dito uma segunda vez. A conotação já até parece mudar.
Aliás, já que notamos que os nomes das coisas e ideias parecem complicar até a realidade, obstruir as ocorrências e vez ou outra participam mesmo dos avanços da ciência, nem que contribuam só como meio, apresento uma breve curiosidade linguística: em holandês, leiden, que também é o nome da típica cidade universitária, é palavra que significa conduzir, gerenciar. Em alemão, língua irmã e vizinha, leiden significa sofrer mesmo. Não que se trate propriamente da problemática de um nome, que aqui pouco interfere, mas tais coincidências, se não ilustram ou iluminam alguma ideia, agradam. Se fosse Leiden na Alemanha, e não Leiden na Holanda, não faria diferença alguma. A propósito, não há Leiden na Alemanha atual, e os alemães jamais condenariam uma cidade inteira, para os séculos que se seguiriam, a se chamar Sofrer. Ainda que na Alemanha haja tanto cidades como Galgen, que quer dizer forca, como Frühling, primavera. Ou ainda Ort, que significa simplesmente lugar. Há também Amerika, que fica na região da Saxônia. Eles tem Lachen, que significa rir, tem Übersee, que significa Outro Continente — absurdamente pretensioso, mais que Amerika — e por último Ende, que significa fim. Mas nenhuma Leiden, e são todas menos misteriosas também. Talvez apenas não as investigamos melhor. Mas nada disso é nosso assunto.
Não se trata dos nomes que as cidades levam e as particularizam, sendo que há algo de universal no nosso pequeno objeto em questão: essas pequenas fantasmagorias do inefável. Eu mesmo sequer apresentei meu nome até agora, pecado que confesso. Já estava envolvido demais e, no fim, anônimo como sou, qual a diferença? Se digo agora que me chamo Ramiro, ou Fernando, ou Olavo, algo muda? Ou ainda Alípio, Porfírio, Honestino?
Pensando em São Paulo: digamos que uma rua se chame, por exemplo, “Rua Dr. Sérgio”, e mudemos seu nome — mesmo diante da compreensível resistência de seus mais antigos moradores — para “Rua Alencar Lima” ou “Rua Dr. Jean-Baptiste Imbert”, “Rua Pastor Cláudio Guerra”. Não haveria então mais nada de “Dr. Sérgio” nessa rua? Cambiou a sua “sergiofleuridade”? E como decidir? Vê o ponto? Mesmo se tentássemos algo mais ousado e que viesse, de alguma forma, a facilitar a vida: chamar a Rua Dr. Sérgio de Rua Tutóia (resolvendo a escolha do nome, já que a segunda é onde morava o tal Doutor Sérgio), e a Rua Tutóia verdadeira, no bairro Paraíso, que precisará de um novo nome, de “Rua Paraíso”, criando ainda uma coerência entre nome da rua e nome do bairro, que ela justamente cruza e que tradicionalmente o define — a Rua Paraíso ficaria finalmente no bairro Paraíso, que é o bairro onde a Rua Tutóia real fica originalmente. Mas para isso, teríamos ainda de reduzir o território da Vila Mariana para que o Paraíso abarque toda a Rua Paraíso (a hipotética), que atualmente se estende para além dele, para dentro da Vila Mariana, ainda enquanto Rua Tutóia real. Os habitantes da Vila Mariana teriam ainda de estar de acordo e votar a possibilidade de deixarem de ser marianenses. O restante do bairro, ceifado de sua parte mais monumental, perdendo sua face, teria de ser também renomeado. De que bairro seriam então? E se o bairro, na ausência de sua rua mais emblemática e com seu novo nome, seja lá qual for, atrair menos os negócios e a circulação? Significaria então, finalmente, na realidade material e viva das pessoas locais, a derrocada econômica de um bairro? Haveriam talvez mesmo alguns poucos que viessem a sucumbir à fome e ao abandono como resultado? À morte? Uma mudança de nome poderia provocar algo assim? Ainda se deve ter também a consciência, mesmo que seja relevante a consideração nominal, de que a rua sequer de fato chegue a trocar o infausto nome, mesmo que seja desejável.
Não me alongarei nisso, mas demonstro ao menos que mudar o nome é algo muito difícil e com consequências e exigências imprevistas, e nem sempre é vantajoso deixar de trabalhar com os nomes que já temos à mão para reformular o real. Aproveitamos para percorrer rapidamente, ainda apenas para ilustrar como tais pequenas coisas nos movem, os intricados, confusos e abarrotados corredores do direito e, apenas provisoriamente, da nomenclatura. Pode ser que não mude nem a rua nem o nome e a universalidade das pequenas coisas domine, imponha de repente seu reino do terror. Dei exemplos de grandes nomes e ruas de uma grande cidade, imagine então com as menores. Leiden, como se vê, mantém o nome e seus traços principais há bastante tempo. Segue universitária, segue Airbus, segue uma caixinha de surpresas.
Deixemos o nominalismo e voltemos aos fatos, estes mais claros e introdutoriamente conhecidos. Japão, em 2000, e Leiden, em 2015. No caso japonês, de 2000, um homem esfaqueou uma família de cinco quase ao justo virar do relógio do século, dia 30 de dezembro. O suspeito, após mais de vinte anos, ainda não foi preso ou encontrado. Já o holandês, de 2015, que é estudante de antropologia, este herdeiro de Erasmo e do oculto passado de Leiden, matou três, e dessa vez, como o japonês, também com uma faca. Talvez trate-se de algum desejo global de retomar a originalidade de métodos mais comuns. Em breve, talvez voltemos às mortes por cabos de ferro. É sabido que os métodos envelhecem, já a morte mesma, não. Retomando Leiden: a primeira vítima de Jim II, como ocorreu no caso da caneta assassina, de 1991, foi uma mulher. Foi morta passeando e levava consigo um cachorro paraplégico em um transporte lateral, adaptado à sua bicicleta. Descobriu-se que as duas subsequentes vítimas também tinham cachorros e passeavam com eles. Uma vítima em potencial, que circulava nas localidades com seu pet no mesmo dia, disse que suspeitou estar sendo perseguida por um homem, que sorria enquanto andava em seu encalço. Aparentemente ela conseguiu despistá-lo, ou talvez ele só tenha mudado de ideia ou hesitado por qualquer motivo.
Circula mesmo a descrição de que o já nomeado Dog walker killer holandês da generation Z é “social, intelligent, but somber student“. Seus amigos, incrédulos de suas capacidades homicidas, escolheram o termo “wallflower” para descrevê-lo, relembrando festividades, a convivência social na faculdade de antropologia e mesmo sua cordialidade sem igual. Um homem do umbral, nomeando guarda-chuvas, guarda-sóis, umbrellas. Este foi logo preso, diferentemente do japonês, que matou a família de cinco na virada do século, ainda foragido. Há hipóteses nos jornais holandeses, sustentadas por psiquiatras vinculados ao (segundo) caso de Leiden, indicando ainda que os assassinatos do dog walker killer tenham sido cometidos em um surto psicótico, visto que o estudante havia passado por uma troca radical de medicamentos controlados.
O indevassável também prossegue na investigação japonesa. Isso porque há muito o Japão já tem o DNA do suspeito e outras pistas valiosas. O criminoso deixara para trás, na casa da família dos cinco que foram degolados, propriedades suas: um cachecol, um lenço e a faca do crime.
O caso de Tóquio, aliás, foi reaberto depois de todo esse tempo quando encontrou-se, após novos avanços da ciência forense, em uma bolsa, restos de uma substância identificada como tinta de marcador de texto, que confirmou a identidade estudantil do assassino. A caneta que marca, ensina, mata ou denuncia, ao fim deixa-se encontrar, após vinte anos, em uma bolsa. Concluiu-se a idade de 15 a 29 anos, e por mais elementos apurados (os sapatos que usava de origem coreana, não encontráveis no Japão), como ainda novamente os exames de DNA, descobre-se que se trata de um filipino e não de um japonês. Agora a polícia das Filipinas também ajuda nas investigações. Mais uma vez, uma caneta e uma faca envolvidos nos tropeçantes impedimentos e avanços forenses das irresoluções, confusões, coincidências e contingências. A avó da destroçada família japonesa de Tóquio segue viva e há décadas sem resoluções mais esclarecedoras, mas talvez hoje se sinta algo menos envergonhada de seu país. Ao menos não era um japonês.
Sua esperança talvez então decaia ao vir saber do agente de saúde conterrâneo que, em 2020, sozinho, portando uma faca, sob a vigilância de dezesseis câmeras, imobilizou uma equipe de oito funcionários e um segurança de um Centro para Deficientes em Tóquio e esfaqueou até a morte dezenove de seus residentes. Vinte cinco feridos. Questionamos anteriormente o rigor de instituições clínicas como estas, e veja só. O agente e ex-empregado da clínica parecia ser conhecido por defender a eutanásia obrigatória aos inválidos e a honra do Japão. Não estamos aqui falando de passado, de Hiroshima, Nagasaki, coisas já bem compreendidas. Tóquio. Um homem. No Brasil, também temos um caso recente de chacina de 19 pessoas — neste caso, contudo, eram perigosos camponeses, e não deficientes, e sem dúvida ameaçavam seriamente a vida de alguns agentes de segurança (e não a de um único agente de saúde) — mas a avó japonesa jamais saberá disso, e seus conterrâneos já lhe oferecem vergonha suficiente.
Poderíamos seguir com exemplos, mas já está colocado o ponto. Devemos retroceder da especulação e considerar, mais concretamente, menos presos a casos isolados, pensando agora nas proporcionalidades comparativas. Podemos parear as canetas e as fadas, conhecendo suas possibilidades. Talvez possamos ainda dizer que um guarda-chuva estaria para uma pistola como um guarda-sol para um lança-foguetes nesse mar de contingências e riscos, mesmo que em inglês o termo para ambos seja meramente umbrella. Guarda-chuva, umbrella. Guarda-sol, umbrella. No máximo, acrescenta-se eventualmente beach ao nome. Sem dúvida, compreensível, mas perderíamos assim, na riqueza de nossa língua e cultura, nossas considerações comparativas anteriores. De todo modo, já demonstrei que não vale a pena gastar tanto tempo com muitas considerações acerca do peso que as diferenças linguísticas carregam ao falar de facas, canetas e guarda-chuvas, e não repetirei a enfadonha reflexão. Qualquer um reconhece ser mesmo decadente quando um caso internacional pega, gera alguma ressonância e faz sair algum poeta a trazer consigo um guarda-sol em inglês e sua anfigúrica linguagem para as barricadas de sua poiesis. Ninguém suporta a tristeza de algo assim.
Desculpo-me, mais uma vez, pelo detour que tantas preocupações podem gerar, assim como demonstro quão cansativo é entender a intrincada rede das causas e efeitos, que há algo global nas coisas infinitesimais. Os filósofos franceses das mais recentes escolas chegam mesmo a afirmar que o mais global é o mais microscópico. Tudo para tentar tentar demonstrar que é nesse pequeno futuro do passado que cai sobre a vida justamente lá, no ponto cego da vista, que nasce nossa salvação e também nossa ruína. Ao menos deveria sê-lo e a realidade ela mesma insiste em nos ensinar. Nele progride, por vezes, como se vê, a razão, ainda que não possa impedir o movimento estrutural do que podem provocar as pequenas coisas quando vem a tempestade ou quando nos defrontamos, sem explicação, com a besta engatilhando uma caneta e a absurda capacidade do mistério. Seja ela um estudante, um cabo ou só uma caneta misteriosa. Importa notar que tal razão parece, como se vê, caminhar ora com canetas, ora com cabos, ainda que algumas eventuais retomadas da tradicional facada obscureça nosso entendimento de tal aspecto. Os cientistas já escrutinaram, como se vê, muitas dessas possibilidades da superfície e profundezas do real, que legitimam aqui as angústias que busco expressar, e esteja certo, assim, de que consulto com rigor os cientistas e confiáveis especialistas em diversas questões, em particular as que possam me levar ao sóbrio reconhecimento dos riscos para além de meus mais imediatos afazeres e modo cotidiano. Trata-se de responsabilidade consigo e com os demais, ainda que não se possa, como se vê, escrutinar tudo. A menor das coisas, está provado, sempre escapa.
Deveres que assassinam o futuro já deveriam ser, a tal altura, rapidamente identificados, mas ainda assim, volto a mim: me atraso. Pessoalmente, como se nota, não me preocupo tanto com os deveres maiores, estes efetivamente presentes, porque não logram atingir-me com suas travessuras como a trágica ditadura dos pequenos e absurdos deveres e coisas e, bem, sendo os do presente, também eles estão presos a esse outro dever, maior que nós, que lhes devora pelas costas. Além do mais, já é tarde e tenho sono. Concluo antes de provocar maior cansaço e mais retinas fatigadas. Os pequenos deveres que já lá estão, sempre devoram o futuro pelas pernas como pulgas, botando-lhe a dançar antes de cair; não os conheço e é assim, já o disse. E quando venho a conhecê-los, é tarde e já eles são depois. Assim também ocorre com as atuais ciências e esforços da razão.
Me preocupo que tais pequenos deveres sigam brotando justamente como vaza o ar do furo de algum balão. Que ao ouvir o agudo silvo do balãozinho, que a longo prazo é ensurdecedor, leve o balão ao exame, ao escrutínio, e minha pele não sinta o secreto sopro de seu sussurro antes do estouro. Futuros deveres que possam ter pendurado a paz e a convicção nos fios de meu cabelo, como armadilhas para cada movimento cansado e indeciso do pescoço. Também é isso que tais saberes geram. Para nós, pequenos devotos do futuro e da ciência, os reflexos fantasmagóricos podem até ser mais fáceis de se ver na poça espelhada de nosso presente, mas saltam adiante de si mesmos, astuciosos como um quark que insinua-se ao olho humano. A questão mesmo é que estes pequenos fantasmas sempre acabam nos vendo — mesmo nós, com os quais possuem alguma afinidade de estatura — muito melhor, e sempre antes. De qualquer futuro que venham a saltar, seja com canetas, facas, guarda-chuvas ou guarda-sóis, ou ainda um cabo, em sua devida e potencial ordem de ameaça.