Um trecho de romance de Tomás Chiaverini
Tomás Chiaverini é escritor e jornalista, autor dos romances Correio do fim do mundo (Solo, 2018) e Avesso (Global, 2011). Publicou também os livros-reportagem Cama de cimento (Ediouro, 2007); e Festa infinita (Ediouro, 2008). Como repórter, tem colaborado para Folha de São Paulo, revista Piauí, The Intercept Brasil, Agência Pública, entre outros. Na televisão, foi produtor, editor de texto e editor-chefe do programa Roda Viva, da TV Cultura. É criador do podcast Rádio Escafandro. Nasceu em 1981, em São Paulo, onde vive hoje. Abaixo, o primeiro capítulo de Correio do fim do mundo.
Site: tomaschiaverini.com
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01
Quatro mil duzentos e seis quilômetros depois, Teodoro encostou no pátio de cascalho para dormir por algumas horas. Passava das dez da noite e às margens da estrada, uma interminável reta gelada, não havia qualquer sinal de civilização além daquele posto de gasolina. Ele desligou o motor, reclinou o banco do Corcel, abriu uma fresta no vidro e acendeu o cachimbo. Fumou olhando a pista única de asfalto que cortava a planície nevada e sorriu ao pensar no absurdo da situação. Um homem de sessenta e nove anos, perdido a caminho do Fim do Mundo, em um carro de quase meio século. Depois se lembrou da sala onde tudo havia começado.
Tinha cheiro de mofo e água sanitária. O diretor Burnier estava sentado numa cadeira de couro com espaldar alto e fingia arrumar a escrivaninha. Mudava a posição das coisas – o telefone, a agenda, o peso de papel, o tinteiro –, depois voltava a colocar tudo no lugar, fazendo ajustes milimétricos, compenetrado feito um menino que dispõe os carrinhos antes de começar a brincadeira. Só quando terminou de arrumar tudo pela terceira vez ele se voltou para Doutor Reinaldo e Teodoro. Foi cortês, no começo. Ofereceu água, café e estendeu a mão, indicando as duas poltronas diante da mesa.
Quando Doutor Reinado perguntou por que, afinal, o colégio estava expulsando seu filho, o diretor Burnier não respondeu. Sorriu com os cantos da boca sem lábios, depois se levantou, correu os olhos pelo prontuário aberto sobre a mesa e suspirou, fazendo-se de entediado. Mas era como um teatro aquilo. O diretor Burnier não estava entediado coisa alguma. O ar saía de seus pulmões aos bocados, como se ele tremesse por dentro.
Depois de um ou dois minutos em silêncio, o diretor Burnier fechou a pasta, abriu a primeira gaveta da escrivaninha, enfiou a mão lá dentro, sacou um revólver e o colocou sobre a mesa, ao lado do prontuário de cartolina verde-claro.
– Doutor Reinaldo, senhor Teodoro – disse com uma voz que tentava soar burocrática, mas tremia de excitação –, a questão é bastante simples. Nós não queremos gente como vocês na nossa escola.
Após essa primeira frase, ele se calou por um instante. Teodoro imaginou que tentava recuperar o fôlego. Impedir que seu coraçãozinho covarde escapasse pela boca e saísse saltitando pelo tapete persa. Diante daquele espetáculo burlesco, Doutor Reinaldo e Teodoro também permaneceram em silêncio, paralisados pela violência inesperada, tentando entender o que estava acontecendo, pensando se aquele sujeitinho asqueroso teria coragem de usar o revólver, se seria capaz de alvejar o maior cardiologista do país e seu filho adolescente à luz do dia e sem qualquer motivo.
Quando Doutor Reinaldo apoiou as mãos sobre os joelhos para se levantar, o diretor Burnier o interrompeu:
– Doutor Reinaldo, senhor Teodoro, nós não queremos comunistas na nossa escola – disse por fim, examinando os dois com os olhinhos miúdos, que agora se enchiam de raiva e felicidade.
Doutor Reinaldo recostou novamente e largou os braços para fora da poltrona de couro vermelho, como se estivesse cansado demais para discutir. Teodoro até então nunca tinha pensado em si mesmo ou na sua família como comunistas. Desconfiava que Doutor Reinaldo também não. Tinha dificuldade em imaginar o pai considerando-se qualquer coisa além de cardiologista. De qualquer forma, eles logo perceberam que o homenzinho se referia aos encontros na casa da rua Ubatuba. Perceberam por conta própria, porque o diretor Burnier não disse mais nada. Apenas apoiou as mãos fechadas sobre a mesa e esperou, com seu rosto cinzento tremendo de emoção e os olhinhos cheios de felicidade.
Doutor Reinaldo também não disse nada por um longo tempo. Depois se levantou, esperou que Teodoro o imitasse, alisou o paletó cor de chumbo, pensando por alguns instantes.
– Não temos mais o que fazer aqui, Téo – disse, com uma voz muito baixa e triste.
Em seguida segurou de leve o braço do filho, virou as costas e caminhou na direção da porta. Quando ia saindo a reboque do pai, Teodoro se voltou para trás, por cima do ombro. Mais de cinco décadas depois ele continuaria a achar curioso como a arma, a pasta verde e a mesa de mogno compunham um conjunto tão coerente.