8ª Mostra CineCaos: “Bucho de Peixe” (2023) – Por Wuldson Marcelo
Bucho de Peixe. Direção: Johann Jean. País de Origem: Brasil, 2023.
Produção da Caboré Audiovisual, o curta-metragem potiguar Bucho de Peixe, dirigido por Johann Jean e com roteiro de Márcio Benjamin, em seus 10 minutos, apresenta três gerações de mulheres ribeirinhas e sua relação com a lenda do boto cor-de-rosa, que passa pelo fascínio e pela violência, traduzindo a miséria e a hostilidade do local.
A primeira cena é significativa nesse aspecto, pois mostra a sombra projetada na parede de um rapaz que se transforma em boto após dominar fisicamente uma jovem na cama. É uma violação sexual que traz o tom de angústia que permeia o filme. Em seguida, um momento de ternura entre mãe e filhas, em que uma delas escova os cabelos de sua genitora, será o mais plácido do curta-metragem. O aparente sossego, porém, carrega os traumas subjacentes no âmbito doméstico.
A história se desenvolve entre passado e presente, com mães e crianças presas a uma vida de poucas mudanças, certa escassez, ainda que com a presença marcante da água, e a lenda do boto, que toma corpo, torna-se obsessão e amargura.
A fotografia explora um escuro azulado que serve a uma dupla dinâmica, a de acentuar o mistério, conferindo-lhe um ar sombrio, e criando uma áurea fantástica ao enredo, simbólico para a ausência e violência masculinas.
Para engendrar essa atmosfera, a atuação das atrizes – adultas e crianças – se destaca, transmitindo dor, compreensão das intempéries da vida e compulsão em medidas exatas. Giovanna Araújo, Aurora da Silva Cavalcante, Laura Ferraz, Priscilla Vilela e Beatriz Silva revelam como o interior é afetado por um mundo exterior adverso às mulheres.
Nesse sentido, o mito do boto cor de rosa é uma maldição que as mantém no mesmo lugar em que a vida não progride, interferindo em seus destinos e confirmando o ciclo feroz que é o patriarcado. Em Bucho de Peixe, o boto não seduz, ele é a ruptura da confiança, um ato atroz, quase inconsciente, do instinto frente ao afeto, dos desejos primários diante dos laços sanguíneos.
Nesse cenário, o mar não é alívio, mas cárcere, como uma ilha isolada que preserva seus habitantes distantes de uma ligação oposta ao já conhecido com o mundo. A frase proferida por uma das crianças nos permiti dimensionar o nível de desesperança que acomete as mulheres, reféns de um mito e de sua violência, “o mar não traz nada de bom, só leva”, quando a mais nova deseja que a mãe volte para casa e a mais velha sabe que que há uma grau de insanidade nas cicatrizes que não se curam.
E é revelador que, neste curta dominado pela presença feminina, a última palavra dita seja mãe. Pronunciada com certo tom de nostalgia, como pedido de auxílio, como esperança de cuidado e temor do fascínio da cultura, em que cedo meninos desrespeitam o corpo das meninas as condenando a uma busca por uma identidade que supere a fragilidade, no entanto esbarrando a todo momento no princípio da vulnerabilidade.
Bucho de Peixe atesta a qualidade das produções da Caboré Audiovisual, que é a responsável pela websérie Septo (2016-2020) e o curta-metragem Time de Dois (2021) de André Santos.
* Texto escrito a partir da programação da 8ª Mostra CineCaos (Cuiabá-MT), exibida online e gratuitamente no serviço de streaming brasileiro Darkflix no período de 01 a 10 de maio de 2023.
** Wuldson Marcelo. É Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT) e graduado em Filosofia (UFMT). Autor dos livros As luzes que atravessam o pomar e outros contos (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2018), Obscuro-shi – Contos e desencontros em qualquer cidade (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2016) e Subterfúgios Urbanos (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013). Já organizou duas antologias de contos e poemas: Beatniks, malditos e marginais em Cuiabá: Literatura na Cidade Verde (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013) e I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura (Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2021). Além disso, é cineasta, roteirista e curador da Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, edições de 2017 a 2022, organizado pelo Aquilombamento Audiovisual Quariterê. É um dos editores da revista virtual de arte e cultura Ruído Manifesto.
MÁRCIO BENJAMIN COSTA RIBEIRO
Muito emocionado com o texto belísismo! agradecido demais! vida longa ao cinema!
Sidinei José schneider
Texto incrível, que retrata com sabedoria o tema.