“15 contos escolhidos” de Katherine Mansfield – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com a apreciação sobre 15 contos escolhidos de Katherine Mansfield prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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15 contos escolhidos | Katherine Mansfield
Na obra-prima “Bliss” (Êxtase) da jovem escritora neozelandesa Katherine Mansfield (1888-1923), falecida prematuramente aos 34 anos (conto escrito em 1918), Bertha Young tem 30 anos e está radiante, em êxtase, com sua vida de sonho, perfeita, saltitante nas ruas, pulando feito uma criança. Bertha tem o casamento perfeito, uma bebê linda, uma casa maravilhosa, coisas e amigos tal e qual perfeitos, os quais aguarda para o jantar. Todos eles envolvidos com arte, atores e poetas. Bertha está esfuziante, em êxtase, devido à aproximação do encontro em sua residência. Mesmo diante do desconforto pela superproteção da babá com relação à sua filha, a pequena B, nada (ou quase nada) parece capaz de perturbar o seu estado de espírito.
“Como a civilização é idiota! Por que ter um corpo se é preciso mantê-lo fechado num estojo como um raro, um raríssimo violino?” (p. 11) E mais adiante: “(…) com as mãos caídas ao lado do corpo, como a garotinha pobre diante da garotinha rica com a boneca.” (…) “Por que ter um bebê se deve ser mantido não num estojo – como um violino raro, raríssimo – e sim no colo de outra mulher?” (p. 13)
Presentes ao encontro: seu marido Harry, o poeta Eddie Warren que havia acabado de lançar um pequeno livro de poemas, a blonde Srta. Pearl Fulton – um “achado” de Bertha – e o casal perfeito – ele, prestes a inaugurar um teatro e ela, envolvida com decoração de interiores – o Sr. e a Sra. Norman Knight.
Ao final do encontro, uma revelação mostra o quanto a casa maravilhosa de Bertha é tão frágil quanto um castelo de areia ou de cartas, se aludirmos ao jogo das relações sociais, a ponto de que baste apenas um toque ou um sopro para que tudo desmorone e deixe de fazer sentido.
“Bliss”, “Êxtase” ou ainda, em algumas traduções, “Felicidade”, é o conto que abre a antologia 15 contos escolhidos e já teve tradução premiada da poeta carioca Ana Cristina César.
O conto seguinte, “Je ne parle français”, também datado de 1918, é narrado em primeira pessoa pelo jovem francês com nariz de fox terrier Raoul Duquette, de 26 anos, em pleno vigor e arrogância típicos da juventude. Amante da literatura inglesa moderna e ao mesmo tempo crítico ácido dos costumes do povo inglês, ele se coloca como uma promessa da literatura francesa.
“(…) mesmo para o autor de Moedas falsas, Portas erradas, Guarda-chuvas perdidos e mais dois livros em elaboração, não era fácil prosseguir com meu caminho triunfante.” (p. 44)
Duquette é o anfitrião que espera num café parisiense a chegada dos ingleses Dick e Mouse que se hospedarão em um hotel e serão ciceroneados pelo jovem francês. Dois jovens estrangeiros, estranhos em uma terra estranha, dividem um quarto de hotel.
“(…) eles estavam sofrendo… aqueles dois… realmente sofrendo. Eu tinha visto duas pessoas sofrerem como suponho que jamais verei.” (p. 57) E mais adiante: “Dou minha palavra de honra como um cavalheiro, um escritor sério, jovem e extremamente interessado na moderna literatura inglesa.” (p. 58)
Uma carta de suicídio ou uma carta de despedida?
No conto “A festa no jardim”, de 1922, vemos o clima ideal e o dia perfeito para tal acontecimento. A família Sheridan é composta pelo Sr. e Sra. Sheridan e as meninas Meg, Jose, Laura e a jovem Laurie. Para os preparativos da festa no jardim a família Sheridan conta com o trabalho dos operários que montarão o toldo, o rapaz da floricultura, o funcionário da Godber’s, famosa pelas bombinhas de creme, além da cozinheira elogiada por Jose por seus “sanduíches tão requintados”, quinze tipos de sanduíches, da criada Sadie, do bom Hans e da criadagem da propriedade. Sem contar a orquestra.
“Jose adorava dar ordens aos criados, e eles adoravam obedecê-la. Ela sempre os fazia sentir que estavam participando de uma peça de teatro.” (p. 64)
Já Laura é a artista dotada de sensibilidade social. Ao contrário de Jose, Laura se sente tocada pela gentileza e camaradagem entre os operários e se questiona pelo fato de sua classe social não fazer parte do mesmo círculo de amigos por conta de “uma dessas absurdas distinções de classe” (…) “como menosprezava convenções estúpidas.” (p. 62)
No conto, é nítido o contraste entre a riqueza dos donos da festa e a pobreza dos trabalhadores responsáveis por sua organização, numa casa com “telefone”, “piano”, “tampo do tinteiro”, levando-se em conta que a história se passa no início do século XX.
O conflito se apresenta com a chegada da notícia da morte acidental de um jovem rapaz chamado Scott, um carroceiro em serviço em frente a propriedade da família Sheridan. De imediato, Laura sugere que seria de bom tom cancelar a festa em respeito à família do pobre homem que “deixou mulher e cinco filhos pequenos” (p. 68), porém encontra resistência por parte de sua mãe, a Sra. Sheridan, e de sua irmã Jose.
“– Suspender tudo. Laura! – gritou Jose, atônita. – O que quer dizer?
– Suspender a festa no jardim, é claro!
(…)
– Mas não podemos dar uma festa no jardim com um homem morto bem ali, diante do portão da frente.
Aquilo realmente era extravagante, porque os casebres ficavam num beco, ao pé de uma subida íngreme que levava até a casa. Uma rua larga passava no meio. Na verdade, ficavam muito perto. Eram algo feio de se ver, e eles não tinham direito algum de estar naquela área. Eram casebres pobres pintados de marrom-chocolate. Nos canteiros dos quintais não havia nada além de talos de repolho, galinhas doentes e latas de tomate. Até mesmo a fumaça que saía das chaminés era marcada pela pobreza.” (p. 68)
Mesmo com a discordância de Laura e seu mal-estar em se divertir diante da tragédia que acometeu a família pobre do fim da rua, a festa no jardim é um sucesso.
“Para onde quer que se olhasse havia casais passeando, se inclinando sobre as flores, se cumprimentando, se movimentando no gramado. Eram como pássaros alegres pousados no jardim dos Sheridans, só por essa tarde, em seu rumo para: onde? Ah, que felicidade é estar com pessoas que estão todas felizes, apertar as mãos, sorrir.” (p. 71)
Ao término da festa, há um desconforto da Sra. Sheridan, à mesa de jantar, diante do comentário do Sr. Sheridan com relação ao trágico acidente, pensamento que coincide com o de Laura, ao passo que esta aproveita para fazer uma proposta, mais uma “de suas ideias brilhantes”.
“– (…) Vamos fazer uma cesta. Vamos mandar para aquela pobre criatura um pouco dessa comida em perfeitas condições. De alguma forma, será um presente para as crianças.” (p. 72)
Compensação, solidariedade ou apenas culpa de classe?
O conto “Uma xícara de chá”, de 1922, tem tema similar ao anterior. Apresenta novamente a questão da solidariedade, do proselitismo e do constrangimento da riqueza diante da pobreza extrema.
Há também as sem-cerimônias do adeus no conto de 1920 “As filhas do falecido coronel”. Nele, o velho aposentado Woodfield se mantém encerrado em sua casa desde o derrame. Exceto às terças-feiras quando tem permissão para passar o dia no centro da cidade, embora sua família nem imagine que ao invés disso, na verdade, ele prefira ficar na casa de seu antigo chefe.
Enquanto seu chefe fuma charuto, Woodfield conta que suas meninas estavam na Bélgica na semana anterior visitando a sepultura do pobre Reggie e que, por acaso, passaram pela de seu filho. Este comentário infeliz faz com que o chefe relembre seus momentos com o filho que despontava para uma carreira promissora no escritório ao lado do pai. Até o dia em que um telegrama com a nota de pêsames põe fim aos seus projetos de forma prematura.
A realidade traduzida por uma mosca (título do conto de 1922) presa por uma gota de tinta no mata-borrão, desperta na personagem o sadismo e a crueldade quase infantil de brincar com a vida do inseto, pingando gota a gota de tinta sobre o seu corpo diminuto. Espectador de sua luta pela vida, o narrador se regozija ao observar a mosca limpando-se, esfregando com as patas as asas e os olhos, esfregando as patas dianteiras como a pentear-se até sucumbir ao líquido escuro lançado sobre si reiteradas vezes.
A aventura da primeira viagem ao exterior, sozinha e durante à noite, é o tema de “A jovem governanta”, sendo o conto mais antigo dessa seleção, datado de 1915.
Em “A casa de bonecas”, também de 1922, as irmãs Burnells, Lottie, Kezia e Isabel, ganham a casa de bonecas do título e ficam ansiosas para ir à escola contar a novidade para as amigas. As irmãs Burnells estudam na única escola da região e, por isso, como seus pais não tivessem escolha, dividem os assentos da classe com crianças pobres.
“E o resultado era que todas as crianças da região, as filhinhas do juiz, as filhas do médico, os filhos do dono do armazém, do leiteiro, eram obrigadas a se misturar.” (pp. 151, 152)
As irmãs Lil e Else Kelvey, filhas de uma empregada doméstica e de pai cujo paradeiro é obscuro – acredita-se que esteja preso –, são excluídas do convívio com as outras crianças. Inclusive, são tratadas de forma diferente – com indiferença – pelas próprias professoras.
As irmãs Burnells convidam as suas amiguinhas uma a uma para conhecerem a casa de bonecas no quintal de sua residência. A casa de bonecas recebe a visita de Emmie Cole e Lena Logan e de todas as outras crianças da escola. Já as irmãs Kelveys são privadas do contato social com as outras crianças por seus pais abastados.
“– Lil Kelvey vai ser uma empregada doméstica quando crescer.” (p. 154)
A crueldade das crianças, neste caso, é um reflexo do preconceito passado pela fala e atitudes dos adultos.
O final do conto “A casa de bonecas” é absolutamente ultrajante.
Ao longo das narrativas, Katherine Mansfield cita autores como Tchekov e Dostoievski, de modo que reconhecemos essas influências em elementos estilísticos de sua prosa. O fluxo de consciência tão característico da obra da escritora, atira suas personagens num turbilhão de pensamentos, memórias, lembranças, sensações.
Katherine Mansfield, nascida na Nova Zelândia, mas educada na Inglaterra, frequentou o círculo intelectual de Bloomsbury, onde teve sua obra invejada por Virginia Woolf. A autora neozelandesa também exerceu influência confessa sobre Clarice Lispector e foi traduzida no Brasil por Ana Cristina César.
Enfim, Katherine Mansfield é uma escritora que deixou uma obra pequena – apenas 88 contos –, porém robusta, digna não só do panteão da literatura produzida por mulheres, mas também da literatura mundial.
Edição lida:
MANSFIELD, Katherine, 15 contos escolhidos, tradução: Mônica Maia, 250 p., Editora Record Ltda., Coleção Folha Mulheres na Literatura, 1ª edição, 2017.