Um ensaio de Cátia Moraes
Cátia Moraes é jornalista e escritora, autora de cinco livros, entre eles O medo que me amanheceu (Penalux, 2018).
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Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas: a releitura
Não estava procurando por elas. Debruçada numa pesquisa sobre filosofia, descobri os imanentes: a vida é aqui e agora, é natureza, é produto de nossos sentidos. Não há transcendência, não há outras vidas, além desta. Mergulhei. E se falo na primeira pessoa, é porque fui surpreendida. Ao procurar filósofas mulheres, mal as encontrei, lá no berço da civilização ocidental: a Grécia antiga. Sim, as filósofas existiram, mas há poucas referências de época. E uma carga pesada sobre elas, suas trajetórias e o papel que lhes foi negado pela história – escrita pelos homens.
Repensando. Reavaliando. Reoxigenando. Elas viveram na civilização-modelo. Eram consideradas ‘menores’, precisavam de um homem como tutor. Seres ‘desviantes’, com falhas e faltas: “A fêmea é um macho mutilado”, desferiu Aristóteles, o sábio. Filósofos antigos e modernos sacramentaram, ao longo dos séculos, o estereótipo arquetípico feminino da submissão. Até meados do século XX, quando estudos e pesquisas produziram releituras e reinterpretações. Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas. Sim!
Safo (séc. VII a.C.), poetisa, de cuja obra restaram dez livros e a fama de lésbica, como se a homossexualidade não fosse praticada na época, especialmente entre homens; Temistocléia (VI a.C.), filósofa, matemática, mestra de Pitágoras; Theano (VI a. C.), matemática, filósofa; Diotima de Mantinéia (V a.C.) descrita como sábia, por Platão, em O Banquete, e a quem se atribui a teoria socrático-platônica do amor. Entre várias outras, de Atenas e das redondezas.
Os estudos sobre a atuação das mulheres tomaram vulto a partir dos anos 60. Por aqui, Chico Buarque lançou a bela ‘Mulheres de Atenas’ em 1976. Hino à emancipação feminina, a música acabou por reproduzir o estereótipo da oprimida, iletrada. De que a decantada democracia ateniense era exclusividade masculina – só eles tomavam as decisões políticas. Excluídas do espaço público e dos documentos oficiais, elas, porém, nem sempre foram as ‘pequenas helenas’ escritas em verso ou prosa.
Pesquisas recentes sobre biografias femininas e a vasta produção iconográfica grega (vasos de cerâmica pintados), bem como sobre personagens míticas de comédias e tragédias – escritas por homens – estão recontando a história do ponto de vista feminino. Personagens de Eurípedes – célebre tragediógrafo – como Helena, Cassandra e Electra, as transgressoras, ganham novos contornos. E várias indagações: por que as mulheres mitológicas foram tão poderosas? Qual o papel da ficção no universo grego? Por que as filósofas, matemáticas, educadoras não foram reconhecidas? Em suma: quanto o apagamento social subtraiu, anulou, a trajetória feminina?
‘Elas não têm gosto ou vontade, nem defeito, nem qualidade, têm medo apenas…’, diz a canção. Desculpa aí, grande Chico. Não foi bem assim. Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Esparta, que desfrutavam de atividades físicas e do convívio social. Mirem-se também nas da cidade de Argos: ‘O partido popular argivo, temendo os lacedemônios e inclinando-se à aliança ateniense, construiu longas muralhas até o mar (…) homens, mulheres e escravos trabalhavam nas muralhas.’ (Tucídides, historiador, séc. V a.C.)
Sigo adiante na pesquisa de artigos e teses. Uma surpresa após a outra. Mais uma vez, Tucídides e a participação feminina da cidade de Córcira numa guerra em 417 a.C., defendendo os cidadãos contra os oligarcas. Assim como as mulheres da cidade de Platéia, que, de cima de suas casas, atiraram pedras e telhas para defender a comunidade de inimigos persas durante as Guerras Médicas (V a.C.).
‘Não têm sonhos, só têm presságios, o seu homem, mares, naufrágios…’. Não foi bem assim. Outro historiador, Heródoto (V a.C.), menciona a princesa Artemísia à frente do governo em Halicarnasso e no comando da batalha naval de Salamina: ‘Esta princesa me parece digna de admiração, apesar de seu sexo, por ter tomado parte da expedição. Quando o marido morreu, ela tomou as rédeas do governo, e sua grandeza d’alma e coragem levaram-na a seguir os persas (…). Ela veio ao encontro de Xerxes com cinco navios (…) a batalha durou da aurora ao anoitecer’.
Assim, de página em página, vão renascendo as mulheres. Xenofonte, outro historiador, cita nas ‘Helênicas’ uma mulher chamada Mania. Após a morte do marido, ela assumiu o comando de uma parte da Eólia e conquistou outras regiões. Procuro mais informações sobre Mania. Não as encontro. Sobre as mulheres citadas neste artigo, encontro, quando muito, citações resumidas, presumidas, a partir de testemunhos masculinos de origem. E novos estudos.
Descubro Hipareta, filha de um nobre ateniense (V a.C.), via Andócine, orador e mercador que registrou a época. As mulheres gregas eram levadas a se casar na puberdade, aos 14 anos, com homens bem mais velhos, com 30 ou mais. O divórcio era consentido. Mas, se fosse por iniciativa da mulher, ela deveria requisitá-lo para seu tutor (marido, pai), que levaria o caso ao arconte (magistrado). Andócine registrou: Hipareta, sentindo-se desrespeitada pelo marido, Alcibíades, que levava cortesãs para casa, tomou a decisão de procurar o arconte pessoalmente. Foi punida por isso: ‘(…) ele (Alcibíades) colocou sua mulher de virtude honrosa na necessidade de abandoná-lo e procurar o arconte. E foi bem aí que ele mostrou seu poder e levou-a à força, mostrando a todos o desprezo que tinha pelos arcontes, as leis e os cidadãos’.
Não tem sido fácil transcender a voz masculina no protagonismo da história. A que designou o mito da primeira mulher, Pandora, como aquela com ‘rosto de deusa, espírito dissimulado, palavras mentirosas’. Pouco se fala, ainda, de figuras poderosas como Aspasia de Mileto, que conquistou Péricles por sua intelectualidade e ensinou filosofia e retórica a atenienses ilustres. Assim Platão a descreveu no ‘Menexeno’, numa citação atribuída a Sócrates: ‘(…) tive a sorte de ter uma brilhante professora de retórica que preparou excelentes oradores e um deles se distingue entre todos os gregos, Péricles, o filho de Xantipa’.
Desconstruir a ideia de que o domínio masculino foi absoluto e pacificamente aceito é o desafio que vem se colocando na contemporaneidade. A filósofa portuguesa Maria Luísa Ribeiro Ferreira, especialista no assunto, destaca: ‘Ter sentido histórico obriga a reconhecer nosso legado cultural, mas, obriga, também, a reavaliá-lo e a reinterpretá-lo, para que possamos reconfigurar, com maior equidade, esta herança cultural’.
‘Quando fustigadas não choram, se ajoelham, pedem imploram…’
Como se revê, não foi bem assim. Saio da pesquisa perplexa. Com a injustiça histórica em relação às mulheres. Também comigo, que só agora atento para a gravidade e a extensão desse apagamento social.
Reinterpretar a biografia das mulheres de Atenas, do mundo. Uma forma de mudar o passado, ressignificar o presente e reescrever o futuro.