Um conto de Mariana Salomão Carrara
Mariana Salomão Carrara é paulista nascida em 1986. Tem um romance juvenil publicado em 2008, um livro de contos (Delicada uma de nós) publicado em 2015 e um romance (Fadas e copos no canto da casa – Quintal Edições) em 2017. Recebeu prêmios nacionais como Off-flip, SESC-DF, Felippe D’Oliveira (2015 e 2016), Sinecol, e Josué Guimarães. Publicou um conto na revista do SESI/SP, e outro na revista do SESC-SP. Uma versão incipiente do romance Fadas e copos no canto da casa foi finalista e menção honrosa no Prêmio Nascente USP-2009.
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O coração da casa
A casa apodreceu na gordura rançosa desse coração colesteroso com seus porcos mortos peixes descongelados queijos que vão se tornando mais queijosos no calor de um coração parado.
Ontem à noite descobri que a geladeira é o coração de uma casa, um coração gelado. Ontem à noite o coração parou. A geladeira estourou pelas veias entupidas e verteu uma água manchada de ferrugem, e ficou ali endurecida, sem resposta.
No telefone me disseram que o homem do conserto viria no dia seguinte, entre oito horas da manhã e seis horas da tarde. Não, não podia precisar um período. O nome do homem do conserto, informaram, seria Ulisses. Respondi que aguardaria bordando, e ri sozinha.
Ninguém me ajudou. Percebi que nesta casa geladeiras e corações são assunto meu. Cancelei pacientes, troquei plantões, avisei a todos: amanhã não vou a lugar algum, o coração parou.
Acham que não nos custa aguardar tanto tempo na própria casa, mas que casa é esta assim vazia ao meio dia de uma terça-feira, nunca imaginei que o sol da janela chegasse a tocar o batente daquela porta – o que me faz querer saber também o que ando fazendo dos meus domingos –, que vizinhos são estes com essas conversas no corredor, que barulhos são estes nos encanamentos feito um intestino que só se escuta no silêncio de uma casa infartada ao meio dia de uma terça-feira.
Não gosto mais deste quadro, acho que nunca gostei. As fotos das meninas também não dizem grande coisa. A escrivaninha na sala não faz o menor sentido, bem no meio dos ecos da cidade toda, obras distantes, buzinas, ambulâncias, gostaria de um quarto pra mim. Não precisava de muita coisa, de repente uma pequena cama apenas para as noites em que o Carlos dorme muito cedo, na verdade quase todas as noites nosso sono é diverso, seria melhor uma escrivaninha e uma cama para mim, que eu fruísse com muito mais liberdade os sobressaltos das minhas insônias, ninguém pedindo pra apagar o abajur.
As comidas estão amontoadas em baldes cheios de gelo. O balde das meninas está quase vazio, mal comem aqui, iogurtes de ameixa, já falaram tanto que não gostam e eu esqueço e compro. Cada iogurte de ameixa que elas notam na geladeira é um dia a mais em que não gostam de mim.
Olho o balde do Carlos. Carlos come muito mal, é quase impossível amar um homem que coma o que está neste balde, amar um homem incrustado em hábitos de tamanha bestialidade. Que homem é esse que come de pé emplastos de cheddar em micro-ondas, que casa é esta com esse sol às três horas da tarde que alcança até a pia do banheiro sem que eu soubesse, que cama é esta que eu divido com esse homem que está desintegrado neste balde boiando nos gelos, espumas de lipídios.
É preciso que este balde nunca mais esteja aqui. É preciso um quarto para mim. Como tocam bonitos os sinos da Igreja vizinha, às seis horas da tarde. E Ulisses não veio.