Um conto de Glauber Costa Fernandes
Glauber Costa Fernandes (Manacapuru-AM): contista e cronista. Publica em revistas literárias.
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Poeira
O som veio antes da imagem. O grito veio antes da aparição. A voz anunciou a mulher e seu bebê transpassando o umbral da casa escura, para fora, com pés descalços e rostos sujos. À porta, o sol.
– Já disse para ninguém passar por aqui!
E eu passava, irradiado da tarde. A poeira flutuando.
Eu passava e veio o grito, anunciando a figura, do escuro, da mulher com o bebê.
Não houve, de fato, um susto de trovão cortando silêncio. Houve o rasgar da presença na rua. A partir da casa minúscula, que eu não tinha visto. E apareceu, rasgando um pedaço de tempo, a que eu não me atentava, embora visse de frente.
Porque eu passava ali, como uma procissão. Passava ali, povoado de amigos, só, na imensidão do espaço, girando sobre a cidade, que já não era.
Porque pensamos ter a cidade em algum lugar. E nunca acontece de ser nela mesma.
Veio a imagem gritante, perfurando a outra imagem, desfeita na poeira. E a poeira estava por cima de mim, me marcando com aquela terra, mas era tarde. E essa poeira não falava comigo. Soprava. Era uma mão, sem me tocar, empurrando meu corpo para fora, em sonho.
Os sorrisos e vozes que eu ouvia não se desfizeram antes de mim. O rompante da mulher, segurando o bebê, no portal de sua cabana foi o vulto de um fantasma. E o meu olhar fixou o dela, incrédulo. Na medida que um olhar pode não acreditar na lógica. E o olhar da mulher. Eu não distingui o bebê. Havia um bebê? O olhar dela devolvia incredulidade, diante de um fantasma.
– Já disse para ninguém passar por aqui!
Mal sabia o poder de uma casa pequena, uma mulher suja, mal segurando um bebê que preenchia seu braço. Ou era o volume de sua roupa? Mal sabia o poder de uma mulher empoeirada, no alto de seu rancor, exorcizar. Meus olhos, talvez, se arregalassem para mim mesmo. Como tentando transpassar um holograma.
Mas eu pisava a terra e respirava a poeira, que pareceu soprada pela voz da mulher. Uma mão a me empurrar em tapas no ar.
– Já disse para ninguém passar por aqui!
A palavra, menos que a voz, anunciava uma desarmonia. Quem era eu para estar ali, naquela rua? Com que direito um desconhecido anda por uma rua, como se assoviasse, como se corresse, como se cantasse? Com que direito alguém pode fechar assim os olhos, em qualquer cidade que seja? Como pode ignorar a poeira? Essa poeira, que o faria tossir? Com que direito alguém pode imaginar uma lembrança, enquanto não se tornou espírito, inatingível, intacto?
O espanto da mulher era um ímpeto. Como se torna assim impossível calcular o tempo? E mesmo mensurado, como pode, ainda assim, ser irrelevado? Quando então eu estava? Eu girava coberto de areia fina no ar. Porque toda imagem é sempre borrada. E na limpidez dos olhos da mulher, muito vivos, eu era o borrão. E ela nem franziu. Seu rosto indicava tudo. Como se apontasse as pedras no chão, as tonalidades azuis do céu, cada grão de poeira. Mas no girar de seus olhos, havia um disfarce, que mal podia ser flagrado. Um ensaio. Sair e gritar. Não o gesto, mas um tremor. No som? Na imagem? Um tremor que era um esboço. Um modelo imperfeito, mal replicado, que pude perceber enquanto suspirava. E pude-me rir em pequena vitória. Porque ela, a mulher, apenas queria. E, feito animal acuado, inchava, redimensionava em artimanha do instinto, a mais usual na natureza, a mais banal. Ela também disfarçava de rosto duro, seu leve tremor, que a fez flutuar um pouco, fora da casa? da rua? da cidade? Apenas fora, como fora de um foco.
A criança, de lado, era a única verdade. A criança, um detalhe, era mais. E assim sua realidade era validada. A criança pendurada no braço era a verdadeira rainha a quem eu e a mulher espichada deveríamos venerar. Mas a mulher, no desespero, não do perigo, mas da posse, mal segurava (a criança? a casa? a terra? a poeira?) Mal, assim como eu, mantinha-se em si. E ambos, nós dois, perdemos um centro, num átimo. Um pedaço de pedra, o mais ínfimo, pode perfurar carnes.
Por um momento, ficamos desarmados um para o outro. Expostos. Por um ínfimo pedaço de tempo… Eu, muito mais fantasma, transitório, pisando na terra, em heresia. Ela, uma realidade trêmula assentada pelo bebê, muito maior, porque era o senhor da poeira, a que eu não tinha o direito de tocar de alguma maneira. Da poeira, que marcava de cara suja a mulher, em carne e osso, à meia luz. Como um receio.
O instante. Um único instante, e temos um reinado. A mulher, uma serva, escondendo o herdeiro do trono. Eu, descendo a ladeira, como se, infantilmente, fingisse nenhuma frase ouvir. Apressava, renegado, meu próprio exorcismo. Ladeira abaixo, perna após perna, para fora (da rua? da cidade? da terra? da poeira?)
A mulher, na porta da casa ficou com a rua sob os pés. E seus pés marcados, como um leve peso, contava com o tic-tac do seu coração. A poeira assentava. Assentaria, como criatura morta, rindo, já rente ao chão, da disputa humana pelo que não era, de fato, de ninguém. A rua tão pisada…
Cumprido meu ritual, pois a quebra exigiu sangue. Pois a quebra, em átimo de uma voz, brusca, rogou um sacrifício de algo já morto. Insignificante, apesar do brilho de luz, ofuscante. Fui expulso da minha própria rua. Ainda que eu invadisse a casa, colocasse bandeira, como nas brincadeiras de outros tempos, já estava excomungado. Ainda que, toda tarde, fosse eu, naquela porta, segurando o bebê, eu já não era. E esse verbo foi dissipado junto com a poeira. E, assim, à mulher, eu achava, do alto de um orgulho de fantasma, passar o bastão. Que, pelo seu olhar, a pressionava de angústia no rosto, enquanto meu coração de bicho acelerava.
Decretava (a criança?) que a poeira soprasse e limpasse olhos de criancinha em voracidade a absorver a imagem, como se a criasse em realidade do tamanho da própria fé no futuro.