A mulher e as obrigações do ser mulher – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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A mulher e as obrigações do ser mulher
Ao longo da minha breve existência eu escutei com insistente regularidade a frase de que “homens só conseguem fazer uma coisa de cada vez; diferente das mulheres, que desempenham naturalmente multitarefas”. Ao ouvir essas palavras, proferidas como se fosse uma sentença inalienável de um direito exclusivo masculino, recaía então e ainda recai sobre mim, quase que instantaneamente, um profundo sentimento de culpa, uma enorme frustação. Será que não sou uma mulher “de verdade”? Dessas capazes de atuar em múltiplos espaços e dispender numerosos esforços, ao mesmo e em um só tempo? Quer dizer que sou uma fraude? Um fracasso para o meu gênero? Na verdade, o que existe é um modelo determinado de conduta que a sociedade patriarcal e terrivelmente misógina atribui às mulheres, impondo ao ser feminino responsabilidades diversas, cuidados domésticos e familiares, uma sobrecarga de trabalho, tornando-as assim mais proficientes na execução de variadas tarefas. Nós mulheres não somos inerente ou “naturalmente” melhores que os homens na prática de multíplices funções, o que ocorre é que somos condicionadas desde o nascimento a cumprir atividades excessivas, com responsabilidades igualmente crescentes.
A importante obra, Histórias das mulheres no Brasil (São Paulo: Contexto, 1997), organizada pela premiada historiadora carioca Mary del Priori (1952-), demonstra como historicamente a sociedade tenta moldar os modos de ser, vestir, agir e pensar da mulher brasileira. Um processo que não obstante é muito mais amplo. Em sua contribuição ao referido trabalho, no capítulo “A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia”, Emanuel Araújo afirma que no período colonial a mulher apta ao casamento – ou seja, excluía-se aí as mulheres dos povos originários e as negras escravizadas, que recebiam um tratamento ainda mais brutal – deveria ter o comportamento e a sexualidade subordinados à aprovação inicial do pai e então do marido. Também a educação dirigida às meninas era voltada exclusivamente aos afazeres domésticos, uma preparação para o matrimônio, quando deveria cuidar do marido e da família. É precisamente esse o teor de um conhecimento tratado de época, a saber, o Educação de uma menina até a idade de tomar estado no reino de Portugal, de 1754, escrito por Ribeiro Sanches[1].
Na sociedade contemporânea, em que tudo é efêmero e ornamental, tornar-se mulher é cada vez mais complexo. Mas a exigência da perfeição ainda se delineia e se esquematiza através de rótulos e alegorias. Exige-se, por exemplo, “ter um corpo saudável, atraente e dentro dos padrões imposto pelas normas”, ou seja, branca e magra. Ora, a mulher deve ter uma aparecia ‘desejável’, estar arrumada e alinhada de maneira impecável, com cabelos, unhas e maquiagem, as roupas também devem ser atualizadas de acordo com a moda vigente. Além de atitudes que selam seu anulamento para a consolidação de uma carreira exitosa de trabalho. Isto é: a mulher deve anular-se, abrindo mão de si mesma para satisfazer as projeções sociais, notadamente masculinas e fetichistas. Lembro-me rotineiramente daquela máxima sartreana, de que “o inferno são os outros”[2]. Ao esforçarem-se para atender as expectativas externas, as mulheres – ou uma parte delas, ao menos – têm o sentimento que não estão desempenhando bem o seu papel, o papel que lhes foi atribuído ao nascer[3]. Você leitora contempla esta realidade?
As redes sociais digitais têm sido palco de crescente participação feminina. Ao mesmo tempo em que reforçam os pressupostos estereotipados do patriarcado, servem por outro lado também para discutir, abordar e desconstruir essas representações arraigadas no imaginário da sociedade brasileira. Por meio da insurreição contra o capitalismo e contra a barbárie, devemos nós assinalar uma via mais justa, que lute contra a opressão de um sistema que nos aniquila. Como afirmam Arruzza, Battacharya e Fraser, “apenas dessa forma – pela associação com ativistas antirracistas, ambientalistas e pelos direitos trabalhistas e de imigrantes – o feminismo pode se mostrar à altura dos desafios atuais”[4]. A luta feminista e de LGBTQIAP+ não deve ser apenas por direitos, e sim por emancipação, educação, políticas públicas (que realmente acolham e proteja), por programas e justiças sociais. Melhor: por revolução. Se a “solidariedade é a nossa arma mais potente”, devemos assim nos aliar, pois juntas/os somos mais fortes e lutaremos para resistirmos e existirmos.
Referências:
ARAÚJO, Emanuel. “A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia”. In: PRIORI, Mary Del (org.). Histórias das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
ARRUZZA, Cinzia; BATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy (2019). Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo.
PRIORI, Mary Del (org.). Histórias das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
Notas:
[1] ARAÚJO, Emanuel. “A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia”. In: PRIORI, Mary Del (org.). Histórias das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
[2] Em Entre quatro paredes (Huis clos, 1º edição de 1944).
[3] https://www.nemesisneuro.com/post/a-mulher-multitarefa-e-o-mito-da-super-hero%C3%ADna
[4] ARRUZZA, Cinzia; BATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy (2019). Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo.
(Capa: ilustração de Carolina Horita).