A falta que queima – Por Paola Granella
A falta que queima
Eu não a via há algumas semanas e poxa vida… Que falta fazia aquela menina brincando aqui em casa, ela sempre nos alegra com o seu jeitinho doce e tão espontâneo que me faz querer ter uma mocinha igual a ela como filha algum dia.
Julia, a minha sobrinha, tinha acabado de voltar a ter aulas na escola e me contava toda animadinha como foi poder reencontrar os coleguinhas. É tão bom para ela estar com outras crianças de novo, porque criança tem que estar junto, tem que estar correndo, brincando, pulando; escola tem que ser para isso também, não só para estudar!
A menina miúda precisava se alongar um pouco para alcançar o centro da mesa enquanto me ajudava a escorrer a água do feijão que estava de molho pra gente cozinhar no almoço. Nós estávamos fazendo uma comidinha simples para comemorar o aniversário do pai dela, o meu cunhado; porque do jeito que tão as coisas hoje em dia não dá para fazer nada demais mesmo, só um arrozinho com feijão ‘pros parentes e cantar um parabéns.
“Tia, eu já terminei, onde que é pra colocar?” Julinha me perguntou enquanto eu tirava a panela de arroz do fogão e então eu disse a ela que devia colocar o feijão na panela de pressão que eu havia deixado em cima da pia já com água e depois poderia pôr no fogão para cozinhar.
“Tia, mas não tá ligando o fogo” ela voltou a falar minutos depois, fui ajudar a menina achando que ela estava com dificuldade para girar o botão, mas ela estava certa, não estava acendendo porque acabou o gás! Droga!
“Lúcio, acabou o gás” gritei pro meu marido que estava lá fora com o irmão.
“E agora? Não tem dinheiro não mulher, tá pra mais de cem conto o botijão”, suspirei com a sua resposta pensando no quanto a coisa tá feia ultimamente, uns meses atrás eu paguei setenta reais num gás e já achei caro, como que pode ter subido tanto assim?
Expliquei pro meu marido que só faltava cozinhar o feijão e ele disse que tinha umas madeiras no quintal, que dava pra acender um fogo com álcool e pôr a panela em cima.
Essa situação já estava criando rotina. A gente não tem dinheiro pra nada, eu perdi meu emprego ano passado no meio daquela pandemia doida e agora só faço uns “bicos” quando eu consigo. O Lúcio trabalha mas não é suficiente para todas as contas, de vez em quando a gente tem que escolher, ou compra a comida ou compra o gás, os dois não dá! Hoje foi um desses dias.
Mas se Deus quiser logo isso passa e a gente fica bem de novo. Eu consegui uma entrevista de emprego essa semana para ser cozinheira de uma madame lá do Água Verde e tô com fé em Deus que vai dar certo.
Comecei a arrumar a madeira com uns tijolos em volta para pôr a panela em cima, antigamente a gente fazia assim, mas colocava uma grelha para assar carne. Só que não dá mais pra fazer churrasco, quase cinquenta conto o quilo da carne, não tem como comprar.
Lúcio veio me ajudar com o álcool e um isqueiro. Eu segurando as madeiras enquanto ele tentava fazer o fogo acender nela. Tentamos uma, duas, três e na quarta vez ele acendeu, fraquinho fraquinho.
Meu marido juntou a madeira acesa com as outras que estavam entre os tijolos e logo jogou um golinho de álcool para o fogo subir.
“Julinha, traz uma tampa de plástico pra tia” eu gritei pra menina ouvir lá de dentro e logo em seguida comecei a abanar a brasa quando ela me trouxe o que pedi.
Lúcio colocava cuidadosamente mais um pouquinho do álcool na nossa fogueira improvisada.
“Posso colocar a madeira ali, tia?”
Nesse momento tudo aconteceu muito rápido, só vi a menina se aproximando do fogo ao mesmo tempo em que a brasa aumentava se transformando numa chama forte e alta. No impulso e no medo da menina se machucar eu a empurrei e enfiei a mão na chama como se fosse afastá-la de minha sobrinha.
“Titia a sua blusa tá pegando fogo” ela gritou e só então me dei conta que a chama se estendeu pelo tecido florido da minha camiseta. Logo chacoalhei o braço sentindo um ardor se alastrar pela minha pele e o desespero me tomou sem pena.
Lúcio também desesperado com a cena e com o álcool na mão jogou a garrafa de qualquer jeito causando uma pequena explosão na fogueira improvisada que triplicou o tamanho de sua chama.
Minha atitude? Joguei minha menina pra mais longe e me joguei no chão batendo o braço queimado na terra fofa do quintal de casa.
Logo mais, ainda tentando me salvar daquele ardor infernal, senti um arrepio quando meu marido jogou uma quantidade generosa de água em mim.
A chama se apagou, mas sobrou uns restos de tecido misturado com o enlameado da terra com água e eu suspeito que nessa sopa também se misturava um pouco da minha pele derretida. Não digo com convicção, pois não fiz questão de verificar.
Voltei à minha lucidez quando ouvi a voz de Lúcio dizendo o endereço da nossa casa ao telefone.
“De duas a três horas? Não podemos esperar tudo isso, ela tá toda queimada aqui no chão moço. […] Como assim não pode fazer nada?”
“Tia você vai morrer?” Só então me dei conta da menina assustada me olhando.
“Júlia, vê se o Mauro tá em casa pede pra ele dar uma carona pra gente” Lúcio disse e então ela se foi pelo portão.
“Vem, levanta daí. Vai ficar tudo infeccionado nessa terra.”
Eu nada respondia, só obedecia sem saber direito o que estava acontecendo. Levantei e me senti meio tonta, sentando de volta na terra agora molhada.
Mais tarde, já observando as paredes brancas e a cortina azul à minha volta, foi que percebi que eu havia desmaiado e agora estava no pronto socorro.
Um rapaz mexia no meu braço e eu dei um grito alto quando senti ele mexer com um negócio gelado na minha ferida.
“Desculpe senhora, mas eu preciso limpar.”
Olhei para outro lado e deixei as lágrimas caírem dos meus olhos que observavam o olhar atento da senhorinha a algumas macas de distância. Ela sorria para mim com um olhar de piedade.
O rapaz mexeu, mexeu e mexeu no meu braço e me pedia pra eu mesma não me mexer.
“A senhora vai ter que fazer um exame de sangue depois que eu terminar aqui tá bom? A sua pressão estava muito baixa quando chegou aqui”
Mais uma vez eu só concordei, o cheiro de carne queimada e pele derretida mais uma vez na minha cabeça. Que agonia aquilo me dava.
Quando tomei coragem de olhar pra minha mão as lágrimas de dor foram substituídas por lágrimas de tristeza e pavor. Parte do meu pulso estava na carne viva como diria a minha falecida vózinha; a pele da região estava até meio pendurada e em outra parte não se via mais pele.
Eu não ouvia nada com clareza, mas entendi algumas palavras que o rapaz falou com a menina que o ajudava: necrosada, enxerto, pomada, esterilização… enfim, o que aquilo tudo significava eu não sabia bem não, mas pela situação que eu via a minha frente, eu sabia que não podia ser coisa boa.
Recebi alta no dia seguinte e que vergonha eu senti quando o médico me perguntou se eu precisaria de um atestado, nem emprego eu tinha, para que precisaria de um? Saí do hospital com a receita da pomada que teria que usar na queimadura pelo próximo mês e mais uma vez as lágrimas vieram à tona quando Lúcio passou na farmácia de manipulação e descobriu o preço. Nós não tínhamos cem reais para pagar o gás e agora da onde eu vou tirar duzentos para pagar uma pomada?
“Fica calma, eu vou pedir um dinheiro pra minha mãe e a gente resolve isso,” disse o meu marido. Mais uma vez vou ter que depender da bondade alheia. Eu detesto isso, detesto ter que pedir dinheiro para alguém, me sinto inválida financeiramente.
Três dias se passaram e a minha esperança precisava renascer das cinzas no dia de hoje. Acordei cedo, cuidei da ferida, me arrumei e saí juntando os trocados que sobraram do dinheiro que a minha sogra emprestou para pagar a passagem do ônibus.
“Você tem experiência como cozinheira, então?” A mulher me perguntou depois de me falar brevemente sobre como seria o serviço.
“Sim, eu era auxiliar de cozinha numa lanchonete antes da pandemia, mas eles acabaram fechando né… Aí desde então faço uns bicos, diária de faxineira ou de garçonete quando tem.”
“Entendi… Bom, me desculpe a indelicadeza mas o que houve com a sua mão?” Dei o meu sorriso mais envergonhado pra pergunta e respondi com honestidade.
“Eu me queimei, doutora. É que um dia desses acabou o gás e eu e o meu marido acendemos fogo com umas madeiras para terminar de cozinhar o feijão, aí deu nisso. Mas logo logo a mão fica boa, não precisa se preocupar não.”
“Tudo bem, espero que sua mão fique boa logo.” Ela sorriu para mim com dó e alí eu já soube que precisaria de um pouco mais de esperança para conseguir um emprego.
No final recebi um “Muito obrigada viu, a gente entra em contato” e voltei para casa.
Comentário da autora
Olá, leitor. Aqui é a Paola, escritora de “A falta que queima” e outras crônicas da coluna “Sob a pele do cotidiano”. A coluna surgiu de uma necessidade de expor situações que se assemelham a “coisas da vida” ou acontecimentos banais do nosso cotidiano e alertar que são na realidade consequências de um governo que não olha para as causas sociais e não atende às necessidades básicas de uma população tão carente. “A falta que queima” especificamente surgiu da seguinte fala:
“[…] Um dia, eu nunca me esqueço desse dia, era 2019 por volta de setembro eu estava em Brasília e fui encontrar o ministro Paulo Guedes. E aí nessa conversa eu disse “ministro num hospital público lá de Recife […] aumentou muito a entrada, a internação de pessoas queimadas” aí ele não entendeu muito o que que eu tava dizendo e eu disse assim que o botijão (que já tava caro e naquele momento eu não me lembro que estava 70, 80 reais ou 60 não tenho memória mais do valor do botijão) tá muito caro e as pessoas não conseguem, então elas pegam madeira, acendem o fogo e para acender o fogo elas precisam usar o álcool caseiro. E aí o álcool, ele gera uma chama azul que muitas vezes é uma chama que você não consegue ver, aí eles riscam o fósforo de novo e quando eles riscam o fósforo a chama vem. [..]”
Essa fala é da jornalista e comentarista da GloboNews, Natuza Nery e foi feita fazendo referência a uma reportagem da também jornalista Bárbara Carvalho para o jornal da edição das 16h na Globonews, que noticiava a marca de vinte e sete milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. Foi essa fala quem me inspirou a escrever a crônica porque eu senti a necessidade de fazer com que as pessoas entendessem a situação e relacionassem os fatos. É necessário entender que dados como os que a jornalista passou para o ministro Paulo Guedes não são apenas dados, eles são na verdade reflexo de decisões e resoluções feitas pelo nosso governo!
É preciso olhar para dentro do fato e ir atrás do que gerou! O que causou e causa acidentes como os que relatei em minha crônica não foi uma falta de atenção ou de cuidado com a manipulação do fogo. O preço do gás, o aumento da inflação, o baixo valor do salário mínimo, o desemprego e a insegurança alimentar foram o que de fato causaram esse acidente e muitos outros pelo nosso país!
Para a construção dessa crônica, a matéria “Família se queima ao usar álcool para cozinhar por falta de gás e precisa de ajuda para pagar tratamento, em Anápolis” do G1, também foi utilizada como inspiração. Vale lembrar que a história não é verídica, mas sim inspirada em tantas outras presentes sob a pele do cotidiano.
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Na coluna Sob a Pele do Cotidiano, Paola Granella traz em forma de ficção, histórias verídicas que nos insere entre camadas de realidade, notícias e reflexões nos incitando ao questionamento crítico das histórias que vivemos no dia a dia. A coluna é um espaço para que se abra os olhos para as entranhas do noticiário e se questione o porquê de cenas tão dolorosas fazerem parte do nosso cotidiano.
Paola Granella é natural de Curitiba, no Paraná. Estudou Letras (Português e Inglês) na Universidade Estadual de Maringá e Jornalismo na Faculdade Ampli. Começou a escrever para si mesma ainda criança e participou de uma publicação pela primeira vez em 2018 na Coletânea “Rede de Poemas” pela Editora Albatroz. Trabalha como roteirista na VG Educacional, fotógrafa por hobby e nômade digital desde maio de 2022.