A densidade das palavras em “A Máquina de moer os dias”, de Wilson Alves-Bezerra – Por Gledson Sousa
Gledson Sousa é escritor, autor de Pôr a Poesia (Ed. Córrego) e Fantasmas (Ed. Jaguatirica), entre outras obras.
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A densidade das palavras em A Máquina de moer os dias, de Wilson Alves-Bezerra
Em física, define-se a densidade de um corpo ou de um objeto como sendo a relação entre sua massa e seu volume: quanto maior a massa num pequeno volume, por exemplo, maior será sua densidade. Fiquei a pensar se esse conceito da física me ajudaria a definir aquela que para mim é a obra mais densa da literatura brasileira do século XXI, o recém-lançado A máquina de moer os dias (Editora Iluminuras, 2023) de Wilson Alves-Bezerra.
Não é que o aparato teórico da física fosse me ajudar a compreender as diversas camadas desse romance epistolar, mas que o próprio conceito de densidade talvez me ajudasse a pensar analogicamente o que define a densidade de uma obra: se no conceito físico há a relação de proporção entre massa e volume, podemos nos aproveitar dos mesmos conceitos, talvez invertendo somente a proporção (ou a razão de valor): a densidade de uma obra literária mede-se um pouco com a lógica inversa: a menor massa e menor volume que provocam o maior impacto. Sei que impacto é uma percepção, uma sensação psicológica, mas estamos a falar de obras de arte, de obras literárias, e não poderia ser de outra maneira: A Metamorfose, de Kafka, se resolve muito bem em suas poucas páginas, o mesmo se pode dizer do Arcano 17 de André Breton ou Dos Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe: em cada uma dessas obras há pequenos universos condensados de angústia, de esperança ou desilusão, mas o leitor não sai indiferente depois que as lê, porque são obras densas, plenas de sentido e força, que deixam em cada um de nós um impacto duradouro.
Assim é com A Máquina de Moer os Dias: em suas 160 páginas somos abismados com a loucura, a dor, a vontade de redenção e o tempo, numa teia complexa onde o que se desenha é um tanto da história do Brasil, sob o prisma visceral de alguém que num dado momento quis transformar a história desse país.
Digamos que esse personagem se chama Luís Carlos, e que nele se acumulam todas as dores do país, mas num personagem que quer resolver, se confrontar com essas dores de maneira catártica, como se fosse possível resolver os conflitos de um país pela ação de um indivíduo ou de um grupo; digamos que esse personagem se lançou à guerrilha ou a qualquer organização que tentaria derrubar o regime militar, ou esse eterno fascismo que, no fim das contas, nunca saiu do poder. Digamos também que no meio de tudo isso ele perdeu seu amor, e quer voltar no tempo para tentar consertar sua própria história.
Contando assim dessa maneira – sem spoilers evidentes, parece-nos algo trivial; mas essa falsa impressão logo se desfaz quando entramos em contato com a obra, e o que fica evidente, pelo menos é o que senti, é a íntima conexão com esse personagem sofrido: nos identificamos com suas dores, com seu arrependimento pelo não feito, com sua angústia por um país onde a violência cresce mais que o PIB ou onde a violência impulsiona o PIB, onde o falso moralismo e a hipocrisia religiosa assumiram ares proféticos e onde às vezes tudo ficou tão turvo que não temos mais certeza do que é justo, do que é devido, do que deve ser feito.
A Máquina de Moer Os Dias é um drama político-existencial que recupera a força do romance epistolar ao mesmo tempo que homenageia Kafka, Júlio Verne e H.G. Wells, ao recuperar procedimentos comuns e personagens a esses autores: de Kafka, o nome da heroína quase oculta do romance, Milena, bem como, de alguma maneira, o formato epistolar (quem leu as Cartas à Milena, coletânea de cartas do Kafka a sua amada, reconhecerá os elos entre as obras); de H.G Wells, a ideia da viagem no tempo, através de uma máquina ou procedimento, assim como o próprio Wells fez em A Máquina do Tempo; e de Verne as viagens, os deslocamentos, a realização que se dá pela movimentação pelo espaço, pois A Máquina de Moer os Dias é também um romance de viagens, mas não somente pelo espaço, mas sim no espaço-tempo.
E aí entra em cena outro grande personagem do livro: o tempo. Mas não se trata de um tempo homogêneo e linear, como aquele desenhado na física newtoniana, mas um tempo marcado pela duração e pela circularidade.
Essa duração não é uma percepção vazia, mas o confronto da subjetividade com a história, é uma duração marcada pela densidade própria do processo do Brasil, tão cíclico em seus ciclos de violência: o tempo se condensa na duração, mas se condensa em dor, essa duração é um permanente confronto com o trauma. Se por um lado tentar viajar no tempo é uma forma de fuga (e o próprio personagem fala isso na página 18: “Vou te confessar uma coisa: não sei qual das formas de fuga me anima mais: se a máquina (do tempo), se a partida ou se a total imobilidade…), a maneira encontrada para fazer a viagem é justamente o oposto de uma fuga, é a redenção pelo confronto com o passado: imagine que você tem uma chance de consertar as coisas, redimir-se dos erros, ajustar o futuro, mas sem fugir, essa é a tentativa feita por Luís Carlos, e não importa se de fato ele viajou ou não no tempo (talvez seja tudo só loucura da mente dele): o que importa é a percepção e o valor que ele dá à possibilidade de redenção e ao sacrifício implícito na operação de voltar atrás.
Pergunto-me, agora que já o afirmei, se essa circularidade é própria do romance ou o romance só espelha a história do Brasil, onde parece que ficamos presos a ciclos repetitivos de violência. Sim, o personagem se desloca pelo tempo, e passado e futuro irmanam-se num eterno presente de dominação.
Em A Máquina de Moer Os Dias mede-se a densidade da literatura pela visceralidade que a habita: a primeira pessoa que narra na verdade sou eu, é você, é qualquer um que compreende o destino trágico desse país, que sofreu quase à morte quando o fascismo chegou ao poder no Brasil representado pela figura mais abjeta – entre tantas outras – da política nacional; que sofreu nos anos de pandemia, enquanto o cinismo corroía o coração mesmo do poder; que cresceu em angústia e humanidade na medida em que resistíamos às tentativas do projeto totalitarista do verme do planalto.
Não é à toa que a viagem no tempo é também um confronto com o inconsciente, e a literatura da Máquina de Moer os Dias adquire um aspecto meio catártico, porque nas cartas de Luís Carlos à Milena ressoam nossas angústias, e não só aquelas político-sociais, mas as outras mais amplamente humanas, do que fazemos de nossa existência, de como buscamos redenção ou de como o amor define, em larga medida, nosso ser.
E aí revela-se a outra faceta da Máquina: Wilson Alves-Bezerra consegue o feito de transformá-lo, entre os momentos narrativos, numa altíssima prosa poética amorosa, onde o amor ocupa o palco central da existência: somos sujeitos políticos, mas é o amor quem resgata nossa humanidade, ou nos define enquanto humanos.
Quando terminei a leitura, e a releitura, e tri-leitura, fiquei preocupado com o autor: literatura desse calibre não nasce no vazio, as angústias do personagem são as angústias do autor; certo que ele sublimou-as – e uso esse verbo aqui não no sentido freudiano, mas resgatando ao mesmo seu valor alquímico – em arte, mas a arte volta-se para dentro, embrionária, e gesta novos frutos. Mas não deve ter sido pequeno seu sofrimento ou sua dor ao escrever A Máquina. Ou talvez não: talvez trazendo à tona e sublimando a dor, ele tenha se livrado dela. A literatura, assim como a psicanálise, também é uma talking cure.
Seguir o fluxo da Máquina de Moer os Dias é ir de encontro a um pensamento complexo, a uma visão não didática sobre o Brasil; como diz um velho chavão: O Brasil não é para os fracos. Mas A Máquina o é, porque na força está a violência da dominação, e o livro de Wilson Alves-Bezerra acolhe as dores de muitos, de todos, que desde a chegada da esquadra da Colombo ao continente que seria chamado de América, sofreram e sofrem as mais variadas formas de violência que chegaram com o colonizador e aqui permaneceram.
* Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, 1977) dedica-se à prosa de ficção, à poesia em prosa, à crítica literária da literatura latino-americana e à tradução literária. No Brasil, publicou Histórias zoófilas e outras atrocidades (contos, EdUFSCar/Oitava Rima, 2013), Vertigens (poemas em prosa, Iluminuras, 2015), O Pau do Brasil (poemas em prosa, Urutau, 2016 – 5 edições), Vapor Barato (romance, Iluminuras, 2018) e Malangue Malanga (Poemas em prosa, Iluminuras, 2021). Em Portugal, publicou antologia de seus poemas Exílio aos olhos, exílio às línguas (Oca, 2017), as duas edições de O Pau do Brasil (Urutau, 2017 e 2019), seu work in progress de poemas políticos sobre o Brasil contemporâneo, e Necromancia Tropical (Douda Correria, 2021). Organizou com Jefferson Dias a antologia de poesia brasileira contemporânea Um brasil ainda em chamas (Contracapa, 2022). Tem ainda obras publicadas no Chile [Cuentos de amor, memoria y muerte (contos, LOM, 2018)], na Colômbia [Catecismo salvaje, poemas, El Taller Blanco Ediciones, 2021] e em El Salvador [Selección de poesía, Secretaría de Cultura de San Salvador, 2021]. Sua literatura traz um singular cruzamento entre experimentações com a linguagem e reflexões sobre o mundo contemporâneo. Seu livro de poemas Vertigens ganhou o Prêmio Jabuti em 2016, na categoria “Poesia – Escolha do leitor”. Já colaborou como resenhista para alguns veículos do Brasil (O Globo, O Estado de S. Paulo, Cult, Jornal do Brasil, Zero Hora) e do México (El Universal, Contra Réplica). É autor dos seguintes ensaios: Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP, 2008), publicado no Uruguai [Reverberaciones de la frontera en Horacio Quiroga, Más Quiroga, 2021], Da clínica do desejo a sua escrita: incidências do pensamento psicanalítico na obra de alguns escritores do Brasil e Caribe (Mercado de Letras/FAPESP, 2012) e Páginas latino-americanas – resenhas literárias (2009-2015) (EdUFSCar/Oficina Raquel, 2016). Como tradutor, foi responsável pela versão de autores latino-americanos como Horacio Quiroga (Contos da Selva, Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte, todos pela Iluminuras), Luis Gusmán (Pele e Osso, Os Outros, Hotel Éden, todos pela Iluminuras) e Alfonsina Storni (Sou uma selva de raízes vivas, obra que contou com o apoio da Casa do Tradutor Looren, de Wernetshausen, Suíça). Sua tradução de Pele e Osso, de Luis Gusmán, foi finalista do Prêmio Jabuti 2010 na categoria “Melhor tradução literária espanhol-português”. É doutor em literatura comparada pela UERJ e mestre em literatura hispano-americana pela USP, onde também se graduou. É professor de Departamento de Letras da UFSCar, onde atua na graduação e na pós-graduação. Este A máquina de moer os dias é o segundo livro de uma trilogia que começa com Vapor Barato e que ninguém sabe como terminará.