Berlim, suspiros e o fim do mundo – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
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Berlim, suspiros e o fim do mundo
Estou em Berlim. Minha mudança chegou atrasada em Luanda – crise de logística atribuída à COVID-19, mas na verdade foi só o mundo que acabou e a gente já está no depois – e, ao contrário do que se poderia intuir (talvez), assim que eu quase terminei de arrumar o apartamento, saí de viagem. Escrevo do acampamento de novo, portanto. Dessa vez num hotel bem okei perto da Alexanderplatz.
Sempre sinto que cheguei atrasado nos lugares: a História já passou e agora sobram as lojinhas da Ampelmann, vendendo abajur com o Ampelmännchen, o homenzinho do semáforo de pedestres – que de vez em quando algum alemão mais ousado ou bêbado cruza no vermelho, contrariando o estereótipo. A Alexanderplatz com lojas genéricas sempre em promoção. Cada vez que volto parece que abriu um shopping novo lá. Sucessões de shoppings. Mas como o mundo acabou, é possível que em algum momento a coletividade perceba que tanto essas lojas como a História de homens e fatos não servem para muito.
No domingo fui com Angélica Freitas, Juliana Perdigão e Nina Lemos nadar no lago. Depois a gente comeu pizza e eu me perdi tentando voltar para perto do grande falo da República Democrática Alemã. O que eu gosto em Berlim é essa chance de viver no corpo a cidade e seus conceitos. É bem difícil de explicar, mas sóbrio mesmo me ocorre algo como “saquei a cidade!”, seguido de silêncio.
No dia em que me perdi, a linha U4 do metrô estava fechada. Queria cheirar o rabo das gays da Nollendorfplatz, e era essa a linha que me levaria de Innsbrückerplatz, onde estávamos, para lá. Mas estava fechada. E eu sozinho e ainda sem SIM-Karte, ou seja, dependendo de Wi-Fi. Peguei o trem do Ring para um dos lados, desci, procurei a U qualquer coisa que também servia: nada. Voltei para o trem do Ring, segui até Westkreuz. E foi ali, procurando a U8 e já querendo voltar para casa sem cheirar o rabo de ninguém, que – estou em Berlim, então schraub das, vou contar – eu precisei urgentemente cagar. Müesli. Funciona. Então entrei num taxi. Zu Otto-Braun-Straße, bitte, Hotel Leonardo.
E o taxi fez uma linha perfeita oeste-leste, entrando na Berlim Oriental pela porta de Brandemburgo e pelo Tiergarten.
No caminho, eu pensava em escrever um ensaio ou um poema, ainda não sei, sobre esse caminho. Por isso pensava no generosíssimo Edgar Morin, e em seu livro “Mes Berlin”, em que ele reúne histórias sobre as viagens que fez para cá desde o imediato fim da Segunda Guerra até 2013. Pensava justamente no primeiro texto, que conta de 1945. Morin fala de seus percursos nas ruínas da guerra – e pensei nele enquanto via a cidade mudar depois de atravessada a floresta urbana do Tiergarten, mas sem conseguir perceber mais tanto – tanta loja, franquia de loja aberta atrapalhando com os luminosos a vista da História na noite de verão. Morin também esteve aqui pela primeira vez no verão.
Nota: Vou falhar com o original, que tenho em papel em casa, em Luanda. Baixar livro pode acabar com meu orçamento de viagem aqui na Alemanha, se a GEMA, o ECAD daqui, resolver me pegar. Peço desculpas por isso, e quem sabe, se o Matheus me lembrar, coloco o original – em francês – na coluna do mês que vem. Por ora vocês precisam acreditar em mim. A tradução que segue eu fiz durante o lockdown de 2020, para uma Leitura Estranha online, mais ou menos na mesma época em que percebi que aquilo era o processo do fim do mundo – e que talvez o fim do mundo tenha começado há 12 mil anos. Mais para frente eu traduzo alguma coisa que andei lendo pra convencer vocês também e deixar todo mundo mais tranquilo. Não é ruim que o mundo tenha acabado, pelo contrário: podemos ter algum otimismo. A própria Clarissa Dalloway diz: não é um alívio pensar que acaba?
O Tiergarten, antes um parque frondoso eliseano, havia perdido suas árvores, ceifadas pela batalha. O portão de Brandemburgo sobrou quase intacto, lascado de ferimentos leves; no topo, uma bandeira vermelha, esfarrapada, mais pendia do que se agitava, o lindo dia de verão não tinha vento.
Entre as ruínas, esse arco do triunfo parecia ser um sobrevivente de uma civilização muito antiga. O céu estava azul e o clima muito ameno. E eu estava lá, na entrada da Unter den Linden arruinada em toda a sua extensão, em frente à embaixada da França, onde se podia adivinhar, sob os destroços, linhas clássicas e, em frente à embaixada o hotel Adlon incendiado, que sobreviveu por milagre e oferecia ao olhar mil janelas cegas. Mais adiante na Unter den Linden, ruínas de embaixadas e casas particulares traziam uma melancolia distinta e um pouco pesada que evocava Palmira.
Perto do portão de Brandemburgo o Reichstag incendiado em fevereiro de 1933 era o espírito de pedra perfurado e dilacerado da democracia assassinada.
Estava só, e onde foi o coração vivo da capital não havia um berlinense ou visitante, nem mesmo militares, nem turismo: ruínas. As praças e avenidas desertas.
Não me mexia, comovido até as entranhas pela morte que me cercava, mas também comovido pelo verão tão suave.
De repente, no silêncio extraordinário que reinava na cidade, surgido de lugar nenhum e de tão perto, um canto sublime de violino puro e dilacerante, imenso, acompanhado por um piano frágil. Reconheci a Sonata à Primavera, de Beethoven. O milagre vinha de um alto-falante instalado pelos soviéticos sobre o portão de Brandemburgo.
Felicidade e tristezas inauditas me preencheram. O violino que cantava para as pedras, para as ruínas, para a morte me pareceu anunciar a promessa longínqua de uma era de ternura.
O silêncio retornou. Tomei a rua devastada que costumava ser a Wilhelmstraße, onde se mostrava, estripada, a chancelaria de Hitler. Ali também ninguém, nenhuma patrulha. Uma espécie de quadrado de cinzas parecia marcar o lugar onde estavam enterrados Hitler e Eva Braun. Os soviéticos mantiveram longamente o mistério sobre a presença ou não de suas ossadas sob o quadrado de cinzas. Subi as escadas majestosas da chancelaria, salpicadas de escombros de todo tipo. Havia uma galeria gigantesca de piso de mármore polido cujos 145m, soube depois, faziam-na uma galeria mas comprida que a de Versalhes. Fui de cômodo em cômodo até chegar ao escritório de Hitler, onde havia certificados de condecorações e promoções que ele havia assinado e que embolsei. Guardei por muito tempo essas relíquias depois não sei onde nem como elas desapareceram.
Nos arredores dessa chancelaria no perímetro de Wilhelmstraße, Leipziger, Unter den Linden e Alexanderplatz ocorreu a última batalha; os últimos defensores do Führer, encurralados depois de combates intermináveis já não eram os excelentes SS arianos, nem os sobreviventes da Wehrmacht, mas um punhado de velhos e garotos da Volkssturm e, sobretudo, legionários franceses, valões, holandeses, escandinavos, bálticos, espanhóis e ingleses da SS British Free Corps, restos da Europa nazista, alheios ao suicídio de Hitler no dia 30 de abril que deram suas vidas a essa assombração.
A Potsdamerplatz, centro da cidade, não era mais uma praça, mas um amontoado de entulho. A Alexanderplatz não tinha forma. Na Leipzigerstraße, carcaças de prédios antes bancários, administrativos ou comerciais ofereciam a nudez das ferragens de seus poços de elevador. Placas gigantescas pendiam, miseráveis, em busca de um alfabeto perdido.
O Walhalla desmoronou levando com sua ruína os palácios guilherminos onde, entre blocos enormes, escondiam-se, descartados e feridos, atlantes e cariátides.
Eu não parava de percorrer Berlim, a pé ou de carro, dia e noite. Uma noite em que vagávamos sem destino, uma mulher de repente pulou diante dos faróis do carro. Pedia a Rudy, o chofer, que parasse. A mulher, nos seus 30, alta, morena, fardada, subiu, sentou-se perto de mim e nos beijamos como dois amantes perdidos que se reencontram depois do naufrágio do Titanic. Ela guiou Rudy pela noite até um prédio eviscerado que havia perdido dois ou três andares, e me conduziu por uma escada instável até um quarto. Os “ja, ja” assustadores e sublimes que ela gritava me submergiram na volúpia. Nunca mais nos vimos. Esse tipo de encontro, disseram-me, não era raro.
O leste e o oeste de Berlim eram partes de uma só cidade uniforme em suas ruínas e suas vias de comunicação; nada os separava ainda, mas também nada os unia. Eu era uma exceção, comutando sem barreiras do oeste ao leste e vice-versa.
O que ninguém podia conceber é que sobre o cadáver da grande capital nasceriam duas cidades, nascidas de duas inseminações artificiais, o gêmeas totalmente heterozigóticas, mas separadas desde o nascimento e por seu nascimento, e, embora fronteiriças, distantes uma da outra como dentro de duas galáxias inimigas.
O comentário tradutório, pela precariedade da minha escrita agora, longe dos livros – e seis meses nessa tournée de intelectual deslivrado, lendo pouco e recompondo fala e escrita para funcionar um pouco melhor (não conto mais desta novela Die Leiden des mittleren Alters Hugo, porque a coluna é de tradução e não meu diário) – vai ser daquele jeito. Se eu lembrar alguma coisa enquanto escrevo ela vem.
Escolhi esse texto para uma das minhas performances das Leituras Estranhas, que fazia na sala de casa antes da pandemia, e depois ela foi parar dentro do Zoom. Era chato não conversar direito com as pessoas, mas dava. O tema não era o fim do mundo, mas “cidade”, a ideia de cidade, conceito de cidade, coisas assim. Li com quem veio me ver uma porção de textos, incluindo trechos de O tigre branco, de Arvind Adiga – um em que ele fala de Delhi –; uma crônica de João do Rio – para falar da saudade da rua –; um trechinho de uma entrevista com Jacques LeGoff, publicada pela editora da Unesp no Por amor às cidades; um trechinho de O museu da inocência, de Orhan Pamuk, e este, que foi o último – até porque era isso, eu criava de um fim do mundo. Crio ainda, porque ainda crio e o mundo acabou.
Mas como eu disse, escolhi esse trecho para falar o que acho do fim do mundo, mostrar como não é a pior coisa. A Sonata de Beethoven que começa a tocar, por exemplo – e o quanto parece mentira, mais que o encontro com a mulher no meio da rua. Uma sonata à primavera em cima do portão de Brandemburgo. Uma sonata. À primavera. Em cima do portão de Brandemburgo. Depois da Segunda Guerra. É quase um slogan perfeito, daqueles que o Marcuse gosta – que o próprio Marx gostaria. Morin recolhe a assinatura do ditador nazista (que some, como deve ser para essas coisas). E, caminhando pela cidade, o francês costura um território – e o sexo desesperado, talvez o maior hino à vida, um hino, felizmente repetido pela cidade reduzida a nada. Essas cenas todas, a comoção de Morin: as ruínas respiram e um pequeno foco de vida caminha sem poder sentir esse vento porque o ar não se move. Eu não sei se consigo reelaborar mais, porque me parece uma performance de tanta beleza – e tanta generosidade por haver se tornado texto – que eu duvido que você que está lendo precise de mais exegese. É muita beleza triste, mas e então? O mundo havia acabado, como acabou hoje, e o que se tem é essa atitude queer de não deixar um lugar queimado sozinho, de atender a um chamado desesperado e sexual pela vida – e enterrar, como ele enterra os últimos guerreiros de um Hitler morto, o mal.
Nosso enterro é mais longo e é todo um sistema complexo a se enterrar – está morto e ainda caindo sobre nossos corpos. Mas pense na sonata. Ou na ode à alegria, no menino Beethoven de Minha amada imortal deitado num lago que reflete as estrelas, fugindo da surra que o pai ia lhe dar. Pense no grande suspiro de alívio, aqueles que a gente dá e logo em seguida percebe que não está mais gripada, e que, depois do enterro disso tudo, os que viverão por nós vão poder dar quando tudo acabar. Não é bonito?