Catalisadores (in)visíveis – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Catalisadores (in)visíveis
Não faz muito tempo, eu li em um artigo de jornal – ou de revista, um site de informações? – que a vida cada vez mais célere de nossa contemporaneidade acarreta graves prejuízos para a saúde física e emocional. Entre os vários quadros clínicos, o artigo mencionava o estresse crônico, as crises de ansiedade, o pânico, a hipertensão. No Brasil, após o período pandêmico, verificou-se um número crescente de pessoas acometidas pela “síndrome de Burnout”. O diagnóstico é tão expressivo que o país já se tornou o segundo no ranking de enfermos/as, superado apenas pelo Japão, de acordo com as informações da Organização da Saúde Mundial. Mas, afinal de contas, o que é de fato essa “síndrome de Burnout”? Conforme o site do Ministério da Saúde, a síndrome é uma forma extremada de “esgotamento Profissional, um distúrbio emocional com sintomas de exaustão” profunda, “estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante”. Ainda de acordo com os dados do Ministério da Saúde, a “principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho. Esta síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, dentre outros”[1].
Deste modo, e independentemente da sua forma de ser e de estar no mundo, o estilo de vida e as escolhas profissionais – quando estas existem e não são apenas imposições de um sistema opressor – interferem na predisposição ao burnout. Ora, a emergência da síndrome está fortemente associada ao ambiente de trabalho, ao seu contexto precarizado, assediador. É plausível supor que as pessoas com uma maior adaptação emocional apresentem certas habilidades de socialização, por exemplo, desde o enfrentamento, a paciência e/ou a resiliência, como maneiras menos traumáticas de lidar com o estresse. No entanto, jamais devemos confundir a resiliência ou a maleabilidade da postura individual com submissão ou assujeitamento. Nunca. Um espaço profissional ostensivamente desafiador, angustiante e exaustivo afeta qualquer uma/um. Mesmo as/os mais preparadas/os psicologicamente – se é que recebem algum preparo psicológico –sofrem, vide o índice grave de suicídios de agentes da segurança pública brasileira[2]. E em uma cultura patriarcal, as principais vítimas são as mulheres.
E como não adoecer? Esta é a pergunta que não quer calar. E para a qual silenciam-se as respostas. Existe algum modo de estar/ser imune, levando em conta a enorme sobrecarga de afazeres e obrigações, com atribuições cada vez mais inadiáveis e que se acumulam em nossas vidas, em nosso cotidiano? Ser mulher, profissional, estudante, mãe, dona-de-casa, filha, tudo ao mesmo tempo, é desgastante e exaustivo. Existe válvula de escape, um expediente que amenize o sofrimento? Recentemente algumas pesquisas acadêmicas confirmam que nós somos mais vulneráveis à síndrome de burnout do que os homens. Mas não é preciso que a ciência diga isso: um olhar menos atravessado pelo patriarcado já é suficiente. Sem dúvida, o esgotamento físico e emocional também está ligado ao não reconhecimento e não valorização de nossas múltiplas atividades (seja no trabalho, seja no meio familiar). E aos assédios onipresentes: moral e sexual.
A discussão contemporânea de gênero coloca em evidência a carga incomensuravelmente desproporcional de responsabilidades quando se compara homens e mulheres. É comum vincular as mulheres, exclusivamente, à urgência de equilibrar as tarefas domesticas não remuneradas com o trabalho profissional remunerado, a conhecida “dupla jornada”; para algumas, é “carga tripla”. Além da disparidade salarial, no mundo do trabalho a mulher enfrenta uma menor possibilidade de promoção, precisa conviver com a falta de vislumbre de um cargo de liderança e, repito, todo tipo de assédio. Articula-se aí as cobranças pela realização dos afazeres domésticos, o cuidado das/ filhas/os, etc. É muito comum também que às mulheres sejam atribuídas funções de maternidade, como a educação, a saúde, e as atividades escolares e extracurriculares das/os filhas/os. Ademais, em muitos lares são elas as responsáveis por cuidar dos maridos e idosas/os ou doentes da família. Assim, as mulheres têm de administrar uma rotina mais elaborada e complexa de responsabilidades e cuidado.
A vulnerabilidade da mulher ao quadro de burnout[3] está igualmente ligada, portanto, ao esforço em satisfazer as expectativas sociais, externas, que modelam o comportamento, o pensamento e mesmo os nossos corpos. O que gera então outra síndrome, o da “Mulher-Maravilha”[4]. Não é uma patologia, mas uma condição emocional e psíquica, que caracteriza aquelas mulheres que diante de tantas responsabilidades, assume para si – ou ao menos tenta assumir, o que em si gera desgaste e sofrimento – o controle de tudo ao seu redor, abraçando diversas funções ao mesmo tempo, sem reconhecer ou pedir ajuda para lidar com o estresse a frustração decorrentes desse esforço.
É necessário desconstruir os estereótipos de gênero que perpetuam a desigualdades.
É fundamental, deste modo, reconhecer e combater os privilégios que engendram as desigualdades, tanto de gênero quanto de classe, para se alcançar uma sociedade com mais equidade. Enquanto a revolução não vem.
NOTAS
[1]https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sindrome-de-burnout
[2]https://www.cartacapital.com.br/sociedade/suicidio-de-policiais-e-um-problema-grave-no brasil-aponta-estudo/
[3] https://www.bbc.com/portuguese/geral-58869558
[4]https://www.band.uol.com.br/noticias/maes-enfrentam-sindrome-da-mulher-maravilha-muitos-pratos-para-equilibrar-16601860