Um conto de Melissa Suárez
Melissa Suárez é poliamorosa de linguagens. Como dramaturga, ganhou prêmio do Corredor Latino-Americano de Dramaturgia com sua peça Duas em 2018. Como escrevinhadora, publicou seu primeiro livro, Travessências, pela Patuá, um dia antes da pandemia. O conto abaixo está no Via por 7 minutos, de lançamento agora em abril, também pela Patuá.
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E nós?
Melissa Suárez
Dessa vez começou por causa de dois cruzeiros.
Dois cruzeiros era o preço de um saco de pipoca ou da passagem de ônibus.
As meninas sabiam disso porque sempre iam a pé, lá da rua Tasman até a Maria Iracema Munhoz. O pai falava que se ele andava nove quilômetros para ir à escola quando era criança, as filhas dele bem que podiam andar dois. Mas até os pais durões por vezes se condoíam e este dava 2 cruzeiros para cada uma ir de ônibus em dias frios ou de chuva. Só que as meninas, acostumadas a andar, guardavam o dinheiro para comprar pipoca. Era essa a sua grande travessura.
No caso, os dois cruzeiros eram o troco do gás. A mãe pediu ao pai o dinheiro do gás. O caminhão do gás apareceu. Ela comprou o gás, mas, na hora de ter o troco de volta, o rapaz, naquele jeito malandro simpático não deu chance “Fica pra caixinha?”, era uma pergunta retórica. A mulher ficou sem ação, não quis ser rude. Ficaria por isso mesmo.
Não ficou.
Dinheiro geralmente é um problema, mas aquela família tinha um jeito próprio de agravar os seus. Uma vez, as meninas tiveram a tarefa de ir até o mercado municipal trazer mantimentos. O pai fez a conta de quanto seria cada item da lista, somou ao gasto da condução e deu o dinheiro certo para compras e frete. Deu também o endereço do mercado: Rua Padre Lustosa, travessa da Marechal.
O primeiro problema foi achar a rua do mercado. As meninas, como dito, sabiam chegar no centro, ultrapassaram a pontezinha que atravessava o rio que hoje está escondido sob a Av. Faria Lima, chegaram até a referência indicada e leram a placa: Rua Pe Lustosa. Ingênuas, como as crianças de 8 e 9 anos ainda são (ou deveriam ser) e com certeza eram em fins de anos 50, entenderam que estavam no local errado. Andaram um tempo pelas ruas ao redor. Nervosas, não podiam demorar, o pai também contava o tempo. Até que perguntaram. O guarda informou qual era a rua, com o adendo da explicação sobre a abreviação da palavra padre.
O segundo problema foi pagar as compras. As verduras e legumes estavam mais caros, e no caixa, as irmãs perceberam que não haveria dinheiro para pagar tudo. Decidiram usar o valor da condução para complemento e voltar pra casa a pé.
Ao chegarem, encontraram o patriarca nervoso pela demora. Quase apanharam. Como defesa, elas contaram o ocorrido e a decisão. Ele riu, riu muito, riu alto. Chamou-as de tontas, pois era só diminuir a quantidade de tomates ou batatas que assim teriam dinheiro para o ônibus.
Talvez tenha sido o nervoso de, primeiramente, se sentirem perdidas ou talvez a ingenuidade da idade não permitiu que elas tivessem o raciocínio descrito. Mas será? Será que elas ousariam não trazer todos os itens exatos da lista? E se não trouxessem, qual seria a consequência?
A mãe, por sua vez, não ousou. Apenas não exigiu o troco do gás e isso foi considerado grave erro.
O chefe de família vem almoçar e pede o troco do gás. A mulher explica o que houve. Daí começa a discussão, os berros, a louça jogada ao chão, os constantes impropérios e acusações mútuas.
Não faz diferença se dessa vez a mãe apanhou ou não, ou se dessa vez as meninas conseguiram salvar algum prato, recolhendo a louça antes de terminada a refeição. Não faz diferença também se outro objeto foi ao ar, como daquela vez que a mãe amparou com o braço a máquina de escrever atirada em direção ao filho adolescente. Ou ainda, quando a neta testemunhou o buraco na madeira da mesa, prova de que era verdade o que tinha ouvido a avó contar: o avô tinha lançado a cadeira de ferro ao centro da cozinha.
O que fez a diferença, dessa vez, foi que, depois que o marido saiu de volta ao trabalho, a mãe decidiu: “Vou largar o pai de vocês.”
“Vou largar teu pai, cansei dessa vida, vou embora.”
E repetindo essas palavras, ela foi, autômato, até o berço do caçula. Pegou o bebê que dormia e se dirigiu à porta sempre repetindo “Eu vou largar o pai de vocês.”
E saiu.
Deu-se algum tempo, mas não muito, até que a mais velha, assustada, raciocinou à irmã “E nós?”
E saiu correndo, a porta ainda aberta, atrás da mãe. A mais nova começou a correr também.
As meninas avistaram a mãe já na subida da Tasman.
Só os eucaliptos ouviam: “Mamãe, espere por nós”.