A motivação das plantas – Por Sílvia Barros
Sílvia Barros é professora por profissão e escritora por nascimento. Doutora em literatura brasileira e hoje atua na educação básica e na pós-graduação, onde desenvolve pesquisas em torno da autoria negra. Como escritora, publicou contos, poemas e crônicas nas antologias As coisas que as mulheres escrevem (2019), Cadernos Negros (2018 e 2019), Negras Crônicas (2019), Nem uma a menos (2019) e Contos para depois do ódio (2020). Publicou livro O belo trágico na literatura brasileira contemporânea, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2018.
Travessia é uma coluna quinzenal com textos que perpassam as ideias de memórias, permanências e transformações nas vivências negras a partir da literatura e do cotidiano.
***
A motivação das plantas
para crescer e se espalhar
até mesmo por apartamentos
quase estéreis
nos centros das grandes cidades
é a proposta da natureza de
nunca jamais esquecer
que o colonizador é só um obstáculo
num tempo histórico
muito maior de quando fomos deuses e deusas.
Esse poema foi escrito nos últimos meses, nestes tempos pandêmicos em que as plantas se tornaram companhia para muitas pessoas que se mantiveram e se mantém ainda restritas a suas casas e apartamentos. É uma reflexão sobre como a natureza segue seu fluxo e nos fornece oportunidade de ver vida crescer e se reproduzir no meio da desolação. A natureza é desejante o tempo todo.
Não imaginava que pouco tempo depois leria A visão das plantas, de Djaimilia Pereira de Almeida, autora luso-angolada por quem tenho enorme admiração. Minhas expectativas diante da obra dessa autora são sempre altas, então não é surpresa que tenha gostado muito do livro. Só que, desta vez, além da linguagem poética, além da narrativa que sutilmente envolve e arrebata, emociona e espanta, eu encontrei uma identificação com o meu poema “A motivação das plantas”. O poema fala no colonizador como obstáculo. No romance (ou novela, pela quantidade de páginas), o protagonista é Celestino, um velho corsário que, aposentado, retorna a sua casa em Portugal e passa a cultivar um exuberante jardim. É fascinante pensar que essa relação entre Celestino e suas plantas o humaniza, o traz para perto de nós enquanto as páginas adiante preparam uma terrível lembrança dos horrores que ele cometeu contra pessoas africanas.
As plantas não estavam cientes da homologia. Desconheciam a sua forma e a ciência que as governavam. Bebiam, existiam. Tinha até meio de se governarem sozinhas e de se manterem num compromisso com a terra, a chuva e o vento, mesmo que perdendo a integridade que o corsário lhes desse. Morresse o homem e, alforriadas, iniciariam a sua tomada da casa (2021, p. 36).
A despeito de todas as atrocidades que esse homem cometeu, das mortes de pessoas negras que (não) pesam sobre suas costas, as plantas crescem com nutrição auxiliada por Celestino. Mas essas plantas cresceriam ainda mais sem ele, porque sem ele a diferença entre jardim e casa não mais existiria, elas tomariam tudo. Sem ele – o colonizador, o corsário, o assassino – o compromisso das plantas é somente com sua própria natureza de se adaptar às condições do tempo e combater os problemas usando suas próprias forças. Não é essa a proposta colonial? Tirar de nós nossa autonomia, nossos conhecimentos ancestrais e fornecer outros insumos, apresentados como melhores e mais corretos, enquanto nossas identidades, interioridades, espiritualidades são sugadas?
É também proposta da colonialidade que a imagem de pessoas negras escravizadas, torturadas, assassinadas se torne natural e nos abale apenas na fração de tempo em que aparecem nas páginas de um livro ou na tela do cinema. Que histórias bonitas de amor e heroísmos tenham rosto branco. Que autoras negras escrevam somente sobre o looping eterno da reconquista da identidade enquanto tentam se desvencilhar do racismo que aprisiona. Vem Djaimilia e faz tudo diferente: cria um protagonista branco, um jardim que nos dá perspectiva, um sentimento que beira a empatia… e o horror. Não só pela violência, mas pela tranquilidade com que esses homens caminham sobre a terra, com que seus crimes são perdoados.