“A montanha mágica” de Thomas Mann – Por Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com um texto sobre A Montanha Mágica de Thomas Mann prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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A montanha mágica | Thomas Mann
…assim como o objeto-livro Moby Dick [1851] do norte-americano Hermann Melville pode ser a personificação da grande baleia branca, onde cabe ao leitor a audácia e o desprendimento para embarcar e enfrentar o monstro marinho junto a capitão Ahab e companhia, A montanha mágica [1924] do germânico Thomas Mann também se configura como um monumento da natureza selvagem em estado bruto, onde corpo e espírito se irmanam num mesmo arcabouço.
A minha principal motivação para galgar A montanha mágica e alçar mais esse voo literário, foi a leitura e releitura das novelas de Mann reunidas em um único volume, descoberto na estante do quarto dos meus tios durante a minha adolescência. O livro a que me refiro é o volume encadernado de capa vermelha da Editora Abril, edição de 1978, ano em que nasci, de A Morte em Veneza/Tônio Kroeger [1912/1903, respectivamente].
Após o salto nas novelas de Mann e o voo, já mais maduro, com A montanha mágica, mergulhei naquilo que podemos chamar de biografismo ou de “fofocas literárias”: a infância da mãe brasileira de Thomas Mann retratada no documentário Julia Mann – memórias do paraíso, veiculado pela TV Cultura, após integrar a 29ª Amostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2005. Filmado na terra natal de Julia, Paraty, o documentário mostra sua constante travessia até Angra dos Reis e o fim dessa jornada com a ida da família Mann para a Alemanha; a infância de Mann, ainda com o foco voltado para a matriarca, na obra Ana em Veneza [1994] de João Silvério Trevisan e também em seu ensaio sobre Julia e Thomas Mann que consta em Pedaço de mim [1978-2001], livro temático sobre a homossexualidade; e, por fim, a família Mann, dividida entre comerciantes e artistas, tão bem retratada e documentada em Na rede dos magos – uma outra história da família Mann [1991] de Marianne Krüll. Dos filhos de Thomas, talvez o mais emblemático seja Klaus Mann, conhecido por Mefisto [1936], romance que satiriza o nazismo e por sua balada sobre Kaspar Hauser, personagem do folclore alemão. Seguindo uma espécie de tradição familiar, Klaus suicidou-se. A família Mann foi marcada por tragédias, sejam elas em guerras, naufrágios [como a morte de um familiar no desastre do Titanic, p. ex.], inúmeros suicídios, duelos, inadequação social por conta da não aceitação da própria homossexualidade, etc. Por tudo isso, vejo o quanto a obra do Nobel Thomas, o estandarte da família Mann, deixou uma marca indelével na história da literatura universal. Embora Lukács tenha tomado partido por Mann no ensaio Kafka ou Thomas Mann? E, no final das contas, Kafka tenha realmente se adjetivado no mundo moderno – um mundo kafkiano – para mim a obra de Thomas Mann continua tão relevante na atualidade quanto a do autor tcheco, por sua carga humanista.
Algo notável nesses romanções de 700 páginas para cima é que o leitor se ambienta no mundo criado pelo autor de tal maneira que dificilmente consegue se livrar dele. É como se vivenciássemos aquele recorte temporal da história de modo a nos tornarmos íntimos da sua galeria de personagens a ponto de participarmos da composição da narrativa em parceria com o autor.
O Tempo de composição de um romance como A montanha mágica, por exemplo, não leva o mesmo Tempo de sua leitura. Para isso [sua leitura] pode-se levar muito mais Tempo – o Tempo de uma vida. Há que se ter coragem para encarar e força de vontade para escalar essa montanha de papel e voltar ileso do topo. Ou melhor, voltar vivo sim, mas não ileso, pois nunca se regressa de uma jornada munido do mesmo espírito com o qual se ingressou. Passei cerca de seis meses para concluir a leitura do livro. Thomas Mann levou 12 anos [1912/1924] para dar vida a mais uma de suas obras de fôlego megalomanníaco.
Em fins dos anos 90, li um ensaio de Anthony Burgess no Caderno Mais! da Folha de São Paulo sobre o escritor irlandês James Joyce. No ensaio, Burgess afirma que autores da envergadura do já supracitado Joyce, assim como de seus pares, Proust, Balzac ou Mann, se elevam a altura de um deus de si mesmo, pois têm o poder de criar mundos completos e povoá-los. Em suas criações, seus mundos e personagens estão vivos; o deus-autor detém o poder de soprar vida e também de tirá-la, criar castelos e ruínas.
A montanha mágica é um mundo e o mundo d’A montanha mágica se divide entre os homens elevados, no sentido físico e no sentido espiritual – os enfermos do alto da montanha –, e os homens baixos – os das cidades – ao rés do chão, no pé da montanha, inseridos no cotidiano massacrante das massas, ao capital, ao corpo coletivo – euvocênós. A essência em contraposição a matéria.
É claro que existem muitas questões aqui, mas para nos atermos a apenas duas em particular de forma que talvez alcancemos o universal, pergunto: 1. O quê é A montanha mágica?; e 2. Por que ela é mágica? Ouso gracejar almejando partir do obscuro para, quem sabe, atingir a iluminação. Pensando bem, talvez eu não esteja aqui para responder a tais questões, mas tão somente para formulá-las. Afinal, estamos nesse mundo apenas a passeio nesse vasto bosque da literatura. [para parafrasear Umberto Eco]
Assim como a locomotiva não trilha o caminho de Hans até A montanha mágica de forma linear, tendo em vista as inúmeras digressões e ensaios inseridos ao longo do romance, sigo para adiante sem a pretensão de ser conclusivo, pois sou um caminhante disperso e desatento por natureza, perdoe-me.
Através desse ponto de partida, reitero, a minha investigação de modo errante, tem como método a perseguição do acaso e como meta, “perder-me para poder reencontrar-me” [Nietzsche].
A montanha mágica é o caminho do meio, o caminho da redenção, da elevação do espírito. Apartado dos pobres mortais que se acotovelam nas grandes cidades em meio à batalha diária – que é a verdadeira grande guerra do cotidiano – convido-o mesmo que atabalhoadamente ou de forma espalhafatosa para prosseguirmos juntos no encalço desse espírito em formação – ou em vias de deformação – chamado Hans Castorp.
É como se A montanha mágica fosse o grande útero da mãe natureza, da mãe Terra, predestinado a gestar essa página em branco que é o jovem estudante de engenharia, Hans Castorp. Ejaculado por uma serpente de aço – esse grande objeto fálico, a locomotiva – a trafegar por via férrea sinuosa, construída para emergir contornando os Alpes Suíços, o nosso “bebê” Hans, é alçado e, por que não dizer, catapultado da condição de mero menino selvagem para a de espírito elevado a ser cooptado nas alturas da montanha. Daí a sua magia.
A montanha mágica não é um bildungsroman prototípico, mas sim um romance de formação paródico. Temos, para nosso pequeno grande herói, uma trinca de influências que se apresentam, uma a uma, ao longo da narrativa, envolvendo essa tábula rasa Hans por todo o corpus do romance: Settembrini, Naphta e Peeperkorn.
Settembrini é positivo – Naphta, negativo; Settembrini é voltado para o futuro – Naphta, para o passado; Settembrini é republicano e iluminista – Naphta, jesuíta e totalitário; Settembrini, um otimista incurável – Naphta, realista em seu pessimismo; Settembrini crê na ciência que a tudo cura, pois, para ele, a doença não é humana – Naphta vê a vida como uma doença, a doença que no homem é inata; Settembrini vê a felicidade através da educação na cidade – Naphta a vê no campo, preservada no analfabetismo; para Settembrini, em seu pacifismo ingênuo, a literatura é o caminho para a compreensão e a mudança do mundo – para Naphta, em seu espírito belicista, a literatura não passa de escapismo que distorce a realidade.
Embora simpatizemos com a figura de Settembrini, conforme defende Thomas Mann, Naphta é quem está certo. Mann ridiculariza o ponto de vista de Settembrini, pois a personagem acredita que tudo vai bem enquanto uma guerra se avizinha.
Thomas Mann imprime n’A montanha mágica o zeitgeist [espírito do tempo] através “da razão, da ciência e do direito”, o absoluto numa visão iluminista como a dicotomia n’Os pensamentos de Pascal. Todo o romantismo de Naphta e Settembrini em suas contradições, sem obscurantismos, numa celebração a autonomia do pensamento.
O caminho do meio é representado por Peeperkorn, um hedonista – quase um Henry Miller – porque crê no sacrifício dionisíaco da vida. Imbuído de uma personalidade expansiva, Peeperkorn é amado por todos. Em oposição a Naphta e Settembrini, ele se encontra no nível da ação e não no do pensamento; para Peeperkorn a vida bem vivida contempla todos os excessos: o jogo, a bebida, a música, as mulheres. O espírito boêmio de Peeperkorn acaba com os debates infrutíferos de Settembrini e Naphta, posicionando Hans contra aquela celeuma intelectual.
Pensamentos antagônicos convergem para uma posição paternalista assumida pelo trio em relação à figura do jovem Hans Castorp. Discussões acaloradas acerca de política, filosofia, história, arte e religião, que avançam na longa jornada do romance, são acompanhadas em meio a certo mutismo por parte de nosso herói. Hans assiste interessado, como um espectador de uma partida de tênis ou de pingue-pongue, ao embate entre esses gladiadores da alma durante os sete anos de sua permanência, ilhado na montanha.
Há ainda o seu amor platônico por uma mulher madura, Claudia Chauchat, também interna do sanatório. Platônico porque não se consuma, mas que consome Hans Castorp, amor redivivo no campo das ideias. E se há o amor, também há a morte, porque o contrário da vida não é a morte, é o ódio. Assim como o contrário do amor não é o ódio, é a morte.
O suicídio do conservador pode afetar o pensamento libertário diante do caos gerado por uma guerra iminente? Talvez não. Mas também não o sublima. A busca do conhecimento através do autoconhecimento não impede de implicar Hans na total ausência de sentido perante o conflito mundial. Talvez não seja à toa que, ao fim e ao cabo, ele se misture a outros jovens no objeto-trem – a princípio fálico, agora bélico, quase bíblico porque babélico – pois parece desconhecer o caminho de casa, preferindo correr o risco rumo às trincheiras “a ficar em casa sem fazer nada”. [para parafrasear o Candido de Voltaire].
Goethe, esse fáustico alemão, e talvez o maior deles, afirma: “quem tem a arte não precisa de religião”. Mas, depois da guerra de materiais, qual seria a relevância da cultura para o ser humano perante tamanha falta de perspectivas? Depois da guerra de metralhadoras e granadas, de tanques, aviões e submarinos, tendo o seu ápice na criação da bomba atômica, impossível a poesia e, talvez por isso, tão necessária.
O capítulo Neve, quase um conto-novela no interior de uma obra prima, como uma caixa dentro de outra caixa, parece sintetizar esse aprendizado, impossível de ser apreendido sem ter sido experienciado pela dor. Portanto vamos a ele.
Afora a chegada de trem em Davos, o capítulo Neve, uma das narrativas mais instigantes que já li na vida – só tive sensação semelhante ao ler A terceira margem do rio de Rosa [fogos de artifício – epifanias!] –, é um dos raros momentos em que Hans Castorp se encontra só. O capítulo é de uma beleza sem par e por livre associação me faz lembrar o precursor Robert Walser.
O floco de neve remete a certa ludicidade, ao tom idílico consagrado em filmes e animações dos frios países do Norte, mais especificamente ao retratar o Natal. Natal fatídico, data da morte de Robert Walser, autor suíço que, após o habitual passeio nas cercanias do sanatório, onde viveu seus últimos 25 anos, foi encontrado de bruços na neve, tendo a guia de seu cão presa em uma de mãos com o animal a uivar, anunciando o fim de sua desgraça – “como um cão, como um cão!” [Kafka]. Walser, um escritor para escritores, principal influência de Kafka, Musil, Canetti, e do próprio Mann. Portanto, voltemos a este.
Desculpe pelo tom woodyalleniano, mas como disse Aristóteles “brinque para que possa ser sério”. Afinal de contas, onde Hans estava com a cabeça quando resolveu se perder em meio à “sepultura branca” da neve?
“Em lugar do sol, porém, veio a neve, enormes quantidades de neve, uma abundância tamanha como Hans Castorp nunca vira em sua vida. (…) Nevava dia por dia e noite por noite, ora neve fininha, ora torvelinhos densos; caía neve sem cessar.” Hans fica desorientado, perde a direção durante a tempestade e, ofegante, caminha a custo. Não consegue visualizar o sanatório, mas avista uma luz. Segue a luz e encontra uma cabana, mas a porta está trancada. Hans apaga. Desmaia na varanda e por conta disso é salvo da nevasca. Algo semelhante a um rito de passagem, a sua redenção. “A essa hora, geralmente, cessava a nevada, como para permitir uma visão de conjunto dos resultados obtidos.” Sua superação.
É como se, através de Settembrini e Naphta, Thomas Mann apontasse para Hans Castorp e para o leitor o caminho que se bifurca no espírito conservador da República de Weimar e o espírito libertário caracterizado por Peeperkorn. Para isso, a prosa poético-filosófica do autor se mostra revolucionária no conteúdo e conservadora na forma, conservadora porque avessa a experimentações vanguardistas como em Joyce, por exemplo. Mann escreve um romance tradicional aos moldes de Flaubert, Balzac, Dostoievski, estilo que remonta aos primórdios do romance moderno, no Dom Quixote de Cervantes.
O acirramento entre os ideais antagônicos protagonizados por Naphta e Settembrini, de certa forma pode ser associado ao embate intelectual entre os irmãos Mann, Thomas [Naphta] e Heinrich [Settembrini]. Cabe mencionar aqui o meu ponto de contato com a obra de Heinrich Mann – irrisório em comparação ao apreço a que tenho a de seu irmão nobelado –, através de seu romance italiano A pequena cidade [1909] e do clássico do Expressionismo Alemão, baseado em sua obra, O anjo azul [1930], estrelado por Marlene Dietrich. De qualquer maneira, prefiro a obra de Thomas Mann, embora me identifique com o excesso da figura expansiva de Settembrini [Heinrich] e veja Naphta [Thomas] como persona deveras reacionária. Creio que posicionar-se como um apolítico também seja uma forma de tomar partido, portanto uma atitude política. É como negar a crença em Deus ou de uma força superior, mas não conseguir superar a probabilidade de sua existência.
Naphta e Settembrini são forças opostas, mas ambas com potencialidades inquestionáveis. Será que em seu conservadorismo-nato, Naphta, ao tirar a própria vida, pensa eliminar o humanismo latente na figura de Settembrini? Aquele disparo que reverberou em mim e desde então continua ecoando, não fez menos que transformar o personagem mais antipático de todo o monumental romance em um verdadeiro mártir.
N’A montanha mágica, Mann faz um retrato de um mundo doente, afetado pela Grande Guerra. Apreciamos junto a ele essa radiografia contra a luz como a uma obra de arte moderna.
O sanatório não representa um mundo vitimado por um processo histórico, a efervescência de um conflito mundial. Não. O sanatório é uma tábua de salvação, uma válvula de escape, um porto seguro. Doente é o povo da planície. Curioso que o sanatório seja uma espécie de paraíso na terra, tendo em vista a configuração de um mundo a ruir, prestes a ser devastado pela guerra. Um mundo doente. Pois bem: “(…) a vida no Berghof estava longe de se parecer com um calabouço ou uma mina siberiana, (…)“
O trem representa o progresso ainda no início do século XX. A marcha da locomotiva trilha o desconhecido rumo à estrada que se bifurca: em um sentido, o caminho elevado que leva à montanha mágica, monumental, fria e selvagem; no outro extremo, à guerra de trincheiras, à guerra de materiais, monumental, fria e selvagem. Entre tantos caminhos – qual? O espírito jovem não amadurece de uma hora para outra, embora faça parte de um processo. Tudo levava a crer que o nosso herói se tornaria um artista [pintor? compositor? escritor?], mas como tudo que é sólido desmancha no ar [Marshall Berman], na hora destinal [Lukács], em seu momento de renúncia, Hans ingressa no trem da história e parte incorporado a grande massa de jovens com destino aos campos da honra.
A montanha é o pico? A mágica é ilusionista? Os homens são meros joguetes em uma luta corporal em busca da felicidade? Não sei. De que vale a cultura perante a carnificina? A montanha mágica talvez esteja mesmo fora dos trilhos de… do… da…
Edição lida:
MANN, Thomas, A montanha mágica, tradução Herbert Caro, 986 p., Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 2000.