Casa novamente lar – Por Vinícius da Silva
Casa novamente lar
“minha casa é o cão de rua/ que não é meu, que apenas acontece/ de estar ali”
(Ana Martins Marques)
Desde que eles foram embora, vejo-me novamente neste espaço vazio de palavras. Compartilho a condição mais vulnerável e ínfima dos humanos, o despertencimento abrupto que atravessa a escuridão como uma luz cortante e pânica. Neste momento, sinto-me obrigada a recolher os cacos, a limpar a casa para ser novamente o que um dia poderia ter sido. E ter, de uma vez, o suficiente para me tornar humana.
Agora, os imãs não mais seguram as fotos do que se foi. As mãos cansadas não mais buscam o que remediar. Os habitantes deste lugar estão, de alguma forma, reaprendendo a tatear o lugar e respirar novamente o ar que atravessa o vão entre nós e eles. Afinal, com os cômodos re-habitados, resta-nos buscar uma linguagem da casa, estabelecer uma comunicação com ela. Fazer da casa novamente um lar após o vendaval que descentrara esse lugar de palavras.
É preciso reaprender a habitar a casa, o lugar da escrita solitária. O lugar de criação de novos mundos, nos quais todos acreditam, menos você. Em “Escrever”, Marguerite Duras diz: “A solidão não se encontra, se faz. A solidão se faz sozinha. Eu a fiz.”
Aqui, neste lugar onde habita o desconhecido, experimento a solidão como condição sine qua non da escrita como prática para manter-se de pé. O único som atravessa-me como um vento e a única luz acende o cigarro. Na tentativa de vislumbrar algo diante da fumaça obliterante, vejo a mim mesma no espelho do mundo. Imagem embaçada, incerta, matéria amorfa que busca o impossível.
Eles se foram e, agora, é preciso aprender a ser força e pilar, ao mesmo tempo. Dos restos, iniciam-se as buscas pelos escombros, na tentativa de encontrar algo que nos seja lar. Caminhar sobre as ruínas torna-se a condição incompleta do ser. Estou experimentando um estado absoluto de ser palavra e de ser força. Uma força pânica, um coquetel molotov, algo que pode, a qualquer momento, cessar.
Não aprendi a linguagem da casa, nem da rua. Não respirei este ar inóspito que excede o que não tem lugar. Como fazer da casa um lar sem lugar? Como habitar espaços de palavras? Não aprendi a linguagem dos homens. E por isso, hoje experimento a condição porosa do devir. Consciente de que há muitos cacos ainda pelo chão, é preciso se cuidar para não separá-los, depois, do sangue e do sabão. Parar de fumar para enxergar o espelho do mundo. Para replicar as manchas de seu espetáculo.
Por ora, mesmo perdida, prevejo apenas uma possibilidade: a de tornar a casa novamente um lar.
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No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/