Um conto de Gabriel Cassar
Gabriel Cassar é jornalista, formado pela Escola de Comunicação da UFRJ. Começou a escrever, de forma livre, ainda no colégio. Em 2015, lançou sua página de crônicas, contos e poesias no Facebook e no Medium. Um ano depois, publicou seu primeiro livro, Ressaca do adeus e outras crônicas, um compilado de escritos dos mais variados gêneros, pela Chiado Editora. Já escreveu para Lítera, Fazia Poesia, Jornalismo de Boteco, Casa da Luz Vermelha, Blog When In Rio e Revista Bacanal. Carioca, transita por todas as zonas da cidade atrás de boas histórias e inspiração. Fã incondicional de Fernando Sabino, tem o mineiro como ídolo máximo e exemplo de leitura prazerosa, simples e profunda ao mesmo tempo. Administra no Facebook a página Gabriel Cassar – Crônicas, Contos e Poesias.
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Próxima Estação
Ele era forte. Não forte a ponto de parecer um monstro, mas, certamente, seu tipo físico chamava a atenção. Gostava de acordar um pouco mais cedo, tomar aquele banho demorado, escolher entre as camisas branca ou salmão, apertadíssimas, passar perfume, colocar um pouco de gel no curto cabelo castanho escuro e ir para o metrô.
Dentro do vagão, ele fazia muito sucesso. Por vezes, gostava de colocar seus óculos escuros de marca só para poder reparar melhor nas mulheres olhando para ele. Escolhia sempre ficar em pé, para que o campo de visão sobre o seu corpo ficasse maior. Os braços malhados alternavam-se nas barras de ferro, e as mangas curtas facilitavam todo o processo de exibicionismo.
Certo dia, avistou uma mulher. Usava um óculos de grau de armação escura, vestia-se com roupas sociais, tinha os cabelos negros lisos escorridos e estava lendo um livro bem grosso. Era a primeira vez em que sentira vontade de tentar algo a mais, de ultrapassar a barreira do flerte descompromissado, de arriscar um “oi” ou algum tipo de elogio garboso. Hesitou e resolveu esperar pelo dia seguinte.
Religiosamente, buscou o mesmo vagão, o mesmo banco, chegando na plataforma exatamente no mesmo horário. Era uma jogada arriscada, já que existem pessoas que pegam metrô todo dia e outras que só aparecem de vez em quando. Por sorte, lá estava ela, mais bonita ainda do que antes. Mais uma vez, impassível em sua leitura, fez pouco caso do rapaz, que se alongava e se espreguiçava a cada quinze minutos, tentando chamar a atenção da moça.
Confesso que os dias que se passaram foram um tanto quanto melancólicos. Ele tentou de tudo, mudando de perfume, roupa, posição, cabelo…, mas nada parecia suficiente para a mulher mudar o foco. Algumas semanas depois, teve uma brilhante ideia: a conquistaria pelo intelecto.
Não que fosse burro, tinha sido um bom aluno no colégio e era formado em administração por uma faculdade média para a boa, embora tivesse abandonado as leituras de romances e outras vertentes literárias em função de papers e demais relatórios de consultoria. Não é exatamente um crime, há de se convir.
Chegou na Livraria da Travessa, a de Ipanema mesmo, e conversou com três dos atendentes. Escolheu aqueles com cabelo e barba grisalhos, mais magros e com cara de sabedoria. Por fim, com R$200,00 no bolso, optou por gastar metade em um exemplar de Anna Karenina, de Tolstói. “Ela vai pirar!”, pensou o mancebo.
No dia seguinte, segunda-feira, a moça ficou em pé. Metrô em horário de pico, sabe como é… Por pura sorte, acabou que ambos ficaram próximos, frente à frente, perto da porta de passagem de um vagão para o outro. Era o modelo antigo. Confiante, o rapaz abriu a mochila e sacou seu calhamaço russo. No processo, acabou se desequilibrando, mas conseguiu voltar ao normal sem maiores vexames. Nervoso, fingiu abrir a obra numa página marcada e, ajeitando os óculos de grau, emprestados pelo seu digníssimo avô, tratou de começar a “leitura”. Por cima das lentes, enxergava bem e reparava na moça, mas quando abaixava os olhos, era um mar de embaçamento. “Ensaio sobre a cegueira”, pensou baixo, rindo e orgulhando-se de sua primeira piada literária em anos de vida.
Pela primeira vez em todas as suas tentativas, no entanto, a estratégia parecia funcionar: a moça não desgrudava os olhos do rapaz, alternando a visão entre o livro e seu rosto. A propósito, era a primeira vez que ela não estava lendo nada no trajeto. Provavelmente, havia esquecido o livro em casa ou estava com preguiça do trabalho que daria para ler em pé no metrô lotado.
Confiante, o rapaz aproximava-se cada vez mais, certo de que o plano havia dado tão certo que ele nem precisaria falar nada: ela que puxaria o assunto. Na estação Cinelândia, uma antes de descer, o contato tão aguardado finalmente aconteceu. Nervoso, suando, como se fosse a primeira vez que conversava com uma mulher na vida, esperou até o último segundo, até ela falar:
– Com licença, mas acho que seu livro está de cabeça para baixo.
O rapaz enrubesceu, agradeceu o aviso e desceu na Carioca. A partir daquele dia, só iria para o trabalho de carro.