Uma crônica de Jana Lauxen
Jana Lauxen tem 34 anos, é editora e escritora, autora dos livros Uma Carta por Benjamin (2009), O Túmulo do Ladrão (2013) e O Duplo da Terra (2016). Ministra palestras, cursos e oficinas literárias, e é colaboradora da revista Café Espacial. Publicou em mais de 15 coletâneas, e organizou outras 13, algumas em parceria com outros escritores. É responsável pelo selo Nascedouro e pelo projeto Incubadora do Livro, da Editora Os Dez Melhores. Atualmente trabalha em seu 4º livro, o romance policial O Gene de Eva.
Site: assinadojana.com / E-mail: assinadojana@gmail.com
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Como a si mesma
Estes dias, folheando uma revista em uma destas salas de espera da vida, me deparei com uma reportagem sobre uma moça que conheci na faculdade, chamada Daiane. Nós dividimos a máquina de café, os bancos, os professores e o laboratório analógico de fotografia da Faculdade de Artes e Comunicação da UPF, lá nos idos de 2003. Ela fazia Jornalismo e eu, Publicidade e Propaganda. Nunca fomos amigas; apenas nos cumprimentávamos educadamente pelos corredores.
De qualquer maneira, chamou minha atenção um rosto conhecido e resolvi ler a matéria. Ali descobri que Daiane agora possui um currículo de respeito. Ela trabalha como sommelier de cerveja, prestando consultoria e organizando cursos e eventos de degustação, além de ser membro da comissão organizadora do Concurso Brasileiro de Cervejas.
Quando terminei a leitura, fui tomada por um sentimento de orgulho pelas conquistas dela que, admito, até estranhei. A gente mal se conhece, afinal, e eu não ficaria surpresa se ela sequer lembrar que eu existo.
Naquele momento, naquela sala de espera, entendi o quanto o feminismo modificou a minha forma de enxergar as outras mulheres. E o quanto de alívio me trouxe por tirar das minhas costas esta carga pesada demais chamada competição.
Alguns anos atrás, eu confesso: aquela reportagem teria ferido meu orgulho. Ora, ela tinha sucesso, o que só poderia significar que o meu sucesso estava comprometido. Ela é uma grande mulher, logo, minha grandeza corria o risco de diminuir. Ela se fortalece, então é óbvio que eu enfraqueço.
Vem o medo, a insegurança, a ansiedade, a frustração. A raiva. Um coquetel de sentimentos perigosos para a autoestima e a saúde mental de qualquer criatura. E, apesar disso, duvido que exista uma mulher sobre a face da Terra que nunca tenha experimentado tal sensação medonha.
É que a sociedade, a família, a igreja, a indústria e a mídia em geral, todos colaboram fortemente para incutir em nossas cabeças a ideia deturpada de que mulheres são inimigas por natureza. Nascemos, crescemos e morremos com uma única missão: provar que somos melhores que as outras. Mais magras, mais prendadas, mais amadas, mais bem-sucedidas, mais desejadas. Quem julga quem é “a mais”, é claro, são os homens. Os seres pelos quais nós devemos dedicar nossa existência, buscando sempre e desesperadamente sua aprovação. De modo que todas as mulheres são inimigas em potencial, somente esperando uma distração minha para atacar, trair e roubar o que é meu.
A vida vira um pesadelo.
Um pesadelo do qual o feminismo me acordou.
No entanto, o feminismo só conseguiu me mostrar que a outra não era minha inimiga depois que me mostrou que eu não era minha inimiga. Antes de educar o meu olhar a respeito de outras mulheres, foi preciso educar o meu olhar em relação à mulher que eu vejo refletida no espelho, na vitrine e na TV desligada. Sim, eu mesma, esta que vos escreve.
Porque, para reconhecer o mérito e as conquistas de outra mulher, tive primeiro que aprender a reconhecer o meu próprio mérito e as minhas próprias conquistas. Para respeitar e admirar outra mulher, antes precisei descobrir como respeitar e admirar eu mesma. Para sair desta competição desgastante e sem sentido, eu tive que parar de competir.
Somente assim passei a me enxergar com menos agressividade e intolerância – e automaticamente parei de ver as outras com agressividade e intolerância. Como já disse um cara bem legal, porém com um fã-clube bastante equivocado, chamado Jesus Cristo, é preciso primeiro amar a si mesmo, para só depois amar o próximo como a si mesmo.
O feminismo me ensinou a me amar e, assim, me ensinou a amar a próxima. Mostrou que a força de outra mulher não me enfraquece, muito pelo contrário. Nesta luta, estamos do mesmo lado do ringue.
Daí por que o feminismo assusta: ele une um grupo que historicamente aprendeu a competir, e competindo, se dividiu, se enfraqueceu, se tornou fácil de controlar. No momento em que as mulheres percebem que passaram a vida inteira jogando um jogo que jamais poderiam vencer, o sistema se sente ameaçado. E, ameaçado, ataca.
Ninguém pode ser ingênuo para acreditar que ia ser fácil. A onda machista, conservadora e opressora pela qual surfamos agora é a resposta do sistema às mudanças que o feminismo ajuda a promover todos os dias. Eles gritam, mas não porque são fortes e poderosos, como querem nos fazer acreditar. Eles gritam porque sabem que não tem mais volta. Gritam como náufragos desesperados em alto-mar, negando que o barco no qual navegavam confortavelmente está afundando. Lentamente, é verdade, mas continuamente.
Portanto, por mais que eu me horrorize com a brutal reação da massa ao feminismo, também penso que é assim que a mudança vem. Não se balança as estruturas de uma sociedade sem causar rebuliço. A transformação traz o caos, e é o caos que precede a evolução.
Porque aquele sentimento que reconheci na sala de espera, de respeito e orgulho pela força de outra mulher, este sentimento nada e nem ninguém pode destruir ou abalar, nem com balas e nem com berros. Do mesmo jeito que não pode destruir ou abalar o respeito e o orgulho que experimento por ser quem eu sou: uma mulher capaz de amar a próxima como ama a si mesma.