Altair Martins – “Caminhos teóricos na construção da personagem: o que dizem os escritores?” – PUCRS
O grupo de pesquisa “Teoria da escrita criativa: uma interface operacional com a teoria literária”, coordenado pelos professores doutores Luiz Antonio de Assis Brasil e Bernardo Bueno no Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) apresenta nesta série dez entrevistas para compor o artigo “Caminhos teóricos na construção da personagem: o que dizem os escritores?”, de autoria dos organizadores, mais Gabriela Ewald Richinitti, María Elena Morán Atencio, Maria Williane da Rocha Souto, Marina Soares Nogara, Marina Solé Pagot e Stéfanie Garcia Medeiros.
A segundo entrevistado é Altair Martins. Altair Martins é um escritor brasileiro e professor universitário. É romancista, contista e dramaturgo. Seu romance A parede no escuro venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2009 na categoria autor estreante. Em 1994 foi vencedor do Prêmio Guimarães Rosa da Rádio France International. Tem, desde então, publicado as antologias de contos Como se moesse ferro, Se choverem pássaros, Dentro do olho dentro e Enquanto água. Venceu ainda o Prêmio Luiz Vilela, o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, na Jornada Nacional de Literatura, o Prêmio Açorianos nas categorias conto e romance, o Prêmio Moacyr Scliar, além de ter sido finalista do Prêmio Jabuti em 4 ocasiões. Na dramaturgia, foi vencedor do Prêmio Minuano de Literatura com a peça Guerra de urina, em 2019.
-
O que nasce primeiro: a história ou a personagem? Explique.
Os diferentes gêneros parecem contar com diferentes gatilhos. Se escrevo um conto (e mais ainda se for um miniconto), evidentemente a personagem se insere em função da fábula. Aí as personagens são seres órfãos: pouco nos recordamos de uma personagem de conto, porque pouco sabemos dela: é uma criatura dotada de “simplicidade heroica”, mostrada (a partir da modernidade, pelo menos) em plena ação. Se escrevo um romance, me parece o contrário – e aí as personagens são mesmo performáticas, cujo dever é sustentar entrelaçamentos no enredo. Antonio Candido acerta, assim, ao dizer que a personagem dá existência ao romance. Em poesia, claro, surge o tal eu lírico, que outra coisa não é senão uma personagem que se expõe, mesmo que indiretamente (quando expõe algo do mundo). Se escrevo crônica, sempre está lá a personagem essa do cronista (não é outro, a meu ver, senão o cronista que fala numa crônica). Enfim, os gêneros exigem abordagens as mais distintas. Logo, pra ser objetivo aqui, o que primeiro surge pra mim é uma linguagem, uma voz. Ela é expressa por manifestação narrativa, lírica ou dramática: para mim, essas falas poéticas, falas narrativas ou falas dramáticas dizem, pela linguagem, quem são as personagens. Quando essa coisa que fala me convence, me permito adotá-la.
-
Você sente que domina suas personagens ou considera que elas adquirem algum grau de autonomia ao longo da sua escrita? Explique.
Mesmo que eu planeje, as personagens adquirem, sim, autonomia. Penso que sempre estamos traduzindo parcelas da realidade empírica naquilo que escrevemos. Então o planejamento corresponde a certo vínculo com essa realidade. Nisso se situa o que há milênios aceitamos como verossimilhança. No fluxo de ajustes do texto (seja ele do gênero que for), todas as peças se adequam na nova realidade (a estética), de forma que tudo cede lugar à adequação ou coerência interna. É justamente aí que começa o terreno de independência relativa da personagem: ela precisa se adequar às regras desse novo cosmo, no qual tudo representa existir. Ao fazê-lo, a personagem exige mudanças no nosso texto.
-
Quais métodos ou ferramentas você utiliza para a criação de suas personagens (pesquisa, biografia, fichamento, cartas, desenhos, observações…)? Com que profundidade você precisa conhecê-las?
Como professor, costumo dizer que há duas pontas nessa régua aí: o Assis Brasil (a ponta mais planejada que conheço) e, no outro extremo, o Noll (João Gilberto, que prefere descobrir tudo sobre a personagem conforme escreve). Entre eles, há várias escalas de gradação. Eu estou no meio. Uso todos os métodos possíveis para construir a personagem. Costumo dizer que sou um “coletor de sucatas”. Desde meu primeiro romance (A parede no escuro), tenho pra mim que escrever é antes de tudo escutar. E colher. Meu laboratório é meu dia a dia: estou sempre coletando sucata. Por isso, para a elaboração de tantos narradores-personagens diferentes que havia naquele romance, adotei envelopes com seus nomes, dentro dos quais fui depositando frases e estruturas sintáticas que me pareciam convir com cada um deles: Onira tem a sintaxe de minha mãe; Adorno, de meu padrasto; colhi o Coivara de vários professores de cursinho com os quais convivi (e ele tem um pouco da minha linguagem também). Já o Emanuel nasceu da sintaxe de textos dos alunos do colégio onde lecionava redação – algo como uma escrita aos pedaços, com referentes anafóricos desnecessários, com frases viúvas. Mas não preciso conhecer com tamanha profundidade cada uma das minhas personagens: minha escrita também consiste na descoberta de quem elas são em plena diegese.
-
Você costuma usar ou reger-se por algum insumo teórico antes ou durante a construção de suas personagens?
Só uso insumo teórico sobre o que cerca as personagens: por exemplo, se elas se situam em outro tempo, têm uma profissão que não conheço, enfim. Creio que antes da escrita, a personagem vai se formando daqueles pedaços que, como disse antes, colhi. Pra colar tudo, aí, sim, preciso de conhecimento, mas de vida (literária também), não de teoria.
-
Você costuma se inspirar em pessoas reais para escrever suas personagens? Como é esse processo de converter alguém em ficção?
Respondi a isso anteriormente, mas é preciso acrescentar: não faço ficção histórica e não creio que uma só pessoa me forneça material coerente para uma narrativa. Misturo sempre: desde pessoas reais até ficcionais. Essas últimas são elementos importantíssimos, porque seguem, quando bem feitas, atuando sobre nós, se tornando uma coisa simbiótica entre a autoria e quem lê. É como se, ao ler uma Clarice Lispector, acabássemos adquirindo o sotaque e o timbre dela. E, contudo, nunca ninguém se reconheceu em meus livros nem reconheceu ninguém. Não sei se isso é bom ou ruim.
-
Você destacaria alguma personagem que teve importância fundamental na sua escrita? Como sua rotina de criação e suas leituras influenciam a construção de suas personagens?
Pedro Vicente e Javier Lucerna (personagens do romance Terra avulsa) me levaram até a poesia. Eu tinha experimentos, e muito ruins, de verso. Ao compor os cacos do Pedro, que lê o poeta nicaraguense Lucerna, pude fazer aquilo que o teatro às vezes permite: que quem não sabe dançar dance. Pois foi só quando vivi as angústias do Pedro (seu autoexílio, suas leituras, as traduções que faz de Javier Lucerna) é que compreendi que fazia poesia no entrelugar onde ela deve estar: no fio comunicativo, feito todo de linguagem, entre o poeta que escreve e o que lê. Claro, para construí-los, viajei à Nicarágua, mergulhei na temperatura e nas comidas da cidade de Somoto, onde viveu Lucerna e pra onde, imaginariamente, Pedro migra. O trabalho de campo, nesse sentido, é fundamental. Escrever sobre um rio depois de olhar o rio, colocar a mão na água, sentir o vento, escutar o que dizem ao redor é o que mais gosto de fazer.