Um conto de Nyll M. N. Louie-Alicê
Nyll M. N. Louie-Alicê (pseudônimo de Vinícius Dallagnol Reis) nasceu em Sinop (MT) em 1992, cidade onde sempre residiu. Escreve poemas desde os doze anos, inicialmente usando apenas o pseudônimo Nyll. É formado em Letras pela UNEMAT, campus de Sinop e mestre em Estudos Literários pela mesma instituição. Suas personas dividem-se de acordo com as temáticas, às vezes mescladas: Louie dos poemas curtos e trocadilhos; M. dos escritos que mergulham e se aprofundam nos poços da memória; Nyll, dos pesadelos e noites de insônia; N. dos arquivos panfletários; e Alicê, dos pensamentos “intraduzidos”. Foi premiado em quatro edições do Varal de Poesias da Unemat (Sinop) com os poemas “Os Eternos Peixes de Gelo”, “Ato Falo”, “Medusa às Avessas” e “Tropicapocalipse”; este último incluso em sua primeira antologia, Escatolírica Nokturna (Carlini & Caniato, 2018).
***
O LEÃO E O LAGO DAS AMORAS
I
O que é o medo?
O que seria ele senão toda uma estranha rede de circunstâncias, ora mais esdrúxula do que ocasional, ora mais fortuita do que exótica?
Tal pergunta se faria mais clara para nós se pensássemos, também, no que pensam os grandes nomes do cinema e da literatura de horror – e porque não incluir os gênios das trilhas sonoras de suspense? – o que realmente pensam quando querem criar uma cena que nos propague o mais profundo e absoluto medo.
Um assassinato repentino? O velho jogo do claro e do escuro? Um monstro ou ser inimaginável? Ou, enfim, o desconhecido?
Mas, na verdade, o medo, essa faculdade demasiado humana, tem os seus disfarces. E, cientes e conscientes dessa máscara, não nos aterrorizamos mais com uma cena de morte do que com a certeza da cena de morte. Cena esta que é percebida nos sinais mais simplórios e, aparentemente, distantes da mesma.
Para exemplificar apenas, lembro-me de um filme de terror que, não o tendo assistido, li a crítica sobre. Para além dos elogios contra o já famigerado diretor, foi pontuado que, ironicamente, foi a maestria de seu início que impossibilitou o sucesso de seu desfecho: uma cena pitoresca, em que durante uma mudança de casa, uma mãe decide desvendar o novo ambiente, junto com os filhos, numa brincadeira de cabra-cega. Ela é a cabra-cega. Mas nós não. Seus filhos devem bater palmas para que ela descubra onde eles estão… e é então que os espectadores ficamos afoitos e delirantes, ao ver a mãe perder-se no próprio jogo.
As palmas batem….
Ela sobe as escadas…
As palmas voltam a bater…
Ela entra no sótão…
O som se torna mais alto. De novo, as palmas. Nós vemos as mãos que fazem o som. Mas apenas as mãos, que desaparecem dentro de um armário. E assim, a mãe tira a venda e a brincadeira acaba. Para ela, não para nós.
Ela pode dizer, até ali, que se enganou, que as palmas vieram de outro canto e que, cega, não poderia julgar, ipso facto, pela falta desse sentido. E a única coisa que podemos desejar é que os nossos olhos tenham nos traído como os ouvidos daquela mulher.
O medo, portanto, penso eu, é fruto de dois fatores conjugados. Ver, quando não podemos ser ouvidos. E possuir a total insegurança no meio da mais confortável familiaridade.
Posso confessar, portanto, que nem imaginava metade do inferno que viveria quando, na véspera do dia do carnaval, no meu dia preferido da semana, arrumei as roupas para a festa do dia seguinte. Naquela época contava eu com doze anos. Estava contente porque seria um dia de muita animação e o pessoal da família ia fazer uma espécie de festa com máscaras na chácara de vovó Báucis, algo mais comportado, claro, aproveitável para a única criança que estaria presente. Afinal, meus primos e primas, além dos meus irmãos, preferiram participar de um festival com música que estaria acontecendo no centro. Eu, que era mais do seio da família, decidira ficar.
Cada um já tinha a sua máscara, escolhida antecipadamente, para que elas não fossem iguais. Iguais até certo ponto, claro, pois os casais iriam com as mesmas.
A chácara ficava a uns 50 km da cidade. Conduzia-se por um trecho de rodovia e depois se adentrava por uma estrada de chão até uma propriedade cercada por arame farpado. A cerca possuía uma intermitência ao fundo de um extenso jardim da família, pois era barrada por uma espécie de lago. Este era bem sombreado e, fazendo os seus contornos, se estendia pelo caminho, tendo a borda principal acentuada, cuja ponta partia do centro do jardim, ao lado de uma bela amoreira.
Entre essa distância da entrada para o lago, avolumava-se o casarão de vovó Báucis. Possuía muitos compartimentos internos, com uma área de entrada extensa. O casarão era ladeado por dois corredores, encimados por algumas colunas, e que poderiam receber os convidados remanescentes. Também tinha uma cerca própria, tendo o portão de entrada voltado para um dos corredores de colunatas. O jardim ficava aos fundos e no sentido contrário se estendia uma série de casas dos outros moradores da chácara.
Estavam previstas em torno de oitenta pessoas para a festa. Naquele dia, logo que acordei, chamei meus pais, peguei a mala e a minha máscara (uma de ratinho) e fui correndo para a caminhonete.
Logo que chegamos à chácara, averiguei o que tinha pensado: os casais, de máscaras iguais, pareciam fazer duas comemorações em uma só, como se fosse também dia dos namorados. Havia um casal com máscaras de lobos, outro com as faixas preto-e-branco das zebras; aqui namoravam os esquilos, ali, os gatos. Um casal de águias trocava olhares fulgurantes em frente à mesa dos doces e um par de serpentes se enlaçava figurativamente na primeira das colunas.
– Como está meu jovem Nico?; ouvi uma voz atrás de mim. Era vovó Báucis, fantasiada de coruja. Abracei-a e beijei-a, pedindo em seguida a tradicional benção. De lado, ela segurava outra máscara idêntica a que usava. Era viúva.
Papai e mamãe, com máscaras de cisnes, passaram a trocar palavras animadas com vovó. Aproveitei a distração deles para me entregar a minha, e fui para os fundos da chácara.
Adorava ficar sentado à beira do lago, na borda, à sombra da amoreira. De vez em quando descobria uma pequena rã e, com maldade ligeira, atirava pedrinhas nela ao largo da margem. Naturalmente, errava pela distância, e ficava a ver, de pulos em pulos, os círculos concêntricos que se formavam na água.
De repente, olhando para a superfície do lago, que tornava a ficar calma, vi um ponto refletido, de extrema claridez. Era vermelho, rubro, mais que isso, escarlate, sangue. Evitando um pouco a tontura, virei levemente para trás, para o alto. Por fim, não me preocupei com a sujeira e, aproveitando também a camada de folhas das outras árvores, me estendi deitado, despojado, próximo às raízes da amoreira.
Pude ver então, nitidamente, no meio do verde das folhas e do branco, branco-amarelecido das amoras imaturas, a pequena fruta, única: pronta. Já ia me perguntando se não era algo tão fora de época quando, num lance de espadachim, uma mão brotou das folhagens e agarrou a pequena pérola avermelhada.
Recuperado do breve susto, vi a mão ganhar um corpo e um rosto que se desvencilharam da massa vegetal e assim pude reconhecer, com outra expressão de surpresa, muito diferente por sinal, prima Bete, que ria e fazia muxoxos:
– Tsc, tsc, tsc… medo de amoras ou medo de amores, menininho?
– Só podia ser você; respondi; e não gosto que me chamem assim, você sabe!
Ela não parava de rir. Era dois anos mais velha do que eu, apenas.
– Não se preocupe, da próxima vez eu guardo uma para você, se você… opa!
Interrompeu o que estava dizendo para subir novamente na amoreira. Arrancou, de improviso, um galho não muito longe do anterior. Lançou de lá a amora que sobrara. E muito mal, por sinal. Caiu no lago, com um gorgolejo. Desceu da árvore e disse:
– Ah, desculpe!… mas essa não deve ter sido a última. Você tem todo o tempo do mundo: no máximo, foram as últimas dentre as primeiras, meu querido pri…
– Você não ia para o festival?; cortei-a.
– Que festival o quê?! Quando eu posso me divertir muito mais aqui…
– Me atazanando, pelo jeito; interrompi novamente.
– Ah, não se sinta privilegiado: você não é o único.
Reparei então, como se lembrasse de algo vago, que Bete não trazia nenhuma máscara no rosto.
– Onde está a sua…?
Mas dessa vez foi ela quem me interrompeu:
– Máscara? É uma brincadeira de crianças e adultos… para a qual estou velha ou nova demais…
Não respondi nada.
– Aliás; continuou ela; mesmo não querendo, estou participando; e seus olhos brilharam mais intensos, como se quisesse que eu adivinhasse algo.
– O que foi? Como assim, você está brincando?
– Pombos, lobos, macacos…!; respondeu, fazendo uma pirueta; quando se pode ser o melhor de todos os animais?! Quer ver…?; E se aproximou de mim, querendo tirar minha máscara.
Fugi de suas intenções, acuado.
Nesse momento, tio Roberto, fantasiado de peixe, gritou por baixo da máscara, como quem sobe à superfície para dar um recado; lá da última coluna, para o jardim:
– O almoço está quase pronto, crianças! Já fiquem a postos!
Lembrado pela fome, eu já ia correndo para o saguão de entrada, onde seria servido o almoço, quando Bete rendeu-me pelo braço. Virei-me, irritado demais para ser cordial, querendo perguntar o que é que ela tinha ou não tinha na cabeça; mas ela apenas apontou para o pé da amoreira.
– Acho que mais alguém cansou de brincar…
Por sobre uma das raízes, repousava um par de máscaras de sapo. De quem seriam?
– Às vezes esqueceram aqui…; ponderei.
– Esqueceram?; ela riu mais uma vez; justo isso?; e catou as máscaras.
– O que você vai fazer?!; exclamei.
– Apenas devolver, ora? No meio de tantos bichos, não vai ser difícil achar o dono.
Em seguida, ultrapassou-me em direção ao casarão.
II
Quando eu consegui alcançá-la, ela já perguntava sobre as máscaras para a vovó Báucis. Chegando perto, no meio do burburinho das demais conversas, ouvi que vovó dizia pertencer a dois jovens, filhos de um dos funcionários, mas que já fazia pelo menos uma hora que não os via. Estranhamos aquilo, mas não por tempo suficiente para que a fome nos lembrasse de nos apressarmos para não pegar fila na mesa do almoço. Peguei os pratos, talheres e guardanapos e, enquanto esperava no corredor que em vão já se formara e despontava para a área de entrada, passei a observar, mais uma vez, os convidados.
Foi então que no meio da multidão, eu o vi. Um sujeito com máscara de leão, sentado, isolado, quase a um dos cantos da grande área, próximo à churrasqueira. Olhava, hirsuto, para mim. Sua máscara e suas vestimentas eram muito diferentes das demais; por mais variadas que estas fossem. Possuía uma espécie de manta ou túnica dourada, com uma capa violeta ornada com faixas, que caiam pelos ombros, seguindo em ziguezague quase até o chão, formando losangos xadrez. Sua máscara, entretanto, parecia ser feita de material mais incomum ainda. Bronze, cobre? Não era um simples disfarce.
Outra coisa que me chamou a atenção é que parecia ser o único convidado da festa que não tinha realmente um par. O único ou a única, pois uma espécie de enfeite de juba não me deixava ver se era um homem ou uma mulher. A túnica, a capa, as formas que se escondiam por trás dessas, a sua altura: nada denunciava nada.
A persistência com que me olhava levou-me o foco até a exaustão. Pisquei, uma gota de suor escorreu-me pela têmpora direita e eu sabia que, apesar do tempo quente, não podia culpar o calor. E não conseguia, contudo, sustentar o olhar do estranho convidado. Suportar o seu olhar.
Mas que olhar?
Seus olhos (eram olhos aquilo, ao longe?) eram tão fixos que eu não sabia se eram da pessoa que se escondia ou se da própria máscara. Desviei a atenção deles, com um medo bobo. Mas tornei a olhar. Os olhos ainda lá. Outro ceder das pálpebras, o suor novamente. O agrupamento das pessoas se moveu então, fantasias, cores bruxuleantes, com um chacoalhar de copos coloridos, no jogo de “onde está a bola amarela?”. Um farfalhar de folhas e animais no meio da selva.
Mas quando a multidão se dispersou do centro, o leão não estava mais lá.
Antes que eu pudesse pensar, uma senhora com máscara de tucano bicou-me sutilmente, apontando a fila que prosseguia; dando-me um grande susto:
– Meu filho, acalme-se, jovem ratinho!… você não vai ser o meu almoço. Vamos em frente!
Ri um sorriso hesitante e dei uns passos tanto quanto. Depois, por alguns minutos durante o almoço, pude esquecer o episódio.
Fui pegar, então, um pouco de suco, e no caminho aproveitei para procurar Bete. Encontrei-a brincando com o ponche. Só percebi o quão preocupado estava quando, cutucando-a tão displicentemente, quase a fiz derrubar a vasilha de cristal.
– Ah, moleque, você está me superando, disse enquanto catava a concha e a levava para lavar na pia; mudou de ideia? Quer tirar a máscara?
Segurei sua mão no ar e sussurrei:
– Olha, é sério! Você reparou no convidado com máscara de leão?
– Ah, aquele casal estava magnífico, boa escolha… mas pareciam mais gatos, não leões…
– Não, não, guria! O leão mesmo, com uma túnica, uma capa, máscara de…
– Túnica? Capa? Nesse calor? Do que você está falando? Não vi convidado algum assim… Nico, você por acaso…
Eu não prestava mais muita atenção nela. Por cima de seu ombro, eu enxerguei a máscara de tucano abandonada sobre o bebedouro ao lado da pia.
– Nico… Nico?! Você está me ouvindo?
Virei de um lado para outro, girando sobre os pés, parado no mesmo lugar, em busca de alguém. Avistei mamãe com a máscara do cisne, peguei a que estava sobre o bebedouro e fui até ela.
– Mamãe, você sabe de quem é essa máscara?
– Ah, você achou! Dona Dirce estava procurando por ela… não estava muito bem, deve ter sido o ponche, ela sabe que não deve beber muito… mãe!
Levantou o braço para vovó Báucis.
– Onde está a dona Dirce? Ah, no seu quarto? Não, não… deixa que eu levo! Obrigado, filho!; beijou-me e distanciou-se para o corredor que dava para o interior do casarão.
Fiquei largado, confuso, com meus pensamentos. Virei para procurar Bete, mas ela tinha cansado de esperar minhas respostas.
Saí de novo para a área de entrada, dissuadido dos meus exageros, não percebi no momento que o casal de serpentes já não se enrolava na primeira coluna, nem o par de águias fuzilava-se com olhares ardentes em frente à bancada de doces. A festa parecia um pouquinho mais vazia. Algumas pessoas pareciam ter ido descansar a sesta da tarde. Eram duas horas.
Aproveitei uma cadeira desocupada e sentei-me mais tranquilo. Bete voltou e veio enredar seus finos braços em volta do meu pescoço.
– Sai, Bete, me deixe em paz, estou com dor de cabeça!
– Ah, priminho, não fique assim. Achei um leãozinho pra você.
E, levantando minha face pelas bochechas, ela direcionou o meu olhar para o do leão convidado.
III
Combinei, nos últimos quinze minutos, que não tiraríamos os olhos dele e Bete me falou que eu era um gênio para esse tipo de brincadeiras. Porém, nem se havia passado três minutos da “brincadeira” e ela me disse que estava enjoada e que iria descansar sob a amoreira.
Fiquei em minha vigilância, aguardando qualquer movimento do leão. Mas era inútil, ele era tão impassível e indiferente quanto o próprio tempo que, desgostoso, se arrastava com densidade. Acabei entrando em um estado torpe, letárgico, do qual apenas me desvencilhei com os sussurros de Bete ao meu ouvido, dizendo-me palavras que, entretanto, eu não discernia por causa do espírito recém-entorpecido. Pude notar que o leão havia desaparecido outra vez, que a festa estava mais vazia, embora que ainda suficientemente cheia. Isto também bastava para que nenhuma outra pessoa além de mim ficasse apreensiva; ou notasse, como Bete, que achava tudo muito divertido e que, por isso, a tudo prestava atenção.
Só depois de visualizar os últimos detalhes (as máscaras largadas por todo o casarão), foi que percebi o que é que Bete tentava me dizer. Acordei da primeira impressão quando ela tentou colocar uma amora em minha boca:
– Vamos, Nico! Nunca vi mais saborosas!
Mordi a amora que ela me dava e senti um gosto férreo, que se amarrou na língua. Cuspi-a longe.
– Nossa, seu porco mal-educado! Não precisava fazer isso com o que eu lhe trouxe com tanto carinho; disse ela, fazendo bico.
– Mas, como… porque você… onde é que você conseguiu essas outras amoras e…?
– Ah, tolinho! Venha!; e me puxou, largando-me quase instantaneamente para ir ao jardim.
Chegando atrasado, reparei nas folhagens e em uma Bete que lançava umas cinco ou sete outras amoras para o chão.
– Penso que não procuramos… digo! Que não procurei bem… mas agora acabou de novo.
Eu, sem me mover, interpelava a minha própria consciência por aquilo que eu via e outros não queriam ver.
– Bete, isso não está certo… há algo de muito errado que ninguém está percebendo nesta festa!
– Ora, meu amor!; ela estava cada vez mais provocativa; você está louquinho, apenas aproveite a dança… eu te ensino os passos.
– Não quero saber de passos, para com o diabo com eles!; eu me exaltava cada vez mais; o que eu sei é que eu não estou gostando nada do que está acontecendo. Aliás, acredito que aquele sujeito da máscara de leão tem tudo a ver com isso… e, seja para onde quer que ele tenha ido, devemos encontrá-lo de volta e ficar de olho nele.
– Uh!; ela assobiou; meu ratinho está tomando suas próprias decisões… quase um hominho!
Ela deitou na relva, sob a amoreira.
– Ah, aproveite, meu anjo! Aproveite este céu, este lago, esta comemoração… esqueça o tal do convidado. E estas amoras, divinas… tão divinas, tão vermelhas. Esse clima todo.
Bete se espreguiçou e se pôs de um salto.
– Amoras não são uma delícia? Amoras, amores… isso me faz lembrar a história que vovó Báucis nos contava… lembra? Não me recordo de todos os detalhes… mas diziam os antigos que elas seriam assim, tão rubras, por causa do sangue dos amantes.
Olhou-me e, por um instante, o seu olhar pareceu como o do leão.
– Tão saborosas quanto o amor; disse, pondo a amora na boca.
Porém, nem um instante havia se passado, e ela começou a engasgar. Ajudei-a, e ela cuspiu a amora no lago.
– Eca! Aquela estava horrível… deve ter sido o seu olhar; brincou. Afastou-se de mim e continuou; não precisa me querer mal, sou apenas sua prima e você sabe dessas minhas peripécias.
Eu, porém, estarrecido, voltava meu olhar para a amoreira. Ah, eu juro ter visto! Não poderia estar louco. Fitava um ponto em branco na copa da árvore quando vi este se avermelhando, escurecendo, como uma bola de gude alva que de repente recebesse uma injeção de tinta.
E então de novo. E mais uma vez à direita, e um pouco mais acima. Puxei Bete selvagemente para baixo da copa e tive tempo de calar-lhe a boca enquanto apontava as amoras e o seu movimento quase imperceptível que entrava no último estágio antes de cessar por completo. Ela também viu.
Ficamos assim estagnados, durante um bom tempo, até nos apercebemos, ligeiramente, de uma presença próxima. Baixando os olhos para a outra margem do lago, vimos um vulto que se desanuviava. De debaixo das folhagens das árvores além, o convidado com rosto de leão apareceu, segurando um molho ensanguentado de máscaras.
Mal tivemos tempo de esboçar qualquer reação, quando ouvimos um grito ébrio às nossas costas. Tio Roberto, profundamente embebedado, disse que meus pais iam à cidade buscar potes de sorvete, e nos convidava para irmos juntos.
Íamos dizer que não, correndo para fora da sombra da árvore, apontando freneticamente para o outro lado do lago. Mas tio Roberto disse que nada enxergava. Ademais o fato de ele estar bêbado, realmente nada havia para ser visto. O leão desaparecera novamente.
Quando chegamos ao saguão, o esvaziamento da festa era nítido. Umas quinze pessoas sobravam? Vinte, quando muito. Boa parte deles bêbados, o restante, céticos. Provavelmente os outros deviam ter ido embora. Quanto ao estranho convidado, a aterradora conclusão a que chegamos é que ninguém além de nós dois o tinha visto.
Concordei com Bete, dizendo que seria bom que eu fosse com eles e que ela ficasse com vovó Báucis.
Enquanto íamos para a cidade, mamãe conversava com papai:
– Dona Dirce vai ter que vir buscar a máscara dela mais tarde.
– Mas ela não estava no quarto de sua mãe?
– Ela disse que ia para lá. Mas quando eu abri o quarto, ele estava vazio… Deve ter saído para tomar um ar e depois decidido voltar para casa. Esse pessoal sai sem se despedir…; concluiu, guardando a máscara de tucano no porta-luvas.
Virei-me com os cotovelos contra o banco de trás. Meu pai parou um instante, enquanto acionava o portão automático da chácara, que começou a fechar.
Ao acelerarmos a caminhonete novamente, pude ver por entre as grades o passar de um vulto veloz.
IV
Voltamos da cidade meia hora antes do pôr-do-sol. Nunca tinha tido uma sensação tão horrível assim, antes. A cidade se mostrou tão deserta quanto a chácara. No fim da tarde, o vento se tornou sibilante e o silêncio ecoou nas ruas vazias. O estado das lojas e casas demonstrava uma clara impressão de abandono às pressas. Passávamos por postos de gasolina onde muitos carros foram abandonados. Ao longe, o som de sinos do vento tricotava a mudez mórbida da paisagem. Pelo chão das ruas e pelas calçadas, sopravam quilos de confete e se achavam perdidas, a cada esquina, uma ou outra máscara abandonada.
Bandeirolas coloridas davam um movimento àquela cena exótica de solidão, mas que não enganava em nada e traia, a todo momento, a situação doentia em que nos encontrávamos. Mamãe tentou diversas ligações, nenhuma era atendida. No centro, os palanques abandonados. As caixas de som do palco central emitindo um som silvado, estridente, de quem não teve tempo para terminar de testar os aparelhos.
Íamos buscar sorvetes? Voltamos de mãos e cabeças vazias, atordoados.
Quando chegamos, enfim, ao portão da chácara, já sabíamos mais ou menos o que esperar.
Da frente do casarão, não avistamos ninguém na área de entrada. Ouvíamos apenas o soluçar do vento. Minha mãe disse que ia esperar na caminhonete.
Entramos e encontramos Bete sozinha no quarto, chorando. Ela nos contou que todos tinham sido levados e que a última fora a vovó Báucis.
Toda vez, quando podia perceber algo, era sempre o mesmo vulto. Sempre a mesma sombra, que aparentava ser a do convidado fantasiado de leão. Cada vez mais veloz.
Fomos para fora, precisávamos fugir e encontrar uma resposta. Mas postos os pés para fora do saguão de entrada ouvimos mais uma vez uma lufada de vento, ciciante, esquiva. Do lado de fora, a porta da caminhonete aberta balançava, pendente e, logo abaixo, uma máscara de cisne havia sido deixada. Não havia nenhum outro sinal de mamãe.
Entramos de volta no casarão e imaginamos que não haveria para onde fugir. No vazio da escuridão, passamos toda a noite com um pressentimento vago. E, por causa dele, deixamos todas as portas e janelas abertas. Não dormimos. Mas nada aconteceu, o que, ironicamente, nos pareceu ainda mais bizarro, no sentido de que ele queria que o víssemos e que estaria em nosso encalço apenas nos momentos em que mais acreditássemos que estivéssemos seguros.
V
Saímos tarde de dentro do casarão, deviam ser nove horas. E, não obstante, tendo ficado uma noite sem dormir, o estado de tensão me colocava a aparência de ter estado quase três dias sem descanso algum.
Papai procurava algo, eu não sabia o quê. Durante a noite parecia ter saído para o jardim, não tenho certeza. Eu sabia apenas que ele estava fora de controle.
Eu e Bete decidimos começar a acompanhá-lo e descobrimos que ele procurava algo na casa de ferramentas. Quebrou o cadeado com uma pá, pois disse que não havia tempo para encontrar a chave. Não havia tempo? Parecia-me, com uma sensação sarcástica, que agora tínhamos todo aquele do qual por toda a vida nos tinha faltado.
Ele entrou e saiu com um machado.
Passamos pela caminhonete e não vimos mais sinal da máscara do cisne. Enquanto papai avançava, abri por curiosidade o porta-luvas, não encontrando igualmente a máscara de tucano.
Quando olhei para o lado, porém, vi apenas Bete. Ao fundo do caminho que se curvava para o lago, vimos papai fazendo o contorno, indo para o único lugar na terra que nos sobrara para ir: o jardim da amoreira.
Ele havia se adiantado e, como esperado, quando eu e prima Bete nos aproximávamos da amoreira e do lago, divisamos apenas o machado largado aos pés daquela.
Mas não foi isso que nos assombrou: sob a árvore, encontravam-se todas as máscaras. A máscara dos sapos e das zebras; a dos macacos e a dos lobos; a dos cisnes de meus pais; a de peixe de tio Roberto e a de coruja de vovó Báucis; a das serpentes e a das águias. E, com a copa iluminada, quase vergando sob o peso de seus frutos; a amoreira, carregada de gordas amoras, para onde quer que se olhasse.
O machado permanecia sob o seu pé.
Não vacilei um instante sequer. Buscando forças de onde eu sequer sabia que elas vinham, suspendi a arma por sob a minha cabeça e desferi um golpe diabólico no tronco da árvore, que vomitou, gorgolejou e jorrou uma cascata do mais vivo sangue.
Ao mesmo tempo, com um silvo inicial lancinante, um rugido de coisa não-humana, de fera e de besta possuída, ecoou por todo o jardim. Um urro medonho, reverberante, catastrófico, que parecia estar berrando desde o começo das eras, desde o começo do mundo; berrando articuladamente dentro de uma caixa de som até então muda e que, como se de dentro de uma caverna montanhosa que só agora se abrisse, liberava, com toda a energia, todo o seu som.
Conforme ia cessando, mesmo parecendo que nunca mais iria parar, eu ouvia, aos fundos, o choro miúdo de Bete, adivinhando o seu rosto, cego, entre suas mãos.
A árvore, ferida mortalmente, não só uma, mas talvez vinte vezes, estertorava seus últimos goles, suas últimas golfadas para o lago. Este, sombriamente poluído. Com uma camada de carnificina coagulada, parecia uma pista de patinação vermelha, com uma aderência de piche. À luz do sol que se postava já ao meio-dia, lançando do zênite toda a sua confiante, porém inútil luz, fazia com que as últimas gotas, as maiores, parecessem rubis defeituosamente lapidados.
A árvore, tão só então, tinha se tornado pálida. Perdera seu aspecto vegetal, como se não passasse mais do que somente o esqueleto de um animal desfigurado, não catalogado nas enciclopédias de biologia.
Quanto a mim, mais consciente daquilo, com os sentidos apurados como nunca os tinha tido em toda a minha vida, sabia o que me esperava quando eu olhasse para trás.
O convidado, com a túnica dourada e a capa de franjas violeta; sua máscara de bronze e seu olhar vítreo; me aguardava a menos de dez passos. Dois passos.
A amoreira pálida.
Dois passos.
O lago ensanguentado.
Dois passos.
A rede de máscaras.
Dois passos.
O choramingo de Bete.
Vagarosamente, retirei a máscara do leão e me preparei para a visão mais perturbadora de toda a minha existência.
VI
Acordei no meio da manhã, encharcado em suor, com o pulo que prima Bete deu na cama. Ela me olhou assustada, e pediu perdão. Não parecia nem de longe a Bete daquele sonho.
Eu olhei para o relógio de cabeceira, mas não consegui distinguir os ponteiros.
– Nós devemos ir, estamos atrasados, primo.
– Atrasados para o quê, oras?
– Oh, mas não se lembra? Hoje é dia dos namorados… mas vai haver uma micareta na chácara de vovó Báucis!
Eu ainda estava confuso, quando ela me apontou a máscara de leão sob a cômoda, junto à túnica dourada e a capa violeta com as franjas cruzadas.
Em seguida, puxou-me pelo braço e me levou para fora. Dali para a frente, não me lembro mais de nada. Apenas novamente da chácara, da entrada…
Do lago…
Da amoreira…
E de que, quando enfim me deitei sobre suas raízes e sob a sua sombra, colocando, decididamente, a máscara no meu rosto; pude ouvir uma voz vinda lá do alto.
– Vamos, primo, segura esta amora!
Em seguida, Bete colocou sua máscara de rato e sumiu, batendo palmas, entre as folhagens; enquanto a lua de sangue descia e crescia em direção aos meus olhos.
23 de Fevereiro de 2014.