8ª Mostra CineCaos: “A Mulher do Tempo” (2021) – Por Wuldson Marcelo
A Mulher do Tempo. Direção: Icaro Regina. País de Origem: Brasil, 2021
A mistura entre documentário e animação costuma expandir o real, pois traz a possibilidade de soltar a imaginação em um campo muitas vezes cingido por fatos e biografias. Apesar disso, a fronteira entre o real e a ficção há tempos é desafiada no documentário, com obras que abolem a linha entre eles e assumem indefinições e provocações, relacionando- se com o hibridismo.
Já com a animação, histórias reais ganham contornos de fantasia, podem ser surreais, com sequências mirabolantes, encontrando o épico e o onírico. Ou retratos crus que apenas se apresentam como um documentário animado.
O curta documental A mulher do tempo se insere nas produções que escapam da caixinha e apostam no encontro entre gêneros para construir sentido e abordar o seus temas com mais criatividade. Persepolis (2007), Valsa com Bashir (2008) e o brasileiro Torre (2017) são excelentes exemplos desse tipo de cinema.
O documentário do diretor Icaro Regina acompanha a acordeonista (ou gaiteira) Neusa Regina, desde a sua infância, no interior do Rio Grande do Sul, até o sucesso em sua carreira musical, passando pelo momento em que o tempo – como tempo atmosférico – ganha importância em sua vida.
O início do curta é instigante, com a narração em off de Neusa não condizendo com o que é mostrado. Tem-se uma bela cena do gomo de uma laranja se transformando em um acordeom. Assim como esse trecho, a animação, ainda que simples, reserva vários instantes de beleza, principalmente quando lida com os fenômenos climáticos.
A Mulher do Tempo trata especialmente de música, da trajetória de uma jovem que se desenvolve como uma musicista experiente. Nos seus quase 21 minutos, o documentário mostra a relação de Neusa com a família, que tem na música um vínculo, as viagens pelo Rio Grande do Sul, as conquistas em festivais e o machismo incrustrado no meio musical, em que ela sempre era a única mulher nos grupos tradicionais gaúchos. Uma única vez, em sua carreira, Neusa formou uma dupla feminina, e isso no início de sua trajetória. Esse elemento social é apresentando com leveza, mais como um dado sendo pronunciado por sua narradora, sem o peso da indignação. Apesar disso, a relevância da informação é compreendida, assim como a coragem e o pioneirismo de Neusa.
O curta-metragem é uma obra sobre a memória. Nisso, as fotografias e os vídeos com Neusa tocando gaita, além de acrescentar o componente realidade à animação, revelam que é possível transitar entre os recursos cinematográficos sem anular ou prejudicar as funções que esses mesmos recursos possuem na narrativa.
Algo a se destacar é como se torna instigante o tempo neste conto sobre a existência de uma mulher, como são sentidas as intempéries, associadas às preocupações da maternidade.
A Mulher do Tempo é uma eficiente mistura entre documentário e ficção, com uma ótima trilha sonora, parcialmente assinada por Neusa Regina, que é compositora. A música como parte integral da vida, mas não aquilo que a define, pois somos feitos de desejos, medos e realizações. Daí que uma vida comum, de fama local, contém tanto o que cantar e contar.
No fim, A mulher do Tempo como documentário é curioso, já como animação é encantador.
* Texto escrito a partir da programação da 8ª Mostra CineCaos (Cuiabá-MT), exibida online e gratuitamente no serviço de streaming brasileiro Darkflix no período de 01 a 10 de maio de 2023.
** Wuldson Marcelo. É Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT) e graduado em Filosofia (UFMT). Autor dos livros As luzes que atravessam o pomar e outros contos (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2018), Obscuro-shi – Contos e desencontros em qualquer cidade (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2016) e Subterfúgios Urbanos (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013). Já organizou duas antologias de contos e poemas: Beatniks, malditos e marginais em Cuiabá: Literatura na Cidade Verde (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013) e I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2021). Além disso, é cineasta, roteirista e curador da Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, edições de 2017 a 2022, organizado pelo Aquilombamento Audiovisual Quariterê. É um dos editores da revista virtual de arte e cultura Ruído Manifesto.