A última vez? – Por Matheus Cenachi
Matheus Cenachi, formado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é ensaísta, dramaturgo, poeta e roteirista. A sua peça mais recente, UM: E O MESMO?, fortemente influenciada pela dramaturgia contemporânea de Sartre, Brecht e Beckett, está em produção em Nova Iorque sob o comando do diretor e produtor Gustavo Blaauw. Atualmente, Matheus produz seu primeiro curta-metragem, BAD FAITH, e realiza pós-graduação na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), investigando as relações entre narratividade, filosofia, ensino e técnicas teatrais.
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PORTO ALEGRE, 18 DE JULHO DE 2016, 15h24
— Juro que um dia eu pego aquela pretinha no banheiro…
Era raro. Mas às vezes as faxineiras da Casa de P. limpavam as dependências do café no turno da tarde, porque ao contrário do comércio de toda a cidade, os proprietários não erguiam um muro entre clientes e funcionários. O público, entretanto, não gostava. Porque o público quer ser servido, o que é diferente de conviver com os servos.
Das mesas do café espalhadas pela calçada, poucas tinham ângulo de visão para o banheiro do estabelecimento, porque o café era pequeno; o banheiro, menor; além disso, ele ficava no fundo à esquerda, bem escondido. Todavia, há algumas semanas Roberto insistentemente procurava essas mesas.
“A preta do banheiro” tinha nome. Maria Luísa.
Nesse dia, ele passou um bom tempo fantasiando com aquela mulher em voz alta. Sem constrangimento. A boca nojenta intercalava seus movimentos entre dizeres podres e goles de cerveja. Nem ele mesmo ouvia bem o que dizia: o transe visual era profundo e necessário; dele extraia o substrato do seu “erotismo”. O que via? Uma mulher simples, em vestes simples, trabalhando e… exausta. Bingo. O seu prazer, a sua ereção parcial pública, era provocada, principalmente, pela dor de Maria. Era imaginar detalhadamente o seu rosto cansado e suado se submetendo, se curvando, resistindo em silêncio a todo tipo de situação. Olhos lacrimejantes. Asfixia. E súplica.
Depois de um tempo, percebeu que nada do que dissera fora respondido. Se curvou para trás, um pouco contrariado e disse:
— Que tu tem?
Carlos costumava corresponder às falas do amigo com sorriso cortês e comentários breves. Como o outro, era um jovem estudante de medicina de 25 anos da UFRGS. Eles tinham saído para beber depois de um cancelamento de aula. Porém, Carlos não se sentia bem. Estava tenso e, principalmente, alheio. Algo acontecia.
— (recobrando um pouco a consciência) Nada, por quê?
— (desconfiado) Tu tá muito estranho.
Carlos abaixou o olhar. Roberto continuou implicando:
— Até a tua ceva tá quente, meu. Que isso? Se anima! (cochichando) Hein… Tava pensando em chamar o Wasla e o Edu… Pilha? Bora no Gruta hoje, cara, eu pago pra ti!
— Já te falei que não gosto de puteiro, porra. (escuso) E hoje não dá. Daqui a pouco eu tenho que sair pra fazer umas coisas…
— (indignado) Como assim sair, caralho? Meu… tu tá meio fudido aí, beleza. Mas olha, era o que eu tava dizendo antes. (malicioso, apontando para dentro do café) É o que o meu pai sempre diz: quando o cara não tá bem, o que tem que fazer é pegar uma pretinha numa sexta-feira. (rindo) Mas uma bem pretinha mesmo e dar um pau…
Carlos não ouvia nada. Roberto seguia em seu “discurso motivacional”; ser ignorado não fazia a sua boca parar. As palavras não tinham fim e o som atordoante se amontoava. Num instante, Carlos olhou nos olhos do colega com ódio, quase explodindo, mas nem isso fez o outro calar.
Ele não aguentou. Súbita e involuntariamente, Carlos deu um pulo desgovernado da mesa, derrubando a garrafa de cerveja perto de Roberto.
— Que porra tu tá fazendo, caralho?! Puta que pariu, olha a merda que tu fez.
Em pânico, Carlos saiu sem olhar para trás.
VIAMÃO, 16 DE JULHO DE 2016, 23h27
Na estrada escura havia
Uma mulher jovem.
Caminhando sozinha
Por entre sítios, curvas e ermos.
Sangrando por dentro.
PORTO ALEGRE, 18 DE JULHO DE 2016, 17h20
— Acha que consegue narrar tudo do início, agora que se sente melhor?
A sala em si não era pequena. À direita de quem entra havia uma janela panorâmica agradável. O problema era a disposição das poltronas; uma de frente para a outra, separadas por uma distância de dois metros, produzia uma forte sensação claustrofóbica interpessoal.
Carlos não respondeu.
— Foi um grande passo ter balanceado as emoções. Possivelmente há pouco tu passou por uma crise de ansiedade. Mas o que vai te dar estabilidade mental necessária para deliberar é reconstruir tudo o que aconteceu de forma organizada. Entende?
Carlos só confirmou com a cabeça.
Fazia terapia por vontade da mãe e porque, sim, sentia aliviar o que tinha preso no peito. A relação, porém, era superficial: Carlos olhava Fernando como um padre no confessionário, que deveria só ouvir e depois receitar alguns pai-nossos.
— (irritadiço) Eu tô com um problema com a minha irmã.
— Uhum…
— Não sei o que fazer com ela.
— Como assim “fazer com ela”?
— Não sei o que fazer pra resolver a situação, tu entendeu.
— (didático) Mas que situação?
— (bufando) A situação! Não faz uma semana eu… descobri que ela tá grávida. Ela me contou numa noite.
— E é isso o que você tem que resolver.
— É.
Pausa. Carlos, ansioso novamente, sente o aperto da sala de paredes beges.
— Por que se sente tão responsável por ela, Carlos? Tão “amarrado”?
— (erguendo a voz, estourando) Porque ela é minha irmã, porra! Porque ninguém pode saber disso! Não é óbvio?
Surpreso com o posicionamento de Carlos, Fernando buscou aplacar suas expressões faciais. Havia, claramente, muita raiva. Mas o que chamava a atenção era uma ideação moral sem sentido em relação à Clara, a irmã. Fez anotações.
— Sente raiva do… como é o nome dele mesmo?
— Sérgio. Não. Ele é um merdinha, um fudido… Ela que é uma puta.
— (intrigado) Puta? Tu sempre disse que ela é comprometida com as coisas, com os estudos.
— Sempre tá na casa dele se oferecendo… biscate. Quero que ele se foda. O que não dá é pra ela ter essa criança, ninguém vai aceitar. O bebê não pode nascer!
Fernando não sabia como proceder, senão dizer o óbvio e inútil.
— Percebe como você se coloca na posição de pai dela? E ela, quer ter o filho?
— Não é isso, Fernando! Ela não tem que querer nada. Tem que tirar e ponto!
— Certo… É por isso que você tem que resolver.
Carlos concordou com a cabeça.
— Ok… Posso concluir o seguinte? Na noite do dia 16, Clara chegou no sítio de vocês machucada, com alguns hematomas no braço e no abdome e apagou na cama. Como seus pais não estavam em casa, não ficaram sabendo. Quando o dia raiou ela conseguiu dizer que Sérgio, o namorado, a espancou quando soube da sua gravidez.
— Isso… Foi assim.
— Carlos… tu chegou a considerar que ela pode ter sido estuprada também?
— (engolindo em seco) Não foi. O cara só bateu nela.
— Isso não foi no dia que teve um apagão longo em Viamão?
— Não lembro.
— Sei… E como pensa em resolver isso?
VIAMÃO, 16 DE JULHO DE 2016, 19h
O blackout começou no início da tarde. A princípio, todos passariam o fim de semana em casa, Carlos, Clara e os pais, mas com o apagão prolongado os planos mudaram. Além do sítio, eles tinham uma casa na praia. Quando bateu quatro horas, os pais decidiram ir pra lá.
Clara também teve de se adaptar. Decidiu ficar em casa para aproveitar toda a luz natural disponível e a energia restante do celular e do notebook para terminar os trabalhos da faculdade. Mais velha do que Carlos, ela cursava, conforme a tradição, o último ano de medicina. O irmão dormiu a tarde inteira.
Poderia ter ido ao encontro do namorado a qualquer momento. Poderia, inclusive, ter tomado a carona dos pais, o que a deixaria mais próxima da casa dele. Preferiu, porém, finalizar os trabalhos; o silêncio da casa tacitamente a induziu a agir dessa forma: ela se sentiu segura, relaxada, mesmo sem a presença dos pais. Projetara que até as 17h30, no máximo, tudo estaria acabado. Conseguiu se livrar só às 18h40.
A iluminação da rua duraria não mais do que 20 minutos.
Clara correu para o quarto e juntou alguns poucos objetos na mochila. Silêncio. Os cômodos da casa eram pura penumbra. Passou pela sala, pegou a chave e quando a colocou no trinco um arrepio intenso percorreu as suas costas.
— Tu já vai?
Carlos estava a poucos metros atrás dela, encostado no sofá, sem calça e camisa.
— (pálida) Puta merda, Carlos… Sim.
— (cruzando os braços) Onde?
— Tu sabe.
— (meneando em positivo, amargo) Tá indo ver aquele filho da puta.
Ela ficou firme. Sem olhar para Carlos, jogou a mochila nas costas e tentou sair, mas ele correu pra cima dela e espalmou a porta violentamente.
— Não…
— (debochando) Não?… Não o quê?
Ele puxou a cueca para baixo. Ela, que estava de cabeça baixa, viu o membro.
— Tu não vai tocar em mim, Carlos. Tu não pode.
— (arfando) Eu quero.
Não era um imperativo. Depois de tantas vezes, não era preciso ordenar nada.
Clara fechou os olhos e começou lentamente a chorar. Ao primeiro soluço, Carlos deu um tapa seco no rosto dela.
— (segurando o pênis com uma mão) Eu quero agora. Não vê que eu esperei tu terminar as tuas obrigações?
— (abatida) Tu não entende, Carlos…
Ele a olhou desconfiado. Ela não estava fechada para ele. Não havia resistência.
— Acabou, isso tem que parar… (tentando olhar para ele) porque eu tô grávida.
Não houve tempo para ele dizer mais palavra.
— De ti.
PORTO ALEGRE, 19 DE JULHO DE 2016, 8h35
O primeiro comentário era este:
“Agressão psicológica por meu ex companheiro, eu me dirijo aí ou por telefone?”
O segundo:
“Me ajudem como fazer uma denuncia”
E a lista, real, continuava:
“Eu fui ameçada pelo meu ex marido d violencia ai eu pedi medida protetiva e foi aceito mas eu soube q ele recebeu mas nao deu ou nao conprou nada pra mandar pra nossa filha o q eu fasso ele tem direito ou nao d dar pra ela ou o dinheiro ou algo?”
“E possivel trocar de delegacia um caso de estupro e assalto …pois o caso foi atendido por outra dp e realmente nao deram a minima nem para as vitimas nem para a situacao …nao sei prq foi dado a outra dp sendo q as duas vitimas sao mulheres …”
“Eu sei que a justiça é falha, mas fui agredida pelo meu companheiro e tenho marcas pra provar, será que eles irão fazer algo?
“Porque ninguén atende? Se é um caso de emergência a mulher morre!minha filha vou vítima de agressão ontem, está sendo vítima alguns meses, mas ontem o namorado enforcou ela é bateu nela, estou tentando ligar desde cedo, antes dele acordar, e não consigo falar com ninguén, que absurdo! Ele é violento, e só porque tem um padrasto policial militar, acha que pode tudo. Por favor me ajudem.”
“E eu que pensei em ligar só pelo medo e vergonha e ter lido nos comentários que ninguém atende até desisti vou continuar apanhando mesmo que horror eu nunca pense na vida isso e eu só tenho 28 anos só orar pra Deus mesmo”
Constrangimento. Fernando, atônito, ergueu os olhos para a esposa que estava calada do outro lado da sala tomando café de pé.
— (esfregando o rosto todo com a mão, abismado) Vem ver isso…
Marta leu naturalmente todos os comentários deixados no site de uma Delegacia de Defesa da Mulher. Voltou para o canto, fria.
— Não sei se posso fazer isso… Não tenho certeza, é só uma hipótese…
— Hipótese de que um paciente seu violentou a irmã! Não posso acreditar, Fernando, no que eu tô vendo. (apontando para o notebook) Isso não foi o suficiente?
— Pode não ser ele, Marta! Entenda isso! E tem toda uma questão de ética!…
— (gritando) E pode ser, caralho! Pode ser! Entenda, tu, isso! (andando pela sala) Pelo amor de Deus! Que ética, se a denúncia é anônima? É tua responsabilidade agir e proteger a guria! Mas tu tem medo.
— Não me chama de covarde!
— Chamo! Sente medo porque se fizer essa denúncia tu vai afrontar outro homem, mesmo que indiretamente. É o que vocês não suportam. A simples ideia de discordar te paralisa. Não é assim?
Silêncio.
— Eu mesma poderia ligar. Mas, talvez, a minha melhor contribuição seja deixar tu te consumir em culpa. (saindo da sala) Faça o que achar melhor.
VIAMÃO, 16 DE JULHO DE 2016, 23h01
Quando acordou não conseguia se mexer. A dor na barriga era insuportável. No chão, com esforço via parte da porta da sala; um dos olhos estava inchado. Aos poucos as coisas paravam de girar. Foi só na terceira tentativa de se levantar que, gritando como uma mulher no meio do parto, pôde se sustentar. Alguns vizinhos ouviram o berro feminino ensurdecedor. Ao dar o primeiro passo, sentiu a calça se umedecer. Pensou que pudesse ser urina. Mas se lembrou vagamente de Carlos. Ele não a estuprou. Ao invés disso, espancou com ódio a irmã em toda a região do abdome, mesmo quando ela já estava desacordada no chão. Clara saiu de casa sem mochila, destino ou dignidade.