Camila Manoela Silva entrevista Ricardo Domeneck
Entrevista com Ricardo Domeneck concedida por e-mail a Camila Manoela Silva, discente da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
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C.M.: Domeneck, para dar início a essa entrevista, sabendo que hoje o seu nome vigora notoriamente no cenário da poesia contemporânea, gostaria de saber como surgiu o seu contato com a poesia e como e quando despertou em você o interesse em passar tudo para o papel?
R.D.: Por que uma criança, que mais tarde se tornará um matemático ou engenheiro, desde cedo apresenta paixão por números, ama as aulas de Matemática e Física na escola? Por que uma criança, mais tarde médica e cirurgiã, se anima em particular com as aulas de Biologia? Por que eu, hoje escritor, amava as aulas de Língua Portuguesa na escola? Me lançava aos resumos mensais de livros da Coleção Vagalume enquanto para meus colegas aquilo era uma tortura? O que faz uma criança passar horas copiando os coletivos de animais (lobo, matilha; abelha, colmeia;)? Difícil saber. Na peça ‘Equus’ de Peter Shaffer, um dos meus textos favoritos, a personagem do Doutor Dysart diz algo assim: “Uma criança é confrontada por inúmeras imagens ao entrar no mundo”. Por que uma toma delas sua alma? Por que esta, e não outra? Talvez algo meramente evolutivo. Era importante que membros da espécie tivessem interesses diferentes. Talvez cada membro da espécie carregue em si já o desejo de mutação. De ser outra coisa. de Diferenciar-se. Poderíamos responder isso de forma mais mística, eu sei. Falar de anjos e musas e duendes, como no texto de Lorca. Mas estamos passando por um momento tão difícil que o verso de Carlos Drummond de Andrade, “A vida apenas, sem mistificação” tem martelado na minha cabeça. Só posso dizer que desde cedo as palavras tomaram uma proporção gigantesca na minha vida. Eu amo a linguagem. É cafona, mas é isso. Eu amo a linguagem. Ao responder esta entrevista, meus olhos têm verdadeiro prazer ao ver as manchinhas pretas cobrirem pouco a pouco o espaço em branco. É como naquela canção de Caetano Veloso através de João Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”, que é uma prece que faço com frequência: “Água da palavra / Água de rosa dura / Proa da palavra / Duro silêncio, nosso pai”. O Brasil é um país que ainda permite essa relação com a linguagem, porque santos, orixás e deuses ameríndios ainda vagam. Os europeus perderam isso. Se é bom ou mau, deixo com você.
C.M.: Você se mostra um poeta engajado e está frequentemente usufruindo das redes sociais-virtuais para compartilhar e falar da poesia, levando também em consideração o seu blog “Rocirda Domencock” que é mais uma plataforma acessível de contato para os leitores de sua poesia, quando surgiu essa ideia de se fazer presente como poeta no “mundo online”? Você acredita que esse processo viabiliza, de certa forma, maior interação com o seu público?
R.D.: Poetas e artistas em geral sempre acompanham as transformações tecnológicas. As pessoas se esquecem que o próprio papel (ou pele esticada e seca de ovelhas) foi em seu tempo uma transformação tecnológica num mundo no qual os poetas “publicavam”, ou seja, doavam sua linguagem à comunidade, através da boca apenas. As duas coisas estão ligadas, na verdade. Um poeta está indissociavelmente ligado a uma comunidade. Em papel, vídeo ou gravação sonora, o que importa é o círculo de membros da tribo.
C.M.: Em dezembro 2006, a partir do seu vídeo apresentado pela TV Cultura “Garganta com Texto”, que é um dos seus vídeos de maior acesso no Youtube, surge também um entrelaçamento entre a oralização da poesia em texto-performance e a performance enquanto videoarte. Gostaria que você falasse como surgiu essa ideia e se podemos dizer que ela foi, de certo modo, um impulso para outras performances visuais? Uma vez que a partir desta, inclusive subintitulada como “intervenção televisiva”, houve uma certa expansão de suas performances através das plataformas visuais.
R.D.: O vídeo “Garganta com texto” surgiu de um convite de Ivan Marques para o programa Entrelinhas da TV Cultura em 2006. Ele queria, na verdade, uma entrevista. Mas como não se podia enviar uma equipe de televisão à Alemanha simplesmente para entrevistar um poeta recém-estreado (eu havia apenas publicado ‘Carta aos anfíbios’ naquele momento), ele sugeriu que eu de certa forma “entrevistasse a mim mesmo”. Ele enviaria perguntas, se eu quisesse, e eu as responderia. Com a edição, não faria diferença se as perguntas eram vocalizadas ou lidas. Uma leitura do ‘Carta aos anfíbios’ mostra que já havia em mim a obsessão pelo corpo, por sua materialidade, uma recusa a abstraí-lo. Foi isso que me levou à tradição oral. O esloveno Mladen Dolar escreveu que o nosso órgão chamado língua, escondido na boca, é o local onde linguagem e corpo se encontram. Se tornam um só. Desse interesse poético pelo corpo, era inevitável talvez que eu começasse a me dirigir à performance e à oralidade. Eu gosto daquele vídeo, é importante para mim, apesar de hoje o ver como problemático. Era um momento de ativismo e militância pró-oralidade, então eu faço asserções por vezes bombásticas demais. Mas era também o momento. Quem hoje olha para o país, com tanta performance no campo da poesia, talvez não saiba como isso estava entre o inexistente e o invisível naquele começo de século. Era necessário, me parecia, ser forçoso para quebrar o cerco hiper-literarizante no campo poético. Então talvez meus exageros, como dizer que “Poesia não é literatura”, possam ser perdoados nesse contexto. Outro problema do vídeo é técnico: não deveria ter cortes. Deveria ser um vídeo sem cortes, a performance inteira. Algum dia pretendo refazer aquele trabalho.
C.M.: Ainda sobre “Garganta com texto”, em sua performance você levanta alguns questionamentos. Logo no início da performance você afirma acreditar que a poesia possui “um papel e uma função específica no cenário contemporâneo” e que não podemos pensar em poesia “como se o poeta hoje exercesse o mesmo papel que exercia na Grécia antiga”. Para você qual é o papel da poesia no cenário contemporâneo? E ainda nesse viés, qual o papel do poeta para além de seu tempo?
R.D.: Poetas exerceram papéis muito diferentes ao longo da geografia, do tempo. Mas há, creio, em todos eles uma ligação forte com a comunidade, com o público. Há o momento solitário de composição que só faz sentido se se torna público. Como unir poetas como os bardos bretões do século VI, que iam à guerra com seus reis, a um místico como Rumi, ou a Li Po, e os mesmos a Safo de Lesbos e Cecília Meireles? À atenção à língua, onde tudo começa, o amor e o ódio. As leis e os crimes. Hoje, diante de nosso quadro político, em que a linguagem é usada constantemente para enganar, talvez possamos apenas ser o que Rosmarie Waldrop insinuou: “A equipe de manutenção da linguagem.” Não deveriam ser os poetas os mais capacitados a lidar com essa crise das notícias falsas?
C.M.: Você afirma que “poesia não é literatura. Poesia é uma performance levada a cabo por homens e mulheres de carne e osso” e que a poesia “é uma performance feita através e na linguagem”, qual é a sua relação com a linguagem? O que você considera como linguagem poética?
R.D.: Talvez continue sendo de Roman Jakobson a tentativa mais ampla de englobar, o que chamamos de poesia seja um texto de Taliesin ou Li Po, Safo ou Rumi, Cora Coralina ou Décio Pignatari – que faziam aniversário no mesmo dia. A atenção da linguagem sobre si. A chamada função poética da linguagem. Mas eu já apontei para o perigo também dessa definição: de acreditar que a função poética se basta a si e/ou cancela, no poema, as outras funções, como a referencial ou a fática. A linguagem surgiu para nos ligar a outros. A poesia, sendo a linguagem apaixonada por si, deve carregar necessariamente, eu acredito, a crença no outro. Aquilo que Hannah Arendt chamava de ousadia: “lançar seus fios à rede de relações sem saber o que se fará deles, mas acreditando no humano de cada humano.” Acreditando no comum. Poesia é partilha. Talvez daí o verso de Jorge de Lima: “Mel silvestre tirei das plantas, / sal tirei das águas, luz tirei do céu. / Só tenho poesia para vos dar. / Abancai-vos, meus irmãos.”
C.M.: Em determinado momento da performance você diz que cada escolha poética implica em um módulo de representatividade desse poeta, como seria essa escolha? Como você mobiliza essa escolha durante os seus processos criativos?
R.D.: A questão é crer, em primeiro lugar, que não há separação entre conteúdo e forma. Robert Creeley, numa carta a Charles Olson, escreveu que “a forma é uma extensão do conteúdo.” Eu transformei a coisa em um ensaio, dizendo que “a forma é a intenção do contexto”. Nós acumulamos muitas técnicas poéticas ao longo dos tempos. Eu discordo que se possa usar qualquer uma a seu bel-prazer. Eu acredito que a escolha da forma já começa a dizer, antes do poema começar a falar.Veja bem, há muito de instintivo nisso, e uma forma estranha de conglomerado entre a linguagem e o contexto que gera o poema. Se o poeta se equipa, ele pode controlar isso. Uma poema de urgência terá efeito diferente sobre o leitor, através da sua respiração, por causa do ritmo. Um poema de versos curtos, cortes rápidos, se o leitor é sensível ao ritmo, afeta até mesmo sua respiração. Os gregos sabiam disso muito bem, determinando ritmos diferentes para a ode ou para a elegia.
C.M.: No fim da performance, você questiona se a poesia atinge as minorias. Quais seriam essas minorias? E você como poeta contemporâneo, como faz com que esses poemas cheguem a essas minorias?
R.D.: Muita coisa vai definir de que maneira o poema chega a qualquer pessoa, seja maioria ou minoria. Outra coisa que não discutimos muito abertamente é o quanto as formas de distribuição da poesia afetam a sua recepção, da parte mais técnica como seu preço e mostra nas livrarias, até questões mais políticas que envolvem o jornalismo cultural. Aí retornamos à questão das redes sociais, mas não só. Até a linguagem que incorpora o poema definirá a que público chega. Se é um soneto ou um epigrama, hermético ou direto. Cada situação demandará algo distinto.
C.M.: Em sua visita a Uberaba, em dezembro de 2018, no âmbito da “I Jornada Integrada de pesquisa em poesia contemporânea UFTM-UFU”, ao ser questionado sobre o conceito de performance, você afirmou que, pra você, “a performance é um processo intimista” e que pode ser realizada simplesmente pela presença do corpo e da voz, gostaria que você falasse mais a respeito disso.
R.D.: É importante ressaltar que o intimismo da performance não implica isolamento ou solidão do poeta. Pelo contrário, trata-se da intimidade de várias pessoas numa sala, num situação compartilhada. Daí também a grande diferença entre os registros de performance, como meu vídeo “Garganta com texto”, e uma performance vista ao vivo, missa de corpo presente.
C.M.: A temática corpo tem destaque em sua poesia apresentando inclusive um viés muito importante, tanto na forma quanto no conteúdo dos poemas. O corpo que fala, tateia, se move, politiza, entre outras tantas características que podem ser encontradas em suas obras. Qual é a importância da temática corpo nos seus poemas? Você a vê como uma característica essencial?
R.D.: A questão do corpo, ainda que isso pareça contraditório como resposta abstrata, é política (a pólis, o conjunto de cidadãos) e filosófica. Me importa, me parece essencial que quebremos a noção cartesiana de separação entre espírito e matéria, corpo e mente. Parece-me algo que nos trouxe doenças psíquicas muito específicas. Nesse aspecto, minha obsessão com o corpo, que eu preferiria ver como obsessão diante da ligação de corpo e palavra, quer-se terapêutica, digamos. É uma escolha política. Ética. Pensando no que escreveu Wittgenstein: “Ética e estética são uma só.”
C.M.: Domeneck, sabemos que você lançou recentemente “Odes a Maximin”, gostaria que você falasse um pouco sobre a relação do livro com a poesia homoerótica, como você se relaciona com essa tradição?
R.D.: O livro começou com um único poema sobre um rapaz alemão, por quem fui obcecado. Mais jovem do que eu, bissexual, era uma relação muito difícil. Era uma relação física, mas também psíquica. Vieram outros dois poemas. Era uma celebração misturada a um exorcismo. Nesse momento, decidi fazer uma pesquisa específica na tradição da poesia homoerótica. Safo, entre os gregos. Catulo, entre os latinos. Abu Nuwas, entre os árabes. E tantos outros em suas culturas e nas nossas. Isso me levou a falar sobre isso nas redes sociais, que por sua vez levou ao convite da Companhia das Letras de organizar uma antologia dessa tradição, na qual trabalho há dois anos. Fiquei portanto imerso nessa tradição, o que não tinha como não influenciar minha produção. Ao mesmo tempo, trabalhava nos poemas que formam o livro ‘Doze cartas’, que é completamente diferente das ‘Odes a Maximin’, e foram lançados juntos, que por sua vez são diferentes do livro em que venho trabalhando, e também à série que acabo de terminar para o Festival Artes Vertentes. É uma necessidade pessoal, é claro, esse trabalho com a tradição homoerótica. Mas também política, pois demonstra como essa tradição é muito mais antiga dos que as interdições abraâmicas, e como ela teve acolhida tolerante mesmo entre os árabes do período clássico no Al-Andalus e no Oriente Médio, assim como na Grécia, em Roma, entre os ameríndios, etc.
C.M.: Para finalizar, e matar um pouco da nossa curiosidade,você já tem alguma perspectiva sobre algum próximo trabalho?
R.D.: Como mencionei acima, terminei uma série de cerca de 18 poemas curtos para o Festival Artes Vertentes 2019, que este ano investiga a linguagem por ocasião dos 20 anos do fim do uso do Código Morse pela Marinha. A Marinha Francesa, por exemplo, usou o Código Morse pela última vez no dia 31 de janeiro de 1997. A última mensagem dizia: “Atenção a todos! Este é nosso último grito antes do silêncio eterno.” Muito francês. E não há como resistir a algo assim sendo poeta. A série talvez saia como livro, intitulado ‘O corpo e o morse’, mais uma vez o corpo. Ao mesmo tempo, trabalho aos poucos num livro maior, provavelmente intitulado ‘O sol ao meio-dia e meia’, mas sem pressa. Já há poemas suficientes. Mas quero ter calma com esse. Estou escrevendo também os contos para um novo livro de prosa. E há sempre a coletânea de ensaios, ‘A estratégia da holotúria’, sobre a qual mudo de ideia toda semana entre publicar e não publicar.
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(Fotografias de Elionai Amuy)
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Referências de Ricardo Domeneck:
Sounds:
Collaborations with Nelson Bell
Collaborations with Markus Nikolaus
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Sobre Camila Manoela
Apaixonada desde sempre pelo ramo das artes, em especial o teatro, e pela literatura, sempre me vi dividida entre esses dois mundos, me tornei muito cedo atriz e professora de teatro. E retomei meu pendor pelos estudos literários ao ingressar no Curso de Letras com habilitação em língua portuguesa e espanhola da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Desde então me descobri atraída por uma nova área de pesquisa, que tem sido, talvez, a maior descoberta de minha vida: a poesia contemporânea. Atualmente a arte e a poesia tem motivado os meus estudos e o meu campo de trabalho, concretizando parte dos sonhos de menina, nascidos lá nas redondezas belorizontinas e hoje instaurados em Uberaba.
Conheci as obras de Ricardo Domeneck em 2018 através do grupo de pesquisa em Poesia Contemporânea dirigido pelo Prof. Eduardo Veras na UFTM, e, sem fugir do clichê, poderia dizer que foi “amor/identificação à primeira vista”. Fiquei deslumbrada com a potência com que seus poemas dialogam com o cotidiano, com a forma como o corpo se apresenta, com a atemporalidade presente em seus versos, em como a temática erótica e homoerótica é representada… enfim, tudo! Desde então decidi acompanhar suas obras e estudá-las de perto. No final de 2018, sediamos na UFTM a I Jornada Integrada de Pesquisa em Poesia Contemporânea UFTM-UFU, coordenada pelos professores Eduardo Veras (UFTM) e Sérgio Bento (UFU). Nesse evento, pude conhecer pessoalmente o Ricardo Domeneck. Tive a honra de abrir o evento com uma performance cênica e poética de seu poema “Psicopatologia de Vera Cruz”, um de meus preferidos, aliás, “emprestando” o meu próprio corpo para representá-lo. Após múltiplos diálogos com o poeta, comecei a admirá-lo ainda mais, e sem sombra de dúvidas posso dizer que é uma pessoa ímpar, que transpira conhecimento. Não satisfeita com sua rápida passagem pela terra zebuína, entrei em contato com ele pelo facebook e pedi que me concedesse uma entrevista um pouco diferente daquelas que até então ele havia concedido. Domeneck foi muito solícito desde o princípio, e depois da troca de alguns e-mails, a entrevista finalmente saiu.