bell hooks – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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bell hooks
A escritora e militante estadunidense bell hooks (1952-2021) é uma das intelectuais mais destacada e reconhecida dentro do pensamento feminista contemporâneo. E, sem dúvida, uma das mais importantes para o feminismo negro. Ao adotar letras minúsculas no pseudônimo que a designa, tensionando desta forma as convenções, hooks pretende direcionar a atenção das/os ledoras/es ao conteúdo de sua escrita, diminuindo a importância de sua assinatura.
Em sua extensa obra, a autora elabora uma narrativa cronotópica, articulando o tempo e o espaço em uma linguagem acessível, e com um discurso poderoso. Seus textos abordam a constituição histórica do olhar, atravessado por problemas sociais latentes, notadamente aqueles que afetam em sua maior parte aos povos negros e as regiões colonizadas. Assim, a autora discute o longo e mesmo longuíssimo processo de silenciamento de certos grupos subalternizados, em particular da mulher negra, destacando, por exemplo, o machismo presente em movimentos de igualdade racial – predominantemente masculino – e o racismo no interior do feminismo – prioritariamente branco e de classe média –.
A formação acadêmica e intelectual de hooks deu-se no decorrer da década de 1970. Formada em língua e literatura inglesa, em 1981 publicou seu primeiro livro, E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismo (Ain’t I a Woman? Black Women and Feminism) pelo qual tornou-se rapidamente conhecida no meio feminista. Em 1983 conclui o doutorado. Nessa época, vale dizer, nos anos de 1980, estudiosas/os do cinema começaram a teorizar cada vez mais a condição das/os espectadoras/es. Para além das técnicas de fabricação de uma representação audiovisual, a teoria do cinema amplificou suas percepções, atenta também aos sentidos atribuídos pelo público à produção fílmica. Parcialmente contagiada por esses estudos, bell hooks então elabora um pensamento que concebe o cinema como uma prática de evidenciação dos olhares. Hooks está preocupada com a visibilidade das/os espectadoras/es e os sentidos no olhar daquela/e que vê. E que não se vê, não se reconhece naquilo que assiste.
O cinema mainstream, afirma a autora, é um sistema falocêntrico que reproduz e mantem a supremacia branca, misógina e hétero-normativa. E contestar a indústria é aprender a olhar com criticidade, com discernimento; assumindo uma postura intelectual comprometida com a consciência política de classe e, claro, de raça e gênero. De acordo com a autora, é em sua reeducação que o olhar se transforma em um gesto de resistência, em ato político. Coibi-lo ou cerceá-lo, portanto, é empregar estratégias e/ou mecanismos de controle nas relações de poder. Por isso, acrescenta hooks, durante a escravização houve um “trauma no olhar”, pois, as “relações racializadas de poder era tal, que aos escravos e às escravas era negado o direito de olhar. […]. Esses olhares eram vistos como afrontas, como gestos de resistência, como desafios à autoridade” (HOOKS, 2017, p. 483).
A compreensão de hooks, que prioriza o corpo e as possibilidades do corpo como agente político, está em conformidade com as teorias de Michel Foucault, para quem “o poder é um sistema de dominação que controla tudo, e que não deixa espaço para a liberdade”, e as de Stuart Hall, ao perceber que a construção ideológica da negritude por algum tempo foi efetuada pelas/os brancas/os. Deste modo, a proposta central do feminismo negro de hooks consiste na desconstrução de uma narrativa imposta, empreendida não por agentes e representação das/os negras/os – e das/os indígenas –, mas definida tão somente pelo preconceito de um intermediário caucasiano.
Tal desconstrução exige localizar nas sociedades colonizadas aquilo que para bell hooks, bem como para Ângela Davis, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez e Djamila Ribeiro, forma sua instituição fundadora, qual seja, o racismo. O racismo é obra direta da experiência da escravização moderna, atualizada e ressignificada em novos atos e gestos, nas práticas do presente. As “estruturas limitantes”, como destaca hooks, permanecem impossibilitando – e por tempo indefinido – a capacidade de atuação e agenciamento de grupos minoritários, neste caso em particular, a população negra, mas também indígenas, LGBTTQIA+ e outros grupos subalternizados e oprimidos numa relação de poder assimétrica. Negar o exercício da vida, tolhendo a dignidade e a plenitude, é condenar à morte.
É nessa perspectiva teórica de resistência política através do silêncio do olhar, naquilo que o olhar carrega de subversivo e vivo, que podemos entender bell hooks ao destacar a existência de um “olhar oposional”. Conforme a autora, o olhar de oposição, oposicional, consiste em um vocabulário estrutural e deriva do lugar de fala. Quando o não falar ou o não responder, quando o silenciar é também uma afirmação de si, um expediente de vida.
Refletir e nadar contra a atual onda conservadora é importante. Já que a atualidade carrega heranças antigas, é formada por legados de diversos tipos. E é significativo pensar como os regimes de visibilidade oferecidos às mulheres em suas pluralidades, em todos os âmbitos, continuam encerrando-as na invisibilidade, reificando-as. Sobretudo às negras. Por isso, devemos afiar nossos olhares oposicionais. Ora, cerrar o olhar é também uma forma de morte. Tal como a indiferença, o fingir que não percebe, que não existe. A aceitação tácita.
Em um contexto de profunda crise política, no interior da qual nos encontramos agora e desde sempre, é urgente a busca por apoio e organização. Organização com e a partir dos de baixo. A maré nacionalista – essa “deformação romântica”, conforme Isaiah Berlin (1909-1997) – sufoca e assassina os corpos que não se coadunam ao ideal normativo. É absolutamente inacreditável uma democracia ovacionar a ditadura e a tortura… e o suposto direito de ter direito nenhum. É igualmente curioso como em toda eleição elege-se exatamente os mesmos homens brancos, ricos, héteros e cristãos. Talvez seja o momento de nossas reivindicações transcenderem apenas o olhar…
Referência
HOOKS, Bell. “O olhar oposicional: espectadoras negras”. In: Traduções da Cultura. Perspectivas críticas feministas (1970-2010). Editora UFSC, 2017.