“Ave rara: uma arqueologia da palavra” de Helena Arruda – Por Andri Carvão
“A coluna Traça de Livro:…impressões de leitura… com 28 textos publicados de 16 de março de 2022 a 31 de agosto de 2023, depois de ter cumprido o papel de apresentar minhas leituras, algumas delas inusitadas, de autoras e autores de diversas nacionalidades, cede lugar para a estreia da coluna Escambo Literário & outras trocas, onde compartilho as minhas impressões de leitura da produção de autoras e autores contemporâneos da literatura independente.
Vida longa à revista Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão, formado em Letras pela Universidade de São Paulo, é autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva, O mundo gira até ficar jiraiya e A poesia invisível: 30 anos de poesia (1993-2023), dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e mantém a coluna de impressões de leitura na revista Ruído Manifesto desde março de 2022.
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Ave rara: uma arqueologia da palavra | Helena Arruda
Em Ave rara: uma arqueologia da palavra, Helena Arruda faz um convite ao leitor para juntos iniciarem as escavações em busca da ave rara “que mora no pensamento e na imaginação” e que se esconde dentro de cada um/a de nós. Ave rara é a mulher e é a palavra finalmente tomada por ela para dar voz a todas as outras mulheres silenciadas ao longo da História.
Helena, a arqueóloga da palavra, é quem nos conduz a essa luta, a essa guerra, entrincheirados no front, mas munidos da palavra, pela palavra e através dela, a menor unidade que constitui o poema. Se no princípio era o verbo, aqui o verso é o verbo.
“o (…) poema (…) ainda no útero (…) escorre pelas pernas”
O livro Ave rara: uma arqueologia da palavra da poeta carioca Helena Arruda é dividido em duas partes: A arqueologia e Na pele da palavra: a ave. Mas vou me ater apenas sobre a primeira parte.
Nos 36 cantos que compõem A arqueologia, o longo poema que abre essa nova coletânea de poemas de Helena Arruda, as palavras escorrem para a/o leitor/a conduzidos pelas mãos da poeta como Dante guiado por Virgílio em busca de Beatriz, como Orfeu a resgatar Eurídice do Hades. Helena de Tróia, antes motivo de uma guerra, agora guerreira guerreia, declara guerra contra a opressão do patriarcado, pai e deus do capital. A poeta Helena empunha a bandeira do empoderamento feminino contra a reificação do corpo como condição feminina socialmente aceita/inaceitável.
Helena é a arqueóloga e nós não somos meros espectadores, mas conjugamos o mesmo verbo e comungamos da mesma fé pela palavra através da poesia. Por isso, atuamos juntos com ela e com elas durante as escavações, em meio às descobertas, e escorremos nauseantes com as palavras que desabam nas profundezas, no balé das orcas, nos sons das orcas durante a dança do acasalamento, esse balé onomatopaico das palavras “:piiiiiiiiiiiiii” e surpresos com o avanço das escavações alongamos o O “nas bOcas / deslOcadas / nas bOcas / descOladas (…) bOcas / Ocas”. Resultado dos malabarismos femininos de mil bOcas cavando o seu espaço no Tempo.
Portanto, ave rara é a mulher, útero do mundo, e também a palavra gestada do silêncio ao grito. Ave rara é a própria poesia — essa eterna busca.
Em meio às minhas conjecturas, fiz contato com a autora via WhatsApp e ela me respondeu o seguinte por e-mail:
“Ave rara: uma arqueologia da palavra”, como o nome diz, configura a busca da mulher pela palavra que antes lhe fora negada, subtraída, silenciada. Essa nova mulher, com a ave na boca, descobre que também pode alçar voos altíssimos indo ao encontro daquilo que lhe fora proibido, mas que desde sempre morava nela – a palavra em sua potência máxima, em sua totalidade e, essa palavra, se nos aprofundarmos, confunde-se com a própria mulher (que agora é ave) e sua condição existencial (pode voar, porque nada nem ninguém conseguem mais detê-la). A partir dessa descoberta, ou dessa redescoberta, a mulher começa a parir, sem analgesia, infinitas palavras, escrevendo, publicando, tendo voz e lugar de fala na sociedade. Lugar esse que não mais lhe poderá ser negado, pois sua bandeira já fora hasteada, seu território já fora demarcado. Não há como retroceder. Trata-se dessa nova mulher que escreve outras mulheres, sua ancestralidade, as dores do mundo, as vitórias, as conquistas, as feridas, as cicatrizes, ou seja, a ave com a ave na boca, com a poesia. Retomando a pergunta, posso dizer que a “ave rara” é a síntese, ou a reunião da poesia e da mulher em sua nova existência, ou em sua (re) existência, onde tudo se mescla, e o que vinga é a palavra – não mais interditada –, mas livre, sem gaiolas.”
A poeta é porta-voz não só de seus pares, de seu sexo, mas também de toda a Humanidade que prescinde do arcaico velhaco passadista. Assim, projeta uma nova era, uma nova ordem a brotar do caos. Mãe, genitora, protetora, a origem do mundo, a responsável pela sobrevivência da comunidade, pelo bom andamento, pelos afetos, detentora da unificação, da unidade.
Palavra. Fome. Poesia.
A poeta, essa ave rara, é a detentora da chave, da palavra enterrada, soterrada, presa, mas que de súbito surge como diamante bruto em meio às ossadas e se abre num sopro que nos ensina entre silêncios e olhares.
A poeta Helena Arruda é uma arqueóloga em uma busca incansável, margeando o mistério. Prova disso são as pegadas, rastros, vestígios deixados em Corpos-sentidos, Há uma flor no abismo e agora em Ave rara: uma arqueologia da palavra.
Com a palavra, a poeta Helena Arruda:
“Nunca havia pensado que os meus últimos livros poderiam ser considerados uma trilogia. Mas admito a forte presença do corpo nos três livros. A questão do corpo e da palavra, bem como a questão da memória me acompanham desde o primeiro livro, Interditos, lançado em 2014. Nesse livro abordo a questão dos interditos que ecoam na voz da mulher, uma mulher que luta e que anseia pelo seu lugar de fala, pela liberdade numa sociedade falocêntrica, machista. Em Corpos-sentidos, lançado em 2020, há um corpo que dói, um corpo reconstruído desde a ditadura militar, um corpo-cicatriz, que se regenera para continuar as lutas cotidianas, também um corpo que envelhece, um corpo à procura de outros corpos em prol da mesma luta, em prol da democracia que o bolsonarismo tentava nos subtrair. Veja que há um hiato de seis anos sem publicação de poesia, mas durante esse tempo pesquiso a fundo os romances brasileiros contemporâneos bem como alguns romances do século XIX, como eles abordam as personagens femininas (temas de dois livros acadêmicos) e seus corpos, enfim, as questões da mulher estão lá desde sempre, nas minhas leituras. E daí lanço dois livros acadêmicos. Em 2021, lanço Há uma flor no abismo, e retomo muitas temáticas, a morte, a própria poesia, o processo de criação, a palavra, as leituras cotidianas, as imagens que me movem e também o corpo sobrevivente à pandemia, ao genocídio brasileiro. Em Ave rara: uma arqueologia da palavra, o tema é a própria poesia, com uma pegada que transita entre o concreto e o lírico. Mas acho que não consideraria esses livros uma trilogia, porque a abordagem desse corpo é muito diversa e sigo agregando novas temáticas, de qualquer forma, começo a pensar no assunto, pois dois novos livros estão a caminho.”
mulher — arqueologia –- corpo — palavra –- poesia
São palavras centrais que escorrem nauseantes feito cascatas, da língua e da costela, no abismo e no caos da poética de Helena.
A/o leitor/a se pega fazendo poesia com suas palavras em meio a ancestralidade de Eva (Ave Rara) e diante da visão da mulher de dedos longos (Ave Rara).
Imagética. Mimética.
A primeva ave rara dispara de dentro da bOca através da fala libertada da mulher calada, ou melhor, silenciada. O canto. A ladainha. O lamento. O murmúrio. O sussurro. O chamamento. O discurso contínuo dispara e, desde então, nunca mais pararam de falar.
“um caso de amor com as palavras”
“Dor”, “liberdade” e uma lista infindável, enumerando um cânone de palavras em diálogo com o seu lugar de fala, a poeta Helena mapeia e organiza o caos interior, põe ordem no mundo em ruínas, destroçado pela violência dos homens. A palavra que resume, a palavra que reúne, a palavra que compete aqui — poesia —
A lírica livre de Helena delineada, cosida, costurada, construída, tecida em fragmentos, ponto a ponto, tijolo por tijolo, feito areia da algibeira lançada ao vento, feito areia na ampulheta, feito areia nos olhos, feito pó e poeira, palavras pontuais, palavras como base e alicerce, palavras de ordem.
E a ordem no caos é desobedecer. Sem voz no mundo, a mulher não existia — ave morta na bOca.
Feminicídio é a palavra.
Então, a poeta evoca as vozes de suas ancestrais, Eva, Ana Cristina César, Alfonsina Storni, Anne Sexton, Florbela Espanca, Sylvia Plath, Violeta Parra, Virginia Woolf — aves raras.
Mas também, Susana Fuentes (presente), Mariana Ianelli (presente), Danielle Magalhães (presente), Marta Ariel Chaves (presente), Prisca Agustoni (presente), a amiga de infância Lídia (presente) e a mãe e primeira leitora de Helena (presente) — aves raras.
E sobreviventes.
As mulheres — aves raras — tomam a palavra e passam a falar mais e mais do que os homens, entre eles e sobretudo entre elas. Afinal, a palavra é poder e elas sabem disso. E da palavra partem para a ação. Só assim se libertam da costela de Adão, partindo os ossos dessa gaiola, e mergulham nos ares — aves raras.
“a língua dentro da boca // (…) a boca dentro da vida / a vida dentro do corpo / o corpo dentro da casa / a casa dentro do mundo / o mundo dentro da boca / das mulheres / :aves raras”
Embora com o corpo coberto de “ausências e silêncios”.
Significante e significado. Mas, afinal, o que é a palavra para a poeta Helena Arruda? Qual é o peso da palavra para a sua poética? Qual é o preço que se paga?
As palavras pousam, desabam e ficam submersas. As palavras dançam, saem suicidas e retornam exaustas. As palavras em sintonia — aves raras.
“a primeira palavra então foi o grito / do parto da puta, da preta, da pobre / a primeira palavra é feminina / :dor”
A palavra anterior ao homem. As palavras prediletas. O amor às palavras.
A palavra: dor.
A palavra: liberdade.
A palavra: feminicídio.
A palavra inefável, amplidão e confinamento. A palavra que prende à terra. A palavra que afoga. A palavra de encontro e perdição. A palavra doença e salvação. A palavra que revolve o pensamento.
A palavra: saudade.
“a poesia / é a pássara no mundo da memória”
Livro:
Ave rara: uma arqueologia da palavra, ARRUDA, Helena, 93 p. – Cotia: Urutau, 2023.