Um trecho de romance de Rafael Gallo
Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. É autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012. Tem ainda diversos textos publicados em antologias e coletâneas, no Brasil, na França, no Equador e em Moçambique.
O trecho abaixo faz parte de Rebentar, e a foto do autor na página inicial é de Wilian Olivato.
***
Trecho de Rebentar (Record, 2015)
A maioria absoluta dos casais que têm um filho desaparecido se separa. O índice oficial é em torno de oitenta por cento, mas, pelo que haviam visto em sua experiência, Ângela e Otávio acreditavam que a realidade superava essa estimativa. Especialmente quando não possuem outras crianças, grande parte desses pais passam, em algum momento, a não suportar mais atravessar o prolongamento das horas e dos dias dentro da casa esvaziada, enxergando no rosto um do outro o espelhamento de sua maior angústia. Quando o principal sentimento compartilhado é também o mais exasperante, quando cada palavra e cada gesto esbarram no vidro estilhaçado da ausência do filho, a separação se torna uma espécie de saída de emergência.
Não haviam sido poucos os momentos em que tudo ficara prestes a desabar sobre os dois, Ângela e Otávio, mas o que os salvara fora descobrir, desde muito cedo, que precisavam conseguir enxergar um no outro além de seu sofrimento refletido; era necessário vislumbrar também que tinham perto de si a única pessoa que conhecia exatamente a mesma dor e, por isso, podia ser a única a saber com que mãos tocar essa ferida comum. O filho era dos dois, estavam ambos presos no mesmo labirinto. Assim, depois do desaparecimento e das ondas de choque que o sucederam, o casal teve de reaprender aos poucos como tecer a trama dilacerada de sua união. Desde os costumes mais rotineiros até as trocas eróticas, tudo precisou ser depurado lentamente das culpas e das assombrações pela perda de Felipe e seu retorno sempre possível. Ângela e Otávio tiveram de esculpir de novo o amor que perdera o molde.
A maior das culpas era, obviamente, marcada pelo momento que divisara o início da ausência de Felipe: a de Ângela por ter soltado a mão do garoto na galeria e o deixado seguir sozinho e desprotegido pelo corredor rumo a seu destino trágico. Por mais que os outros tentassem redimir a mãe, seria difícil fazê‑la sentir que não era somente por ela ter tirado os olhos do filho por alguns instantes que ele nunca mais seria visto. Logo nos primeiros dias após o desaparecimento, quando a ausência e a culpa já se sedimentavam dentro da família, Otávio tentou o melhor que pôde dar algum alívio à mulher, interrompendo a noite escura que atravessavam em vigília sobre a cama para dizer, com uma assertividade que não lhe era comum: “Ninguém vai poder dizer nunca que a culpa foi sua, ouviu? Essa é a primeira e última vez que falamos sobre isso. Todos deixam suas crianças soltas por um momento; poderia ter acontecido comigo, poderia ter acontecido com qualquer um. Você foi uma vítima, eu também, tanto quanto você. O Felipe foi a maior vítima. A única pessoa culpada por isso é o monstro que levou nosso garotinho. Eu sinto muito que isso tenha acontecido quando você estava por perto; se eu pudesse mudar as coisas, preferia que tivesse sido comigo, pra tirar esse fardo de você. Eu quero que você aceite de mim que não tem culpa nenhuma, porque eu não suportaria que você pensasse que eu, ainda por cima, poderia guardar algum rancor contra você por essa coisa tão horrível ter acontecido. Se tivesse sido comigo, sei que você faria o mesmo por mim, então é definitivo: nem eu nem você temos culpa, nós temos é que encontrar nosso filho e acabou.”
Não trocarem acusações com respeito à perda de Felipe era um dos pilares fundamentais para a sobrevivência comum. Muitas decisões e atitudes tiveram de ser tomadas durante as buscas e era imprescindível que elas fossem assumidas por ambos, sem permitir que conflitos se instaurassem por um dos dois defender, posteriormente, que teria preferido alguma alternativa ao que já estava feito. Além disso, os papéis domésticos assumidos por cada um nunca foram questionados, mesmo nos momentos de maior frustração, quando restava pouco mais a fazer do que simplesmente derramar toda a raiva naquela pessoa a seu lado. Brigava‑se com as paredes, agrediam‑se os móveis e rasgavam‑se os tecidos frágeis das roupas, mas evitava‑se ao máximo a troca de violência verbal sobre esse tema entre marido e mulher, sabendo‑se que isso poderia ser fatal. Otávio não demorou a retomar seu trabalho na agência dos correios após o desaparecimento, a fim de manter o ganho financeiro necessário à casa e às buscas, e Ângela passou a dedicar‑se somente à procura pelo filho e o luto por sua perda, ambos compreendendo que essa dinâmica — distante de ser estritamente igualitária — era provavelmente a que melhor poderia funcionar dentro do novo mundo que pisavam. Um nunca culpou o outro por ter feito ou deixado de fazer algo.
Ao apagar a luz do quarto e se deitar na cama, Ângela se lembra da primeira noite que passou nesse mesmo cômodo após o desaparecimento. Sua memória de tal momento — como de muitos outros da mesma época — é bastante difusa, mas ainda resta a lembrança de quando ela e Otávio quedaram‑se sobre o colchão, esgotados de todos os recursos a seu alcance a não ser tentar descansar um pouco o corpo para o dia seguinte, para a procura se renovar com o sol. Era a primeira vez que se deitavam sem terem levado Felipe para seu quarto — o quarto agora vazio, ecoando em silêncio desde a borda oposta do corredor. Otávio geralmente carregava o filho nos braços até a cama onde ele continuaria seu sono, iniciado no sofá ou em meio aos pais. Ângela se lembra perfeitamente do quanto ela e o marido choraram juntos, abraçados na mesma perda, na mesma perdição. Do quão insuportável era ficarem paralisados ali, deitados feito mortos porém despertos, enquanto a noite mais funda de todas tragava o filho desamparado do lado de fora. Dentro da casa, todas as luzes permaneciam acesas, derramando‑se das janelas para a rua, como um farol para indicar a Felipe o caminho de volta ou uma vela queimando por sua perda. Ângela não sabe quanto tempo levou para que essa forma de vigília acabasse, mas com certeza passaram‑se semanas antes que as lâmpadas se apagassem e as janelas se fechassem uma noite, junto às pálpebras da mulher finalmente adormecida pelo entorpecimento de medicações. A sensação dela era de que se cerrasse os olhos, Felipe nunca mais seria visto.
Hoje, com mais de trinta anos de noites acumuladas entre aquela primeira e essa, há alguma habituação adquirida. Ângela toma uma dose menor dos remédios com um gole d’água e os dois jazem em silêncio sob as cobertas. Estão, sob uma nova forma, perdendo Felipe outra vez. Evitam falar algo mais sobre o assunto da conversa anterior, como se isso fosse uma indelicadeza à memória do garoto ou à sua própria renúncia como pais. Provavelmente, conseguirão dormir a noite toda. Para readquirir esse hábito, após as primeiras vigílias, levaram muito tempo dormindo aos pedaços, alternando poucas horas de sono. Havia nessa antiga precariedade um espelhamento sórdido dos primeiros meses de vida de Felipe, quando tinham de acordar a todo momento por conta da recente presença da criança. Com sua ausência, reacendera‑se nos nervos da mãe subtraída a mesma forma de percepção aguçada; ela ouvia, várias vezes, vir do quarto do filho os pequenos gemidos e o choramingar baixinho, que só mães parecem capazes de escutar. No entanto, dessa vez os sons eram apenas alucinações: soluços de um quarto vazio.
Foram muitas as madrugadas nas quais Ângela não conseguia suportar ficar na cama e, após algumas horas, rumava para o quarto de Felipe. Na primeira após o desaparecimento, ela atravessou o corredor entre os dormitórios banhado pela luz amarelada, sentindo os olhos contraídos e o corpo balançando de enjoo e pesar. Com um dos braços apoiado à parede, seguiu para a porta do cômodo vazio, tateando como se, apesar das lâmpadas acesas, caminhasse na escuridão. Já encostada ao batente, observou cada um dos pequenos objetos que formavam o mundo da criança: a caminha arrumada com o edredom azul de estrelas amarelas, o guarda‑roupa de pátina branco, as cortinas do Peter Pan nas janelas, as estantes com os brinquedos, a escrivaninha que já começara a ser usada para trabalhos da escola. Sobre o encosto da cadeira, o pijama que ele havia tirado para ir à galeria horas antes. Ela tomou‑o nas mãos e inspirou profundamente o cheiro de sua criança ainda impregnado nas fibras do tecido, o cheiro da inocência tão oposta àquele mundo a devorá‑la. A mãe se afundou em uma outra espécie de escuridão, desconhecida até aquele momento. Agarrada à roupa de cama de Felipe, desabada sobre o pequeno colchão, ela chorou descontroladamente até que Otávio a tomasse em seus braços e a retirasse dali.
O sol que entra pelas frestas da janela desperta Ângela. Ela tem a sensação de haver misturado, durante o tempo difuso da noite anterior, sonhos e lembranças com Felipe e com as primeiras madrugadas de sua ausência. A casa está bastante silenciosa, Otávio já deve ter saído para o trabalho. Ângela levanta‑se da cama, lava o rosto, escova os dentes e sai de seu quarto. Atravessa o corredor, passa direto pelas escadas que a levariam à sala e então à cozinha, e se aproxima da porta do quarto de Felipe. Sob o batente, dá um toque no interruptor, removendo da escuridão a imagem perfeitamente igual àquela com a qual se deparou na primeira noite após o desaparecimento. O quarto dele fora mantido cuidadosamente intacto durante essas três décadas, como se o pequeno Felipe tivesse acabado de sair dali e pudesse voltar a qualquer momento. Sua cama está feita, arrumada com o edredom azul de estrelas amarelas; o guarda‑roupa de pátina branco, as cortinas do Peter Pan nas janelas, as estantes com os brinquedos, a escrivaninha que já começara a ser usada para trabalhos da escola, tudo permanece preservado em seu lugar, como se o tempo não tivesse dado um passo sequer entre aquelas paredes. Sobre o encosto da cadeira, ainda jaz o pijama que o menino havia tirado para ir à galeria décadas antes. Ângela toma‑o novamente em suas mãos, mas sabe que já há muito tempo o cheiro da criança não está mais enredado naquelas fibras. Ainda assim, encosta‑o ao rosto como uma prece. Olha ao redor, pensando que todo esse memorial terá de ser finalmente desfeito ao mudarem de casa. Desmanchar esse quarto será a coisa mais difícil que já fez na vida; não consegue imaginar como poderia realizar isso. Senta‑se, abatida, sobre o colchão antigo de Felipe. Permanece paralisada, com o pensamento anuviado. Tomba o pijama sobre seu colo, estende‑o lentamente sobre os joelhos, para afinal dobrá‑lo. Demora o olhar no tecido cinza sobre suas pernas antes de conseguir se levantar e seguir para o guarda‑roupa. Abre a porta central do móvel e se depara com o leve balançar das roupas do garoto nos cabides. Os contornos do corpo dele restando desenhados ali, como sombras de algodão em pernas e mangas estiradas. Já viu essa mesma cena centenas de vezes, mas ainda sente um nó apertar‑se em seu peito. Ela abre a gaveta onde sempre ficaram os pijamas e deposita ali a pequena dobradura de veludo em suas mãos. O silêncio na casa é fúnebre. Após fechar a gaveta e as portas do armário, Ângela, como faz todas as manhãs, abre as cortinas e as janelas para deixar entrar um pouco de sol no quarto do filho. É a primeira vez, no entanto, que a luz da manhã pousa sobre uma cadeira descoberta.
Ricardo carranza
Ótima iniciativa.