Xibio de Luiz Renato: um romance transestadual de fluxos
A resenha “Xibio de Luiz Renato: um romance transestadual de fluxos” de autoria de Divanize Carbonieri foi publicada originalmente na revista Norte@mentos (UNEMAT), v. 12, n. 28, 2019 (http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/norteamentos/article/view/3287).
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Xibio de Luiz Renato: um romance transestadual de fluxos
SOUZA PINTO, Luiz Renato. Xibio. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2018
Irene é a principal narradora de Xibio (2018), terceiro romance da carreira de Luiz Renato*, escritor nascido no Paraná, mas radicado na capital mato-grossense. Nada podia ser mais apropriado numa narrativa que leva esse título, afinal um dos significados da palavra “xibio” é vulva. Contudo, outros quatro narradores menos importantes se apresentam igualmente ao leitor, todos de nome Sebastião. E, como também se usa esse termo para se referir ao diamante de pouco valor no universo dos garimpos, dois deles advêm das classes populares e de localidades fora dos grandes centros do país. A outra dupla corresponde a personagens históricas que acabaram tendo uma importância mítica ou religiosa na cultura popular brasileira.
Sem acontecer num espaço fixo, Xibio é, antes de tudo, um romance transestadual, composto por incessantes fluxos de pessoas por vários estados, algo que combina com a trajetória de seu autor. Talvez por isso sejam tão recorrentes as imagens relativas à água. São os grandes rios que funcionam como as artérias desse imenso organismo que é o Brasil, irrigando territórios diferentes e permitindo o deslocamento de populações e mercadorias entre eles. Menções ao Velho Chico, Araguaia e Capibaribe espalham-se pelas páginas do romance, emergindo e submergindo aqui e ali, bem ao sabor das correntes, ora desenhando, ora apagando os cenários em que a história se passa.
O movimento da água também se adivinha no fluxo de consciência, que é o modo narrativo predominante, diluindo e difundindo as reflexões dos personagens e também as suas localizações nesses espaços. Irene navega entre seu passado em Londrina, quando conheceu o ex-marido Pedro na universidade, e seu presente como uma mulher de cinquenta anos num local indeterminado, passando por lugares que visitou e que a marcaram, como Juazeiro do Norte, Ouricuri, Barra do Garças, Balisa, São Luís. Numa espécie de sonho ou delírio, ela também mescla a experiência como tripulante de um navio de turismo com uma visão mítica e fúnebre: “[e] a face oculta de Caronte a possuir com fúria um dos remos. […] Gordos burgueses deixando-se evaporar na sauna seca do navio preparado para sair. Dois sacos de batata me esperam. Pego da faca e começo a descascar” (p. 22).
A presença de Caronte se justifica pela ausência de Pedro no presente de Irene, uma vez que ele foi brutalmente assassinado num momento em que o casal já estava separado há vários anos. Assim, a viagem de Irene por suas impressões e reminiscências também é a sua jornada pelo luto. Pedro é o narrador do romance anterior de Luiz Renato, Flor do Ingá (2014), que, como Matrinchã do Teles Pires (1998) e Xibio, integra uma trilogia elaborada inicialmente para tratar da ocupação de Mato Grosso por sulistas, sobretudo paranaenses. Em Xibio, a voz narrativa principal continua sendo a de uma paranaense, porém, o escopo espacial, como vimos, se alarga para incluir outros estados e regiões.
A circunstância da morte de Pedro, ocorrida em 10 de março de 2015, é descrita praticamente num tom jornalístico, pois foi pelos jornais que Irene teve conhecimento dela: “[n]o alto do morro que leva à Igreja de Bom Jesus podia se perceber gotas de sangue espaçadas e lá de cima, ao lado do sino da igreja […] encontrava-se o corpo estendido de cabeça pra baixo, crucificado […] com uma marca no lado direito do rosto e o ventre perfurado” (p. 44). A narradora viaja para Goiás, na tentativa de colher mais detalhes sobre esse assassinato. Alguns motivos chegam a ser aventados: “[a]s pessoas da cidade falam que fora confundido com um homossexual acusado de roubo, furto ou coisa parecida” (p. 45). Mas, em grande parte, o ato cruel permanece um mistério para Irene e também para os leitores.
O par composto por Irene e Pedro espelha o casal Sebastião e Irene, o santo e a mulher que o salvou depois de ele ter sido atingido pelas flechas dos soldados romanos. E é justamente São Sebastião o primeiro dos narradores secundários a aparecer depois da narração inicial de Irene. É dele também a voz narrativa que encerra a última sequência do livro. As sevícias infligidas a Pedro antes de morrer se assemelham àquelas sofridas pelo santo. E, como Pedro, que era um progressista e defensor de movimentos sociais como o MST (teria sido essa, na verdade, a razão de sua morte?), Sebastião se posicionou contra a maior potência política de seu tempo, o Império Romano, e foi “[a]batido pela força de um poder monocrático que não pode mais se manifestar nas relações humanas” (p. 25). Em comum ainda, os dois homens têm as mulheres de nome Irene, com a diferença de que a de Sebastião conseguiu livrá-lo, ainda que temporariamente, da morte, e a de Pedro não.
Os outros Sebastiões do romance são o rei de Portugal desaparecido durante a Batalha de Alcácer-Quibir no Marrocos, um barqueiro do Rio Araguaia a levar encomendas entre suas margens e um velho garimpeiro de origem maranhense em Goiás. Esse último narrador explica sua sina da seguinte maneira: “tenho na bateia que agora olho o meu oráculo, santuário, ganha pão. Nunca passei de um xibiu em minhas noites de busca incessante, mas criei meus filhos todos com essa ninharia” (p. 99). Dessa forma, existe uma escolha deliberada por centrar a narrativa nos pequenos, naquelas figuras muitas vezes esquecidas pelas autoridades brasileiras e até mesmo pelos autores da literatura consagrada do país.
Ainda que a narradora Irene seja uma advogada, sua história se desenrola nos encontros com outras personagens populares, como a prostituta Celeste e as devotas de Padre Cícero, Ana de Jesus e Ana das Dores. Aliás, lá no mundo dos mortos, ao qual a barca de Caronte conduz os falecidos, Cícero Romão Batista, ícone da cultura popular nordestina e, como Lampião, até de uma certa rebeldia diante dos poderosos, encontra-se ao lado de Dom Sebastião e de São Sebastião, ajudando a conduzir dali a narrativa de Xibio. O grande mérito de Luiz Renato, nesse romance, é justamente enfrentar a morte, para mergulhar no que permanece vivo, mesmo após o ataque de forças opressoras. Os locais e objetos de culto e devoção no Brasil são muitas vezes espaços e ícones de resistência aos desmandos das elites contra o povo do país.
Xibio é um romance difícil de classificar. Reúne elementos de realismo mágico com a investigação da interioridade de seus narradores. Ao mesmo tempo, discute a natureza da morte e o que se desdobra depois dela. Examina ainda, mesmo que de forma descompromissada, as misérias políticas do Brasil, a história de seus derrotados, que muitas vezes acabam alcançando a vitória depois do fim de suas vidas individuais. O resultado parece ser uma forma nova, coerente consigo mesma e intrigante dentro da literatura brasileira contemporânea. No que se refere às letras mato-grossenses, é importante por apresentar o estado como um polo irradiador de fluxos para outras regiões, interconectando-o com as torrentes narrativas que jorram de diversos contextos nacionais periféricos.
* O nome do autor aparece dessa maneira na capa do romance.