Um conto de Natália Zuccala
Natália Zuccala é escritora, dramaturga e professora. Seu primeiro livro, Todo mundo quer ver o morto, foi lançado em 2017, pela editora Patuá. Atualmente, publica contos sobre e em quarenta no site Agora estou aqui (agoraestouaqui.com), que está construindo junto com artista visual Malua. Formou-se no curso de Letras na Universidade de São Paulo e está cursando especialização em psicanálise no instituto Sedes Sapientiae.
O conto abaixo foi publicado originalmente na antologia Contos brutos: 33 textos sobre autoritarismo, organização de Anita Deak, editora Reformatório, lançado na FLIP, em 2019.
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Um passo em falso de cada vez
Desperto 45 minutos antes do necessário. Não me ajeito na cama para voltar a dormir – os olhos recusam-se a fechar – não me levanto tampouco: para preparar o café, ler jornal, tomar um banho ou olhar pela janela. Permaneço apenas, durante os minutos horizontais que me restam, na mesma posição em que estava quando acordei. É segunda-feira outra vez. A última de outubro. Logo acaba o mês. E o ano. Quantas segundas hão de raiar após domingos nos quais o sol se pôs?
O despertador afinal toca e os olhos, que mal piscaram durante quase uma hora, estão secos (são incapazes de lubrificar a visão). Esfrego os punhos sobre as pálpebras por costume e nada mais, elas incham levemente. Ao sentar à beira da cama, assalta-me a certeza de que esta noite tive sonhos intranquilos. Pesadelos. Talvez fantasmas ou outras assombrações.
Boto o primeiro pé no chão, com cautela, e, assim que o segundo tenta apoiar-se à frente do outro para esboçar um caminho, o anterior vacila e logo cede. Caio com a cara no chão – os pés já não desejam caminhar. A queda é tão leve quanto é a força das pernas neste momento, não me machuco muito. Ainda assim, doem os ossinhos da bochecha (golpearam o piso frio do quarto).
Com algum custo, os joelhos se levantam e apoiam-me num impulso para a subida: estou em pé. Os dedinhos relutam, não querem acordar, dançam em espasmos. Desobedientes, quase me impedem de andar.
Agarro o bule de água fervente para derramá-la sobre o pó do café no filtro de papel e, neste momento, perco a mão direita. Ela se desarticula do resto do corpo e quase atenta contra mim, queria lembrar-me com que sonhei. Parte da água cai na barriga e machuca a pele, com o que sobra a mão esquerda passa o café. Os dedos perguntam-se como hão de escrever no quadro negro hoje.
No ônibus cheio, os antebraços prometem separar-se do corpo. As palmas das mãos agarram a barra para não caírem. Os ombros vacilam na tentativa de manter fixas ao tronco suas extensões, por vezes acabam por derrubá-las. As mãos (queimam de tanto resistir à queda) exitam em me atracar. Ninguém vê a encenação convulsiva que as minhas extremidades ensaiam na avenida, isto é certo: uns dormem, outros escutam os fones de ouvido, uma moça se maquia há 10 minutos, eu ainda tenho mais 30 de trajeto, nos quais é preciso permanecer aqui, vertical.
Apregoa-se o pensamento à visão – os olhos nunca descansam – para ajudar na tarefa de ancorar o corpo: conto os pingos da chuva que escorrem pela janela embaçada. Todos os vidros do coletivo estão fechados, faz calor e o ar – que tem cheiro de sono, suor e metal – não circula. Como será amanhã?
Solto todo o peso sobre a cadeira empertigada diante do quadro negro e, observando as carteiras à frente, percebo que ninguém faltou hoje (apesar do tempo e dos tempos, estão todos irremediavelmente aqui). O estômago anuncia sua autonomia em relação aos outros órgãos: fala, revolve-se e pretende descolar-se das entranhas. Preciso vomitar, mas não posso (diante de todos eles não). Aqui sou um modelo de conduta, má ou boa influência, daí a necessidade de controlar tudo o que eu digo ou faço. Por isso faço e falo pouco, somente o necessário.
A boca engole, sem mastigar, o vômito, que quase chega aos dentes, mas então retorna ao seu lugar de origem. As vísceras tentam lançar-se para fora do corpo através do umbigo, seguro a carne na cadeira do professor – pequena para um adulto, maior que as das crianças – e suo.
A garganta reconhece que em breve terá de falar e então percebe que ainda não emitiu um som sequer na manhã de hoje (quem dirá palavras e frases). O relógio da sala fica na parede oposta ao quadro negro, na linha de alcance dos olhos dos professores e diante das costas dos alunos. Eles não o veem, pois cabe a nós monitorar o tempo. Os ponteiros informam que os olhos já estão abertos há mais de 2 horas. Os pulmões suspiram pela primeira vez no dia, alguns alunos bocejam, outros endireitam-se nas cadeiras, muitos respiram somente, todos sabem que é preciso começar, ninguém sabe o que há de acontecer daqui para frente.
No centro de laringe avoluma-se um punho, procuro esquecer que não consiga me lembrar com que sonhei. A chamada insiste para que os professores se certifiquem da presença dos alunos. Apesar do esforço para avolumar a voz, ela se lança pela sala de aula atipicamente aguda, mas não alta (falta força). Eles atendem à lista mais por costume do que por resposta, nunca é preciso terminar de pronunciar seus sobrenomes para que digam “presente”.
Roucos e baixos articulam-se os fonemas que reverberam desde a minha boca até os ouvidos das crianças, que, de seus lugares, atendem aos comandos sem relutar, obedecem sem renitência, realizam e operam. Hoje a linguagem se comporta em favor da ordem. A ausência de questionamentos e a evidência do acato é um alívio para os ouvidos, afinal, os alunos não podem perceber a insubordinação de intestinos que desejam projetar-se reto afora.
Uma mosca ordinária zumbe na primeira fileira e logo em seguida pousa as patas certeiras sobre o livro didático de História do Brasil. Os alunos, que quase leem e quase dormem, descansam o cérebro a escutar o inseto (República Nova é o tema do dia). A lista de exercícios de verificação de leitura é longa o suficiente para mantê-los ocupados até o final da aula e ainda bem: tenho mais 4 dessas pela frente e um corpo cheio de membros.
A jornada de trabalho, após 5 aulas dadas, desdobra-se em outras 3 horas em casa. Entre correções e planejamentos, esforço-me para conter os dentes que se mordem, a baba que se avoluma nas bochechas (escapa um pouco entre os lábios) e a língua que pulula. A boca limpo na manga do agasalho – acordada há 12 horas, tenho mais algumas adiante.
As pernas sentam-me no sofá para tentar conter os pulmões que se acotovelam e acabam por esmagar seu vizinho, o coração. Sorvo uma xícara de leite quente enquanto miro a televisão do apartamento em frente, pequeno tanto quanto o meu. Em casa, não tenho televisor. Os olhos identificam o noticiário da noite, tentam observar quais são as manchetes do dia, talvez ele já esteja dormindo. Não. O velho se levanta e, como tem se tornado um hábito nos últimos meses, vai até a janela me encarar. Sorri enquanto abre a braguilha, coloca o pau para fora e começa a se masturbar. Eu também, feito reflexo, levanto. As mãos tremem as cortinas até fechá-las por completo e então se direcionam à cozinha para lavar a xícara. Ele gargalha, assim que me escondo. Quanta velhice ainda lhe resta?
Os joelhos, mal me posto diante da pia, começam golpear-se, os cílios choram. Contra piso de azulejo o meu corpo e a xícara estilhaçam-se: o primeiro debate-se um pouco antes de se acalmar, os cacos de porcelana rompem-se em pedaços assimétricos, o chão é frio e a lâmpada incandescente pisca. Suor escorre pelo rejunte sujo, as lágrimas buscam juntar-se a ele.
A imagem do velho na janela, já cravada na memória pela acurácia com que se repete todos os dias, eclode, enquanto jaz minha forma física na cozinha. É o encontro da cabeça com o piso e esta imagem (no entanto) o que permite o cérebro acessar a memória do sono. Lembro-me agora com o que sonhei.
Algo como um comércio de bairro: familiar, escuro, abafado e sujo. Ao fundo, recurvada, o nariz quase a encostar nas cerdas da vassoura, uma faxineira tentava limpar o piso sarapintado de sangue, mas só conseguia espalhá-lo mais. À frente, um grupo saudava-se e despedia-se. Pude ouvir o que um deles dizia, enquanto apertava a mão de outro: “O mais importante é desmembrá-los: cortá-los, dilacerá-los e depois varrê-los”.
Trajavam sorrisos fantasmáticos e se fantasiavam de homens comuns, por dentro de suas camisas e camisetas, no entanto, eu sei, vestiam leis.
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Braço e braço, cravados alternadamente no chão, impelem o resto de mim pela sala (vamos em direção ao quarto). Acho que estou cansada. Fico contente por ter fechado a cortina e saber que o velho não pode observar esta cena. Me visse assim, haveria de colocar o pau para fora outra vez e, com ainda mais escárnio, gozaria de minha situação.
Tento, mas como não consigo, apoiar o peso sobre as pernas, levantar o corpo e subir na cama para deitar sobre o colchão. Num arroubo puxo o lençol junto aos cobertores para mim, dou sorte e o travesseiro cai junto. Assim que os olhos se fecham – pescoço apoiado na fronha velha – palavras de ordem costuradas com silêncio e sangue assaltam as retinas sem prenúncio. Logo falta o ar na traqueia e busco estimular os pulmões. Inspirando em trações, tento não temer o passado.
Hoje descanso no chão duro meu corpo, quem sabe possa ter sonhos melhores, ainda assim. Amanhã, porém, espero poder respirar e andar livremente. Afinal, a semana mal começou, ainda é segunda-feira.