À deriva – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e doutoranda. Mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem-cadela Frau Caramello.
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À deriva
“Deriva” tem muitos sentidos. É inicialmente um substantivo feminino, conota desvios, extravios, transviamentos. Como os saveiros no mar, oscilando nos horizontes sem direção, levados pelos ventos a novos rumos, novos portos, outros ancoradouros. Um descaminho. Tem origem no francês dérive. Em português, é também uma locução adverbial. À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo. Um mundo flutuante, líquido. Amplo. Como o mar. De lugares estéreis, ora estepes, ora abismos. De grandezas incompreensíveis e de misérias fartas. De vidas anônimas, de silêncios e invisibilidades.
Escrever é sempre um exercício de sofrimento e de alívio. Essa dualidade de refletir o eu, @s outr@s e o nós. Sofremos, suamos ao segurar a pena (ops!), ao digitar. Tentamos descrever ou nos expressar de maneira coesa, sem poesia (afinal, a realidade é dura, cruel) e muitas vezes nos desnudamos pelas “tintas dos sentimentos” que borram o papel ou a tela. Escrever e apagar, reescrever e apagar. Repetir cada palavra, cada frase, cada parágrafo. Revisar e reescrever novamente. O esforço continuado de deixar um texto inteligível e atraente. O alívio talvez esteja no ponto final. O porto em que atracamos e que não conhecíamos ao partir. Não que o texto tenha sido enfim concluído, acabado. Não, pelo contrário. Sempre temos algo a mudar, a mover, a retirar, a inserir, a ocultar. São remendos com os quais costuramos a vela única que nos conduz por águas jamais dormentes…
Nesse nevoeiro de incertezas, a coluna que ora se inaugura, quiçá, seja apenas um marulho. Uma brisa fria incômoda no interior de um sistema de opressão. Estar “à deriva” espelha essa nossa condição instável, errática. Carregamos, onipresente, a mesma e forte sensação de embriaguez. O olhar turvo, o desequilíbrio ao caminhar. E então titubeamos. Precisamos segurar entre os dentes aquilo que devíamos pôr para fora e preencher o mundo, ou as águas do mundo, com as náuseas que gestamos no percurso. Lágrimas banham nossas faces. O que nos provoca tamanho mal-estar? E a indigência? E o desamparo? A explicação beira a obviedade: é que a indignação deixou de existir e a dúvida nos impediu de seguir. Não existem respostas certas?
No Brasil, atualmente vivenciamos um colapso. Um estado de crise próximo a um Estado de Exceção. Testemunhamos atônitos, às vezes passivos, o abandono e a desorganização deliberada dos governos ao lidar com a pandemia, acentuando a instabilidade econômica; o desperdício do dinheiro público; centenas de milhares de pessoas morrendo sem cuidados adequados de saúde; a persistente falta de recursos básicos, como saneamento básico e energia elétrica ou racismo ambiental; e a vulnerabilidade alimentar (nutrícido alimentar ou insegurança alimentar). Residimos em uma falésia que desmorona a cada onda, com a ressaca. Em nossos corpos abrigamos a fome e a desesperança. Vivenciamos a fila de ossinhos neste mundo miserável. Des-esperamos. Nem deus, nem religião. Nenhuma fé. Nenhuma entidade interventora para apaziguar a agonia d@s que se afogam na tormenta. Apenas você e eu, apenas nós, e o desejo invencível de alterar o destino d@s marginais, d@s rot@s, d@s velh@s, e derrubar esse sistema que apodrece.
No continente americano, do Sul ao Norte, autoridades públicas e civis fomentaram e ainda fomentam o negacionismo. Proferem um discurso em que se escancara a prática da necropolítica. Estimula-se as violências, acentuando o desprezo para com as minorias ou minorizados. Pobres, negros, indígenas, migrantes, população LGBTQIA+, mulheres, pessoas com deficiência, idosas/os, crianças. Se perguntamos, “qual a cor?”, “a nacionalidade?”, “a classe?”, dos quase 1 milhão e 500 mil mortos somados entre os Estados Unidos e Brasil, líderes na estimativa mundial de óbitos pelo coronavírus, não nos surpreendemos com os resultados. E isso apenas em dados oficiais [1], porque as subnotificações são de 5 ou 7 vezes maiores. O número de óbitos de pessoas não brancas (nativo-americana, negros, pardos ou imigrantes) e classe média baixa ou na linha de pobreza por essa enfermidade, nesses países, chega a ser 5 vezes maior se comparada com a população branca e de classe média alta. Isto é uma barbárie, um genocídio assentido ou deixar morrer.
Assim, devemos utilizar cada vez mais os espaços e publicizar nossos questionamentos dirigidos contra essa bio-necropolítica, que reproduz e perpetua os valores de uma sociedade ainda colonial, racista, machista, patriarcal e elitista. As estruturas e instituições coercitivas que são erguidas sobre tais conceitos e pré-conceitos, promovem historicamente o extermínio dos sujeitos ditos “indesejáveis” ao padrão branco-heterocisnormativo. Primeiro, foram os povos originários, ameríndios. Mas também a mulher, em sua pluralidade ou diversidade, a população negra, a população LGBTQIA+, os migrantes entre outros.
Encerramos esta breve apresentação que foi estruturada para fomentar as resistências e as existências. Apesar da indeterminação dos caminhos, das divagações sem rumos definidos. Apesar da deriva. Esperamos que tod@s sejam vacinad@s para que em nossos retornos, assim que atracarmos no porto de partida, possamos desfrutar dos encontros com os amig@s e familiares, acompanhados de abraços apertados e um bom rum. Ou o original canjinjin de Vila Bela. Aos que tiveram suas vidas ceifadas em decorrência da pandemia de Covid-19 ou pelas ações truculentas do Estado: PRESENTE!
(Ilustração de capa: Shamsia Hassani – artista afegã).
Jania Maria do Nascimento
reflexões urgentes e necessárias que CONDizem com a tempestade que estamos atravessando, a mar aberto… a calmaria e a bonança hão de chegar…
Cristina Soares
Que texto rico!