Um conto de Marcelo Spomberg
Marcelo Spomberg é carioca, mas passou a maior parte da vida morando e trabalhando em São Paulo. Estudou História na FMU e fez pós-graduação em Linguagem Cinematográfica na Estácio de Sá. Trabalhou no audiovisual, produzindo e dirigindo filmes de ficção, documentários e programas de TV. Participou de dezenas de festivais de cinema, ganhando vários prêmios nacionais e internacionais. Foi criador e curador do Festival Literário de Extrema por 4 anos. Tomou gosto pela escrita, fazendo roteiros para TV e Cinema. Está finalizando o primeiro livro de ficção. Escreve regularmente para o seu blog Delivery Não Entrega.
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Um dia normal no país das igualdades.
O sábado amanheceu ensolarado e frio. Os cachorros deitados na varanda da casa, olham parecendo torcer para que o carro não ligue. É o que sempre fazem quando Marcos entra no carro. Os dois ficam deitados, olhando com o canto dos olhos, numa torcida triste para o carro não ligar.
O combustível etanol, frio, não ajuda. É sempre a luta matinal para ligar o carro. Após insistentes tentativas, Marcos consegue dar a partida. Os cachorros não se mexem. De tão quietos, nem se repara que respiram. Pela janela aberta, Marcos olha para os cachorros e grita; “cuidem da casa”. E sai com o carro. Os dois não se levantam. A rotina de seguir o carro até a entrada do sitio, hoje não acontece.
O carro atravessa a estrada vazia. Não se vê carros, nem pessoas, apenas a paisagem emoldurada pela tranquilidade do lugar. O percurso de 10 quilômetros ainda oferece uma paisagem rural, com a visão dos sítios e das fazendas, com suas vacas, cavalos e galinhas. Na propriedade do seu Osvaldo, Marcos para o carro próximo ao curral, onde Natalino espera pelo leite que está sendo retirado da ordenha das vacas. -“Bom dia”, Marcos cumprimenta as pessoas que esperam pelo leite fresquinho.
Natalino olha para Marcos e fala se antecipando à suposta cobrança, que acredita vir a acontecer. –“Podemos deixar o serviço para o início da próxima semana?” Marcos olha para o rapaz sem confiar na proposta. –“Se você não for dar cano, nem adiar, pra mim está bom essa data.”
Marcos se aproxima do seu Osvaldo, que ordenha a vaca Jersey, presa pelo anel de ferro colocado em sua narina. – “Guarde 2 litros, que na volta da cidade eu pego.”
Osvaldo concorda com o menear da cabeça.
Enquanto se afasta em direção ao carro, Marcos provoca profeticamente as pessoas – “Aproveitem essa linda paisagem bucólica, pois não vai demorar para ficar na lembrança nostálgica do passado.”
Na rodoviária, Marcos marca sua viagem para inicio do mês. Como é sexagenário tem direito de viajar sem pagar, mas tem que se programar com antecedência de no mínimo 20 dias, para conseguir marcar, pegar a passagem e usar o benefício. São apenas dois idosos por ônibus. Dessa vez, conseguiu.
Em uma loja de produtos regionais próxima da Rodoviária, Marcos experimenta as ofertas para degustação enquanto bebe um iogurte de frutas vermelhas.
No caixa, ele paga a compra; um pacote de biscoito de polvilho e um iogurte, enquanto comenta; –“Essa é a primeira vez que vejo uma igreja evangélica ceder espaço para um comércio.” A funcionária olha para ele e nada responde.
Sem Marcos mostrar interesse, outra pessoa responde. –“O aluguel era muito caro. A congregação conseguiu construir um templo…”
Ele se afasta e senta no banco do caixa ao lado, que está vazio. Abre o pacote de biscoito, e se põe a saborear o biscoito e o iogurte.
As pessoas que entram na loja, o cumprimentam como se fosse alguém que trabalhasse na loja, ou mesmo, como se fosse ele, o dono.
Uma chuva intensa começa na cidade, retardando sua vontade de sair do local. Um casal de bicicleta chega molhado. Param na entrada da loja e a mulher um tanto encabulada pergunta se Marcos conhece alguma loja de 1 real. O homem tenta fazer a mulher se afastar. A loja parece fora do padrão, que acredita pertencerem. Marcos fala para o casal -“Essa aqui tem coisas de 1 real”. O homem com o olhar desconfiado e a mulher com uma expressão agradecida, permanecem parados. Marcos sente, no fundo da alma, a fome do casal, misturada com o desejo de entrar na loja. Fala como se fosse o dono da loja. “Hoje tem cortesia … até 20 reais de consumo, vocês não pagam.”
O homem olha para a mulher, que empolgada, pega sua mão e entram na loja.
Por onde passam vão deixando o desenho da pisada em forma de pegadas molhadas. Outra atendente olha o casal com certa desaprovação, das marcas que vão produzindo no passeio pela loja. O casal pega alguns produtos, que contabilizam para não ultrapassar os 20 reais. Carregam os produtos apertados ao próprio corpo.
Na porta da loja um conhecido encontra com Marcos e o convida para ouvir uma música no seu novo carro, que está parado no estacionamento da loja. Os dois homens correm e entram no carro tentando se proteger da chuva. O som é ligado e a música “Hotel Califórnia” – da banda Engles envolve a atmosfera no carro. Os dois homens se absorvem em comentários e lembranças que a música provoca.
Na porta da loja uma gritaria. O casal do lado de fora da loja está no centro da discussão e sendo acusado de roubo. A atendente puxa com força os produtos que a mulher trás apertados ao corpo. –“Você tem quer pagar. Aqui não é casa de caridade”
O homem, com a expressão transtornada, não consegue falar nada. A vergonha se apoderou dele. Ele apenas olha assustado.
A mulher, apertando os produtos no próprio corpo, grita –“Cadê o dono da loja? Ele disse que até 20 reais é cortesia!”
Atendente irônica. –“Dono da loja? Você acha que o dono da loja aparece na loja?”
A mulher confusa com a situação. Olha para o seu homem e para as pessoas que os cercam, sem nada dizer.
Outra atendente provocativa –“Cortesia? Vou chamar a policia e vamos resolver …”
Marcos de dentro do carro repara a confusão na porta da loja. Seu amigo comenta –“Parece que pegaram alguém roubando”. Marcos concorda -“A situação não está …” Antes de terminar a frase, repara se tratar do mesmo casal que havia falado a poucos minutos. Em um pulo, sai do carro e vai em direção a confusão. Se aproxima abrindo espaço entre as pessoas, que cercam o casal.
O homem ao lado da mulher se mantém calado e humilhado, quando repara em Marcos que se aproxima. A primeira coisa que faz é dar um soco no rosto de Marcos que desmaia na hora.
A confusão se torna mais séria, quando a polícia e a ambulância são acionadas.
As pessoas em volta cercam o casal e não deixam que se afastem do local. A mulher, com os produtos pressionados ao corpo, tenta explicar que o homem caído é o mesmo que havia falado da cortesia de 20 reais. As pessoas em volta gritam e acusam o casal. –“Ladrão, covarde, bater em um idoso.”
A primeira coisa que faz a polícia ao chegar é algemar o casal e colocá-los na viatura. O policial pergunta para as funcionárias da loja o que aconteceu. A atendente explica. –“O casal queria levar vários produtos sem pagar”. Outra funcionária completa apontando para Marcos caído no chão. –“O marido da mulher deu um soco no rosto do senhor.”
O policial comunica que vai levar para a delegacia os produtos que estavam em posse da mulher, por se tratarem da prova do roubo,
A ambulância faz o resgate de Marcos, que continua desacordado. O socorrista fecha a porta da ambulância.
Dentro da viatura policial, o casal permanece calado e com a expressão assustada, como dois animais enjaulados.
Os dois veículos saem com suas sirenes ligadas.
Os carros desaparecem no meio da chuva intensa que cai na cidade, levando o casal, como se fosse uma sujeira, que deveria ser removida do convívio social.
Um cliente comenta. –“Os olhos deles estavam vermelhos. Acho que são drogados”. Uma outra atendente reclama. -“O casal sujou tudo com as pegadas molhadas.
Extrema – 19/05/2019