Um conto de Sílvia Schmidt
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo. Formou-se Letras na FATEA, Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política na USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos, ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014, cria a editora para livros eletrônicos a Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free. Possui trabalhos inéditos em todos os gêneros literários em temática contemporânea-bilíngue, crítica e universal. Impressos ou em novas mídias. Participa como mediadora e curadora em Festivais de Cinema e Literatura com temas contemporâneos como transculturalidade e interseccionalidade. Além dos temas ligados à Arte e Cultura é educadora e consultora em sustentabilidade.
O conto “Sandálias de Cecília” foi finalista do Prêmio Off Flip 2019, e a foto da autora é de André Brandão.
***
Sandálias de Cecília
Um objeto é um organismo de cores, cheiros, sons e aparências táteis que simbolizam, modificam e combinam entre si por uma lógica real que é a tarefa da ciência tornar explícito. Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception.
entre uma ação e outra durante o sono até o despertar milhões de signos se perdem memória é uma esponja jorrando significado. uma vez que ela absorve, se apertarmos um pouco o seu conteúdo se desprende em nada. apropriar-se deste é uma sabedoria do em si impressionante, entre o pós levantar-se a caminho do banheiro, vamos lembrando em flashes e recortes dos segundos que “faltou água ontem e que precisarei levar uma caneca mais água num balde- fervida- até fazer minha higiene pessoal” o vivido no pretérito e cuja imagem eu precisaria narrar aqui no imediato tempo do ocorrido- se dispersa, tornando-se nuvem. daí aquele sentido-percebido o qual por sua vez poderia ser contado para algum objetivo possível que seja do meu próprio interesse, que seja por sua beleza estética seu ineditismo mero fruir estético, também já se dissipou em nuvem, oxigênio, neutrino partículas e onda ondas partículas. arguir sobre isso é redundante, entre estar aqui nos dígitos e saber que ainda em relativo tempo- “preciso tomar atitudes bem concretas” e sabemos que em nosso dia a dia não temos o controle de toda a realidade, porque o que fora vivido se dispersará em mil fractais, então penso agora como realizar este vazio.
alguém ao longe buzina, é o sinal combinado para eu saber em tempo“não estou só aqui no sitio” área sem vizinhos, penso que só pode ser o proprietário vindo do centro da cidade em suas visitas matinais: proverá a caixa com água da nascente limpa e fresca para amanhã eu não recorrer na urgência aos utensílios que substituíram- me o bom chuveiro elétrico a tal caneca e balde com água fervida como pontuei não pontuei.
as noites por aqui são sempre muito frias e úmidas mesmo no verão, alto da serra assim reforço-me até conseguir um pouco de conforto, janelas quase abertas, frestas largas, difícil relaxar, ontem uma aranha armadeira dormiu de safada ao calor do computador ligado, certeza. lembro-me ter ficado durinha, fingindo-se de morta para que eu não a matasse, sempre evito mas quando a toquei com minha sandália a minha-porque é exatamente sobre as Sandálias de Cecília que me seguro nesta narrativa para não deixar de descrevê-la exatamente como me apareceu em sonho- esta feita de couro- claro couro -recém talhado- em sua bainha e com apenas uma tira de uns seis centímetros para segurar o pé, couro refinado brilhava aos olhos, lustrado por cera nem envelhecido estava, em cima um brocado esculpido à mão por pressões a ferro, talhado em temas de folhas e flores. quase um rococó. não vi pedras ou algo precioso, era simples e rústica e ou foi o que- imageticamente- minha memória registou.
entrei feliz no espaço onde ela- Cecília- e outros escritores seriam recebidos, celebração por feitos alcançados. eu me pergunto o que seriam feitos alcançados em Literatura numa festa para muitos convidados, o grande salão ainda vazio, esmaecido por pesadas cortinas vermelhas. fui ao meu quarto agora para assoar o nariz e deixei meus óculos sobre a cômoda. retorno a ele, por que esquecemos os óculos sobre a cômoda meu Deus, por que a memória e sua lerdeza- sua lente oblíqua. palavras se perdem, erros gráficos se contabilizam, caixa alta caixa baixa acentos, acentos para que escrever para quem.
assim enquanto eu adentrava o salão-nobre-percebi um senhor vestido de fraque elegantemente aprumado, pareceu me usar luvas brancas também. me aproximei da mesa onde ele estava curvado sobre algo para ver do que se tratava e vi – ali nas folhas em branco abertas para registros, a existência de algumas assinaturas. ele me passou uma caneta esferográfica preta para eu assinar este livro de convidados. estou rindo agora porque não me vem à mente a ideia de ter sido sequer avisada do evento quanto mais convidada. algo me e-levou ao evento, ali fiquei. há um mundo-paralelo do qual não temos completamente o controle, é um mundo holográfico apenas sei disto. tudo há nesse mundo, cadeiras, mesas, recepções, salão nobre organizadíssimo, aromas, cores, movimento em câmara lenta. tal e qual a abelha que acabara de vir me visitar, ela simplesmente chega, antes anunciando-se com seu forte zumbido, entrou parou na janela a minha frente, abri-a e ela partiu. eventos sem sentidos, mas em planos-outros.
enquanto assinava o livro soube que Palmeira, já estive com ele em outro evento onírico, estava em cena. deixe-me pensar se me recordo do primeiro evento com ele, deixemos a sandália de Cecília para o devir. sim, sim foi muito engraçado.
Marquinho como o chamavam, eu nunca fui muito fã dele quero dizer de sua virtualidade, achava-o charmoso apenas- “a abelha retornou, algo a atrai”. sou eu- ela me quer- parou na janela novamente. está agora maluca tentando sair. vejo uma folha que cai na varanda, sinto-a pelo brilho. o sol está mais radiante nesta hora da manhã. vozes de homens chegam-me do distante neste instante eu mais confusa aqui e agora. conduzi-a para fora, fazendo uso de um pano de louça, aí alcanço o lá fora e vejo coisas que não posso deixar de fazer e de imediato. se não tivesse visto não teria me lembrado da urgência. escrever não é urgente. será sempre uma representação vaga, a des-forma. sim, sobre este presente do presente em tempo real: o carrinho de mão, que não é meu e que eu usei, achei-o neste instante absolutamente molhado pelo orvalho, fora deixado à porta para acaso de uso – ainda pela manhã nesta manhã. “devia ter guardado ontem após o uso”, aí o proprietário recém-chegado, que buzinou avisando-me,“perceberia meu relaxamento ou esquecimento, nem eu mesma sei-talvez procedimento. pensará o que de mim”.
quando estive com ele-Marquinho- recebeu meu corpo etéreo com afeto e entusiasmo. sentamos em uma escadaria alva tipo escada de mármore, destas escadas em espiral de colégio de freiras, sentou-se em um degrau acima do meu, puxou-me para si como se enamorado, ficamos juntinhos.
nesta celebração à Cecília, ele era parte do espetáculo. eu estava ali com uma amiga em companhia, “seria a Lúcia”, sinto que sim, mas o fato é que fomos ao seu espetáculo, porque era por isso que eu-espírito estava neste evento para Cecília, antes do início estive em seu camarim. um ambiente parecido a um circo e seus toldos hexagonais, em cores negro, branco e rubro, mas estavam fechados. ele encapuzado como drácula – um show man, olhou-me fixamente como se me conhecesse, eu gostei da atenção dispensada a minha pessoa evanescente, olhamo-nos fixamente, buscávamo-nos dentro um reconhecimento, um átimo de lembrança, mas ele agora ali quase um velho, um velho rejuvenescido. nunca estivemos pessoalmente na dimensão concreta- a humana dimensão. saí e fui para plateia, queria muito ver a encenação. entre uma fala e outra eu com minha acompanhante, a cena se dará logo em seguida: o Ator está de frente ao público-e por baixo sobe ao palco- uma linda jovem de corpo escultural, pele bronzeada de puro brilho e esculpidas tatuagens por todo seu corpo esguio era uma deusa em bronze, porque sei que era bronze. seus cabelos longos presos acima e de modo qualquer. ajoelha-se lentamente aos pés dele– este ali é o personagem e canta divinamente. não há neste instante de consciência, absolutamente maneira alguma para me fazer lembrar e ou reviver o som, a língua, as imagens encenadas, meu sentimento fora de estranhamento- naquele momento ínfimo de vida onipresente, minha zona criativa.
ao deixarmos o espetáculo eu e Lúcia, “vamos dizer tratar-se dela” ríamos alegremente, nem motivo havia. uma alegria normal de quem estava em festa, em re-encontro, celebrando este fato qualquer mas juntas neste momento – de homenagem – à escritora. quando já dentro do camarim vi seus trajes e os vesti sem qualquer parcimônia. serviu-me o par de sandálias e muitíssimo bem, inclusive a calcinha- sua íntima peça de mesma cor avermelhada- decorada tal qual a sandália de couro. perfeita harmonia de estilo, nestes meios nefelibatas.
mostrei à Lúcia com alegria.
“veja que lindos”.
“de quem?” ela fria me questionaria.
“veja-os está pirogravado sob o couro tal manuscrito:
“Cecília Meireles”- li para ela- com segurança.
“sim, Cecília Meireles, leio bem”. retornando-me indiferente.
partimos abraçadas, eu de calcinha e sandálias de couro-somente- nua em pele rosada e cabelos compridos, escorridos em costas magras, cervical aparente. se não me falha a memória porque tem sido e sempre uma questão de Mnemosyne, já me via longe e apenas na diagonal em quase desfile de anjos.
das lembranças citadas acima até esse exato dígito, realizei muitas ações, o Tempo é uma máquina para o esquecimento, automatizada fui em busca de água e já lavei a louça à inglesa. isso eu tenho bem registrado nas fibras do coração. “você já lavou uma louça à inglesa caro leitor” – pois bem, e aí durante esse exercício matinal, vieram-me à mente os minutos finais do lusco fusco do despertar: dois carros retorcidos à frente –numa rodovia – pareciam-me terras estrangeiras. um moço ao lado destes e de cara à tela do celular. não parecia ter sido com ele o acidente, mas estava ali ele “meu amor meu amado” num flash tão instantâneo de cores em preto e branco que posso afirmar ter sido um aviso, deve ter ficado parado no trânsito fechado em alguma estrada. preciso me mexer. sabe-se lá se isso acontecera- tudo chega do outro lado e do além desorganizado -este que é um oráculo em paralelo em diferentes tempos.
“ficaram-me confortáveis as Sandálias de Cecília.”