Um conto de Henrique de Oliveira Lee
Henrique de Oliveira Lee (李 嘉 哲, Lee Kah Tche), nasceu em 1979 em Asunción, Paraguai, reside no Brasil desde 1983. Atualmente, mora em Cuiabá. Lê e escreve, cultiva mandioca. É psicanalista e professor da UFMT.
***
“Não há nada fora do texto”
A mãe e o menino aguardam na sala de espera do Pronto Atendimento. A mãe escuta a voz rouca do médico chamando a sua senha de dentro do consultório 12. A mãe e o menino trocam olhares e se levantam, ambos entram na pequena sala e se acomodam nas cadeiras em frente à mesa do médico, enquanto este terminava os registros no prontuário do paciente da consulta anterior.
Dispensando qualquer tipo de cerimônia de apresentação, a mãe partiu direto ao assunto:
– Doutor, meu filho está estranho, hoje faz uma semana.
Sem levantar os olhos de um papel onde lançava hieróglifos enigmáticos o médico perguntou:
– Mas o que é que ele tem?
– Bom…, disse a mãe titubeando, isso não é fácil de dizer, mas o senhor com certeza verá por si mesmo.
Aquela resposta da mãe foi suficiente para conquistar a atenção e a curiosidade do médico, que finalmente levantando os olhos do papel fitou fixamente o menino e perguntou:
– Então, rapaz, o que é que você tem?
-“Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para outro, canso o corpo enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora. (Al-Berto, Horto de incêndio, p. 66)”
– Estranho… ao mesmo tempo soa muito familiar…, disse o médico, mais para si mesmo do que para o menino e sua mãe.
– Está vendo, doutor, eu não disse?! , exclamou a mãe como que tentando desenhar algo invisível com um gesto das mãos.
– Hmm… você poderia, por favor, descrever mais precisamente o que está sentindo, meu jovem? , inquiriu novamente o médico.
– “Eu não posso fazer isso seriamente: mas o mal que sofro é terrível, de viver no fundo dessa confusão malsã e inconsciente das coisas.”(Stéphane Mallarmé, Igitur, p.113).
– Ora, se você não pode me dizer “seriamente” o que está sentindo, como espera que eu possa lhe ajudar? Que tipo de pessoa é vc que não é capaz de levar à serio nem a preocupação da sua própria mãe? Escute, rapaz, você já é bem grandinho e tenho certeza que viu que a sala onde vocês estavam esperando esta consulta está lotada de gente precisando “seriamente” de atendimento. Eu não tenho tempo para brincadeiras, disse o médico sem tentar esconder os sinais da exasperação que as respostas do seu paciente lhe causara.
– Bom, já que o rapaz aqui está nos dizendo que não pode falar “seriamente”, eu preciso que a senhora me conte quando começou a notar algo de diferente no seu filho?, perguntou o médico virando-se para mãe, ignorando temporariamente a presença do menino.
– Pois sim, doutor. Notei a diferença após um acidente ocorrido na escola. A bibliotecária, da Escola de onde meu filho estuda, conta que ele perguntou por um livro, que ela não se lembra mais exatamente qual, mas cuja localização o sistema indicava estar na estante K. Passado um breve intervalo de tempo, ela escutou um grande estrondo. Ao se aproximar da fonte do barulho ela viu que a estante K inteira havia desabado, levando ao chão os livros entre o 811. R797h.1997 até o 981. H722r. 1984. Debaixo daquela montanha de livros ela suspeitou que pudesse estar o meu filho e escavou com as mãos até conseguir remover dos escombros o seu corpo desmaiado. Ah sim, devo acrescentar ainda que a bibliotecária mencionou que dentre a montanha de livros havia um livro que não pertencia à estante K e que pela lógica não deveria estar ali. Trata-se, segundo a bibliotecária, de um título catalogado como 150.195 L129s.P 1992. Desculpe por tomar o seu tempo incluindo em minha fala este tipo de detalhe, mas como eu sou leiga creio que não cabe a mim decidir quais informações podem ou não ser do interesse do senhor. Seja como for, assim que fui comunicada do ocorrido me dirigi imediatamente para Escola e encontrei-o já acordado deitado na maca da enfermaria. Estava tão assustado que quase nem notou que eu havia chegado. Perguntei a ele se estava sentindo dor ou qualquer coisa diferente, ele permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois levantou os olhos cheios de preocupação e disse : “Há coincidências e causalidades – disse-me meu filho – com as quais se morre de rir, e há coincidências e causalidades com as quais se morre.” (EnriqueVila-Matas, O mal de Montano, p. 17). Daquele momento em diante, ele ficou assim como o senhor está vendo. Eu sei que o certo seria ter trazido ele ao médico logo após o acidente para verificar se não houve algum tipo de dano imperceptível, mas nós não temos plano de saúde. O senhor sabe, essas consultas custam uma fortuna para nós que temos que pagar pelo particular. Além do mais, eu tinha esperanças que pudesse ser apenas um estado temporário de choque emocional provocado pelo acidente. Quis acreditar que com um pouco de repouso ele logo ficaria melhor. Mas pelo que o senhor pode ver, doutor, parece que não é algo tão simples assim.
– “Doutor, deixe-me morrer. (Franz Kafka, Um médico rural, p.16)”, disse o rapaz impaciente, interrompendo a conversa da mãe com o médico, puxando-o pelo jaleco para obter a sua atenção.
– “Ora essa, estou fazendo papel de bobo aqui. (Moliére, O doente imaginário, p.99)” , respondeu o médico entre os dentes afastando as mãos do menino e sacudindo do jaleco as hipotéticas ameaças invisíveis deixadas por aquelas mãos suadas e suplicantes.
Sem se dar conta dos sinais inequívocos da sua própria alteração o médico olhava alternadamente para as mãos e para o rosto do menino, talvez na expectativa de que o menino finalmente revelasse qualquer coisa, algo que pudesse ser uma peça minimamente aproveitável naquele ridículo quebra-cabeças mental que o médico montava na tentativa de estabelecer o diagnóstico do mal que afligia seu paciente. O menino ensaiou iniciar uma frase, o médico esbugalhou os olhos na esperança de colher a tão aguardada revelação, mas sua boca trêmula apenas emitiu alguns sons incompreensíveis. Frustrado, o médico agitava os braços enquanto dizia:
– “Vamos, continue, merda! (Lacan, Seminário 17, p. 192)”
O menino trazia um semblante sofrível, talvez quisesse mas não conseguia falar. Só podemos especular, nunca saberemos. Evidentemente, alguém que não fala não será capaz de nos esclarecer se não consegue ou simplesmente não quer falar. A afasia do filho angustiou ainda mais a mãe:
– “É grave o seu estado? É realmente grave? (…) Há alguma esperança? (Lúcio Cardoso, Crônica da casa assassinada, p.78)” , perguntou a mãe ávida por uma resposta sobre a doença do filho e talvez por isso ignorando que ela mesma já estava doente.
– “Se eu tivesse assistido mais L.A. Law e lido menos Dostoiévski, saberia o que está acontecendo aqui. (Philipe Roth, Operação Shylock: uma confissão, p. 156)”, respondeu o médico surpreso com a própria resposta.
– “O senhor está se sentindo bem, doutor? (Rubens Fonseca, O seminarista, p. 24)” , perguntou a mãe notando algo diferente no médico, mas não ainda em si mesma.
– “Eu me sinto um pouco estranho. (Samuel Beckett, Fim da partida, p. 42)”, respondeu o médico finalmente entendendo tudo, ainda que tarde demais.
Enfim, todos nós nos demos conta que é tarde demais. Foi assim que descobrimos que “não há nada fora do texto (Jacques Derrida, Gramatologia, p. 199)” e por isso também não existe distanciamento seguro capaz de evitar o contágio entre narrador, leitor, autor e personagens. “O futuro está demente: estamos todos contaminados. (Caio Fernando de Abreu, Onde andará Dulce Veiga?, p. 79)”