Uma crônica de Luiz Renato Souza Pinto
Luiz Renato Souza Pinto lançou, em 1998, o romance Matrinchã do Teles Pires, que trata da colonização do norte do Mato Grosso ao longo dos anos setenta, durante a ditadura militar. Em 2014, veio Flor do ingá, desdobrando a aventura e apresentando o cotidiano de um casal que se conhece em Londrina, Paraná e vem para o Mato Grosso, quando então se separam. Em 2018, Xibio completa a trilogia, destacando a vinda de nordestinos para garimpos de diamante em Mato Grosso e Goiás. O autor também publicou Duplo sentido (crônicas), em 2016, em parceria com o pernambucano Carlos Barros e Gênero, número, graal (poemas) em 2017, ganhador do II Prêmio Mato Grosso de Literatura.
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Eu não sei mentir!
Eu já havia lido “Quiçá” e “De espaços abandonados” quando conheci Luísa Geisler. Isso foi no dia nove de abril desse 2019, em mais uma edição do projeto Arte da Palavra, iniciativa do SESC, a quem sirvo de mediador, ao lado de Divanize Carbonieri. Quando nos despedimos ganhei de presente seu “luzes de emergência se acenderão automaticamente”, livro que acabei de ler neste instante.
Ocorre que tenho sempre muitos livros para ler. E olho para eles sem saber qual será o próximo, mesmo que haja uma lista, uma sequência determinada, e que pode mudar por infinitas razões. E a mudança que me proporcionou este acontecimento gira em torno da recente polêmica em torno da censura ao seu “Enfim, capivaras” em cidade da região metropolitana de Porto Alegre (GPA, conforme leio em seu texto).
Luísa me dizia em postagem no instagram que seu “luzes…” também continha palavrões, o que, a seu ver, também seria passível de uma ação retrógrada dos paladinos da moral e dos bons costumes. Considero o fato apenas mais um elemento do contexto em que vivemos, sem maiores alardes, o que nem por isso quer dizer que não se justifique uma reação contrária de igual intensidade. Haja Newton e serpentes para tão pouca maçã.
Pois bem, o livro censurado com a alegação de que contém muitos palavrões, em minha opinião tem de verídico o fato de que a crítica da linguagem é, na verdade, mera cortina de fumaça e o que deve incomodar, sobretudo no universo escolar do ensino fundamental e médio, é a presença da tríade sexo-drogas-rockn´roll.
Não vejo como uma história tipicamente adolescente, calcada em peripécias de garotos e garotas que mais lembram os poetinhas do filme “Sociedade dos poetas mortos” que se reúnem de madrugada para ler poemas do que com perigosos delinquentes que só pensam em minar o status quo de adolescentes (ou pré), de conformação moral de alta estirpe.
Claro que, a exemplo da referência de idade para filmes, a de livros deve ser respeitada, mas como indicativo de uso, como alerta para o conteúdo disposto no pacote. E não se deve também abrir mão de uma mediação segura que faça com que o objetivo da leitura seja uma ampla discussão acerca dos temas transversais, não apenas com foco no enredo da narrativa. Para isso existem professores que devem conduzir leituras com o objetivo de formar leitores.
Estamos diante de um grupo de garotos classe média alta, se não alta-alta. Observa-se isso no início, quando se anuncia que “Léo seca as mãos na calça jeans de seiscentos reais quando Dênis surge à porta da casa” (GEISLER, 2019, p. 11). Mas na sequência, percebe-se que há um congraçamento com pessoas de baixa renda também. “Nessa [Vanessa] solta uma risada. Do lado de fora, vejo seu Edir, pai do Marcos e do Carlos e marido de dona Claúdia, pra quem minha mãe já fez faxinas no final de semana (idem, p. 23).
Denis, também conhecido por Binho, é um mentiroso. E a turma resolve tirar a limpo de uma vez por todas essa fanfarronice. Depois de tantos ardis, ele afirma ter uma capivara de estimação e agora os colegas querem desmascará-lo. Pressionado, Binho (ou Dênis) diz que o animal fugiu e saem em busca de encontrá-lo, dando início a essa aventura que rola a noite toda. “Passamos por uma macumba, e todos desviam. Mas a macumba também quer dizer uma outra coisa. Estamos numa encruzilhada” (idem, p.90).
Estamos em uma bifurcação similar quando pensamos em binarismos de qualquer espécie. Maniqueísmos brutais contribuem sistematicamente para a destruição da diversidade de opiniões, mais do que de gêneros. Enquanto eles buscam se encontrar pelos ruídos do galo, penso em João Cabral de Melo Neto, que vai tecendo seus significados em rede. E a manhã vai se anunciando tenebrosa.
Luísa me faz ir até seu “luzes de emergência…” alertando-me de que palavrões também habitam por lá. Mas há mais do que isso em comum nas duas obras. Bebidas alcoólicas, salgadinhos em pacote, refrigerantes e outros elementos denotativos de uma sociedade que se alimenta mal, de pais que se alimentam mal e reproduzem hábitos nocivos à saúde, mais talvez do que qualquer palavra considerada chula. “Acho que hoje em dia não se fazem mais famílias de vizinhos que passam uma ceia de natal juntas (e saem cantando músicas com palavrões)” (GEISLER, 2014, p. 33).
Luísa consegue trazer para seus livros um olhar bastante interessante sobre os conglomerados contemporâneos e novas maneiras de se relacionar com o mundo exterior. “Na janta, falamos de evangélicos, porque meu pai tinha certeza de que eles e os chineses iam ser os donos do mundo nos próximos cinquenta anos” (idem, p. 212). Henrique confessa em carta ao amigo Gabriel.
E se o assunto é o cotidiano escolar, ela também é precisa com sua narrativa aparentemente despretensiosa: “p.s.3 meu velho, sabe o que é idiota [pergunta]. Isso de tratar adolescentes tipo crianças durante, sei lá, toda a adolescência. Daí, aos dezessete anos tu vira cento e oitenta graus. E daí tu quer que eles decidam nos próximos poucos anos o que tu quer fazer pelo resto da tua vida” (idem, 216). Veja se não é essa a pressão que pais e escolas fazem quando chega o momento do ENEM.
Henrique é quem narra o “Luzes de emergência se acenderão automaticamente”, enquanto seu amigo Gabriel está em coma, ao longo de toda a narrativa. Suas cartas para que o amigo leia após sair desse estágio é que constituem a maior parte da história. E as confissões que surgem vão dando contorno ao personagem, suas vicissitudes. Ike namora Manu, mas se relaciona com Dane, codinome de Dante, que herda o nome do pai, que sabe ser gay o filho.
A questão de gênero não é central na obra, mas necessária para que haja amplitude na pretensão de Luísa em trabalhar com elementos reais que estão na ordem do dia e aos quais não se pode fechar os olhos. Henrique não tem muitas certezas. E sofre com isso. “p.s.5 por mais que eu esteja sem a Manu, ainda me sinto como uma pessoa que atira com duas armas, errando tudo o que é coisa. […] p.s.6 atiro torto, e ainda acho que tô sendo o mais foda” (idem, p. 283).
Escolha as suas armas, parece ser essa uma das lições que Luísa traz. Pelo menos metaforicamente. Quem opta por usar duas armas de alto impacto ao mesmo tempo, embora dê mais tiros, erra mais do que acerta. Até pelo repuxo que a pressão gera no corpo humano. A metáfora aplicada às escolhas do garoto dá conta das pressões e do chamado que o corpo traz para cada um de nós.
Ike é um garoto simples, trabalhador. Estuda com dificuldade e passa os dias na loja de conveniência de um posto de gasolina frequentado por agroboys que consomem bebidas alcoólicas em quantidade, enquanto ouvem música alta nas imediações. Ele apenas quer ser feliz. Seu pecado maior, sua carga de culpa a que a sociedade lhe atribui é gostar de meninas e meninos. Gabriel, seu confidente, está em coma, como a sociedade que envolve mais esse drama cotidiano.
Pareço ouvir o pai de Henrique, seu Jônis, bradando em alto e bom som que chineses e evangélicos comandarão uma ditadura daqui a algumas décadas. Não sei mais o que pode ser ficção e o que a diferencia da realidade. “Tristes trópicos”, diria Levy-Strauss. E olha que nem estou falando de genocídios indígenas, do golpe na Bolívia, de assassinatos em série de lideranças populares na América latina.
REFERÊNCIAS
GEISLER, Luísa. Luzes de emergência se acenderão automaticamente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
_____________. Enfim, capivaras. São Paulo: Seguinte, 2019.