Um conto de Larissa Campos
Larissa Campos nasceu em Manaus (AM), em 1987, mas é mato-grossense de coração. Estudou Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Se considera uma ativista do texto, dessas que levanta a bandeira das palavras e faz da escrita um instrumento de luta, no sentido mais íntimo: as grandes e pequenas batalhas de dentro, o olhar mágico para o cotidiano, a vontade de registrar as cenas que se acendem na memória e que não quer perder. Jornalista, escritora, comunicadora e, antes de tudo, mulher, Larissa teve contos selecionados para as antologias Ser, nascer e desnascer – Enquanto Mulheres (Primavera Editorial, 2021) e Coletânea OFF Flip 2022 – Contos. O livro de contos A casa do posto (Selo Auroras, Editora Penalux) é sua obra de estreia. Para mais informações sobre a autora, acesse https://www.instagram.com/laricampos10/.
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A lagarta-de-fogo (conto de abertura do livro “A casa do posto”, de Larissa Campos)
No pátio do posto, eu morri pela primeira vez. Não recordo o dia exato, mas me lembro perfeitamente de como tudo aconteceu. Durante quatro anos da infância, morei em um posto de combustíveis: Rodovia dos Imigrantes, sem número, Autoposto Milão. Os clientes eram, em sua maioria, caminhoneiros, e a liberdade para brincar no pátio dependia do número de carretas que estivessem por ali. Quando havia muitas delas, devia-se ficar dentro de casa. Minha irmã e eu obedecíamos. Enquanto o posto permanecia cheio, olhávamos pela janela, à espera do momento de ser livre para brincar.
Contavam-nos histórias de crianças marotas que, por correr entre os caminhões, morreram esmagadas. Era uma forma de mostrar que a desobediência pode ter consequências nefastas. Nos tempos da casa do posto, nunca vi acontecer com nenhuma criança, mas assisti ao fim de muitos cães e gatos que, em segundos, viravam uma pasta embaixo das rodas dos caminhões. Esses veículos eram meu relógio, a medida do meu tempo, por isso a liberdade me faz lembrar de caminhões.
Em suas folgas, meu pai caminhava pelo pátio conosco e explicava sobre cargas, eixos, tração, reboques, semirreboques e carretas. Bem cedo, entendemos que havia diferentes veículos para diferentes tipos de carga. Enquanto apontava para caminhões espalhados pelo posto, ele esclarecia as nossas dúvidas:
— Aquele é um cavalo mecânico, com eixo simples, duas rodas de tração. Quando possui dois eixos, ele é chamado cavalo trucado.
— Qual o coletivo de cavalo, pai?
— Acho que é cavalaria.
— Então tem uma cavalaria por aqui.
Nessas conversas, minha irmã e eu aprendemos a diferenciar carretas de dois e três eixos, a não confundir bitrens e rodotrens, numa matemática de cargas pesadas, comprimentos, toneladas e pares de pneus. Certa vez, comentei com meu pai que gostaria de conhecer um cavalo mecânico por dentro e tive o pedido atendido meses depois, como presente de aniversário.
Fazia frio dentro do cavalinho incavalgável, o revestimento de veludo nos dois bancos e na cama dava um ar de conforto e maciez. Sentei-me na cama, surpresa com a largura dela, suficiente para acomodar algumas crianças do meu tamanho, e senti um cheiro de morango que irritou as narinas e me fez espirrar por vezes seguidas, sem, contudo, atrapalhar o reconhecimento do território. Pude reparar até mesmo no compartimento atrás de um dos bancos, no qual se acumulavam revistas com mulheres peladas nas capas; mirei meu rosto no retrovisor, estava corada. De repente, a voz paterna surgiu com mais uma de suas ordens:
— Acabou. Pode descer daí.
Morávamos num projeto de lar que se dividia entre a casa e as instalações do escritório do posto, onde meu pai, Jorge, era gerente; mas não éramos os únicos moradores do local. Meus avós paternos administravam e moravam no restaurante que ficava por ali. Havia também a borracharia, que abrigava um casal e seus dois filhos pequenos.
Num fim de tarde de pouco movimento, deixei a casa-escritório em direção ao restaurante. Na entrada, dois coqueiros de pouco mais de um metro e meio davam as boas-vindas, e algo reluzia entre as folhas de uma das palmeiras. Uma lagarta-de-fogo. Conforme ela se movimentava, suas cores mudavam, ora mais amarelada, ora mais esverdeada. Me aproximei. Eu encarava a lagarta, ela me encarava, um verdadeiro encantamento.
Então um portal se abriu na pelugem e me hipnotizou, provocando o desejo de entrar no mundo do bicho e conhecer mais daquele diminuto cosmo a se mover, em câmera lenta, diante dos meus olhos. Agarrei a lagarta com a mão esquerda e senti o fogo que, até então, dançava à minha frente; enquanto a mão queimava e eu via chamas amarelas e alaranjadas que ninguém mais via, gritos de desespero saíam de uma boca que, pela primeira vez, declarou:
— Vou morrer!
O braço esquerdo amoleceu, a cabeça pendeu, as pernas enfraqueceram e fui ao chão, desmaiada. Não vi quem me encontrou, o desespero à minha volta, ou mesmo o caminho de carro até o hospital; só acordei horas depois, num quarto branco, enquanto recebia doses de soro e remédios na veia. Ao acordar, minha mãe me acolheu aliviada, e a enfermeira que estava em pé ao lado da cama aconselhou:
— Não seja tão destemida, mocinha.
Não levei o conselho em consideração, certa de que viveria outras mortes pelo caminho.
Bastou uma semana para que se esquecessem do acontecido e parassem de falar sobre ele, mas aquele dia permanece vivo em mim, tão vivo quanto o fogo da lagarta. Até hoje, sempre que estou diante do perigo, sinto a mão esquerda queimar. Assim tem sido desde os meus seis anos, esse calor intenso e persistente, sempre que algum risco me avizinha. A lagarta-de-fogo é minha sentinela, meu guardião.