Um poema de Susana Klein
Aos 23 anos, Susana Klein vive em Reykjavik onde estuda narrativas audiovisuais.
***
Homesick
Estou num edifício que são dois.
Ele foi construído para sabermos
temporariamente a palavra
casa. Antes de ir à padaria, faço
uma lista do que levar para a rua:
água mapa pedra balão chave carteira caneta
sinalizador máscara antigás celular carregador
bloco de notas gravador ecobag lanterna e pão.
Não esquecer
a maquiagem que se usa na rua.
Hoje volto para a casa
que foi nossa com todas as reformas
que ele fez. Tentei juntar alguns objetos que
remetiam à sua presença. Arrumei uma caixa
limpei-a forrei-a com um pano branco.
Guardei nela um cd do John Coltrane,
uma luminária que ele fez de uma garrafa de vinho
do Porto que bebemos, um dildo que usávamos
regularmente, uma caixa de ferramentas, uma máscara
que ele fez do meu rosto, mas não consigo guardar
os nichos que ele fez na sala nem a parede que ele abriu
no quarto. Esses objetos já não eram objetos
mas o fato de ele ter trazido o álbum da sua coleção de cds
e feito a luminária no chão da cozinha com uma furadeira
e me dado o dildo de presente no dia dos namorados
e, com todo o cuidado, posto gesso no meu rosto
e tirado e esperado secar. Depois de um tempo,
lixou e pintou e emoldurou a máscara para que,
de alguma forma, eu morasse imortalizada
numa parede da casa até, imagino,
ter sido acidentalmente quebrada.
Esses objetos não eram mais os objetos
que ele fez à medida que se transformavam naquilo
que ele era. Cada uma dessas peças estava nas prateleiras
nas gavetas na cozinha emprestando vida aos cômodos,
sem falar nas impressões digitais espalhadas
por não sei onde em cada canto da casa
e do meu corpo que nenhum banho
é capaz de remover.
Como estava feliz que ele estivesse ali.
Que era ele ali. E agora
que salto
eu viúva. Poderia pensar em todos os aspectos
físicos da morte mas alguma coisa me impedia.
Pensar no seu quarto verde no nosso quarto claro
nele andando em casa com minhas calcinhas
no som da sua respiração enquanto dormia
e mesmo nele roncando como na semana passada
me acalmava. E onde estava ele que não via
o nosso quarto a sua respiração
o meu salto.
Há um ano estivemos juntos.
Vimos a chuva através dos vidros, fizemos a espera,
lembro que gostei de ouvir a chuva apesar do cansaço
e da ausência embora a casa estivesse cheia
e cheia de desamparo. Há um ano,
ou há cinco mil anos, não sabemos o que fazer
com nosso próprio desespero. Talvez sejamos
aquela menina nua que corre e chora,
com nove anos para sempre. Enquanto isso,
há bioterrorismo e talvez haja mesmo napalm
por todo lado, há descaso e há quem publique,
há quem exija teste do sofá para publicar
e não há comida nas prateleiras.
Mas há um programa gratuito de fertilização
in vitro oferecido pelo governo húngaro
exclusivamente para mulheres húngaras
filhas de húngaros para que a Hungria
seja devidamente povoada por húngaros.
Na semana passada, nos atracamos um no outro
como se cada um fosse aquele barco
vermelho à deriva do Kandinsky,
sem isca e sem âncora,
ou aquela igreja vermelha sólida
e inclinada que reflete no lago.
Como se cada um finalmente tivesse encontrado
um farol, tropeço devagar no seu silêncio.
Tentando mais uma vez nos atracar,
acabamos dormindo e o barco escapa.
Como na imagem projetada no lago,
a igreja de cabeça para baixo
enquanto te agarro pelas pernas
também escapa. E não percebemos,
por mais que tentássemos descobrir,
para onde eles foram.
A coisa ia mal. Entre comprimidos brancos ovais
e retangulares compridos de rivotril sertralina
zylinox olcadil paracetamol e ibuprofeno,
uma cara inchada com os olhos ardendo.
Logo eu que nunca fui disso. E pior:
tinha muito pudor de chorar em público.
E agora essa: me pegava com a cara amassada
e molhada sem causa aparente,
ainda que soubesse muito bem qual era
a causa, quais eram as causas, e chorava
sem vergonha na rua no ônibus no elevador
ou diante de uma coisa qualquer que tivesse
visto sem me dar conta.
Até que depois de algumas semanas não
estava mais triste. Já não chorava tanto
quanto antes. Quase não sentia nada ao ver
um vizinho atravessar a rua. Os remédios
começaram a fazer efeito.
Comecei a tirar uns móveis da sala
que depois ficou quase vazia enquanto o corredor
abarrotado de peças aglomeradas dificilmente
me permitia chegar à cozinha.
Olhei para cada um daqueles objetos,
não sabia se eram tralha, se deveria chamar
a Marie Kondo e será que ela viria?
Nem era tanta coisa assim, embora para mim fosse.
No fundo, não sei de nada. Parece que todos os livros
que fichei nos últimos quinze anos não me ensinaram
muita coisa e, olha, que li Barthes Paz Calvino
e como eles falam de amor etc. Peguei
meus cadernos de fichamento. Tenho muitos cadernos.
Dentro de um deles, encontrei um pedaço de papel
com a letra dele, que se parece tanto com a letra
da minha mãe. Era o programa de um concurso
para professor substituto. Se fosse hoje
provavelmente seria uma foto tirada com um celular,
mas ele anotou aquilo tudo pra mim. Um pedaço
de papel que cheirei o dia inteiro.
Comprei lençóis novos. Os antigos,
além de gastos, tinham nódoas de sangue
que não conseguia tirar.
Um lençol novo. Uma novidade.
Era tudo que precisava. Durante algum tempo,
pude aproveitar meus lençóis novos.
Depois obviamente deixaram de ser
novos. E digamos até que ganharam manchas.
Ou
Não comprei lençóis novos.
Os antigos, mesmos gastos e com nódoas
de sangue que não conseguia tirar,
eram os lençóis onde ele havia se deitado.
Ou
eram os lençóis onde ela havia se deitado.
Não queria, não precisava de nada novo.
Durante algum tempo, aqueles lençóis
por incrível que pareça
ainda me serviram. Depois foram ficando
rotos demais para manter em uso.
Mas não queria jogá-los fora, não queria outros.
E digamos até que eram usados para cobrir
os corpos.
Num filme de Ursula Meier,
uma família mora ao lado da rodovia e,
como uma folha se prende à árvore,
pessoas anônimas percorrem apartamentos
e casas e os nossos destinos ao lado de uma rodovia
abandonada. Elas tomam banho juntas,
tudo está razoavelmente bem até que
a estrada é reaberta ao tráfego aos sons
de carros e buzinas à penetração
dos odores da fumaça dos combustíveis
fósseis e o assalto ininterrupto aos sentidos.
Tudo está razoavelmente bem exceto
as pessoas anônimas presas num pesadelo
surrealista incapazes de despertar.
Para voltar a casa tinha um longo trajeto a percorrer.
Todos os livros que abro começam com variações
dessa frase. Susana regressava a casa às oito da noite.
Susana regressava a casa depois de dez anos.
Susana tinha um longo trajeto a percorrer.
Para voltar a casa Susana percorria um longo trajeto.
Susana para voltar a casa dava voltas e se perdia.
Susana para.
Depois voltei.
Chamei a família e os amigos
e os vizinhos e disse com alegria
Voltei. Depois disse
Parti com o que me pertencia,
fui para outro continente e lá vivi
mas agora voltei. Isso faz uns cinco anos.
Ninguém correu na minha direção, ninguém
me buscou no aeroporto nem me abraçou
nem perguntou como foi a viagem.
Agora voltei e já não há música nem pessoas
na casa. Perguntei o que havia acontecido
e alguém que passava disse
A casa está vazia.
Hoje fiz quarenta anos. Em vez de bolo e vela,
coloquei uma antiga luminária na estante.
A médica diz que devo fazer uma mamografia,
exame de rotina, e também recomenda
congelar óvulos.
Lá fora, os barulhos da construção recomeçam
de manhã até a noite.