A menina que só rabiscava
antes de dormir rabiscou
sabia que manuscreveria momentos desconexos
talvez um punhado de efemeridades destoantes que se lançam da mente
cansada
era assim que justificaria todos aqueles ditos aos olhos desconfiados
mas ela realmente sentia o cansaço
não aquela pesada moleza
que come o dedo mínimo do pé e esvazia a cabeça
não aquela névoa que envolve os primeiros espasmos do sono e que vence o esgotamento físico
o cansar, daquela menina, carcomia pouco a pouco
doía e derrubava pilares de diferentes tons a cada sinapse
tons que massificaram-se em um disforme nanquim
(dizem que o nanquim é, somente, o que é, em oposto às cores que reluzem como feixes de sonhos que ninguém sabe, mas sempre quer…)
mentiu mais duas vezes naquela noite:
disse pra si que aprenderia a esquecer
depois, lembrou de duas linhas, duas sequência de palavras lidas numa noite triste
e enfurecidamente derrubou pelos olhos as inundações de si
então, como quem traga mais uma dose de opioide
mentiu que o sentimento da dor cessaria
ela tinha olhos expressivos, um raso entendimento do mundo, boas curvas, ouvia mais que falava,
lidava com os próprios problemas, e mesmo assim, não fez diferença
cada mísero adjetivo desmantelava-se, era pouco mais que nada
(considerou que o desejo de um homem não leva em conta adjetivos daquilo que ele não mais deseja…)
daquela verdade, gravada na sua mente sob o odor de cerveja
ficou só um abismo entre ele e ela
entre ela e qualquer coisa
nessa noite, por sua boca jorrava só repulsa, de si, dele, de outros
seus urros projetavam apenas água nas paredes do sanitário
o que ela tentava expelir com todo o enjoo e lágrimas
estava em cada filamento de memória
em cada pedaço da sua carne latejante
mas ela não pôde livrar-se
entendeu com o tempo
que ninguém consegue restituir uma falta
cravada como um espaço de vento entre pilares
sempre fica o devir
pela mentira se permanece em grandes salas
um envólucro de desejos que cresce abraçando medo, vergonha, cuidado
mas aquela mentira não se restitui
ela iria continuar
mais um dia, mais um noite mal dormida
mais desesperança, tudo mais cru e frio
e ela estava lá, parada,
sugando o calor dos momentos amarelos, vermelhos e sensuais,
doses a conta-gotas,
mínimos filamentos de cor, movimento, luz e som
…estava à beirada do abismo da desistência
deitou, sonhou. deitou, sonhou
às vezes, acordava embriagada de alegria, que era sempre despida durante o dia
às vezes, não acordava,
era só mais um dia de retalhos
às vezes os sonhos-medo imperavam sobre suas noites
sei que ela ainda não entende qual o sonho, qual o real,
se a alegria diária transbordante era a ilusão de um sonho
ou se o pesadelo de agora é a realidade dos dias crus
mas e só,
ela sabe que está despida, como sempre se viu em seus pesadelos.