Cinco poemas de Ana Ladeira
Ana Ladeira tem sido, foi ou (ainda) será (de novo): andarilha, professora, inventadeira de versos. Pintou e bordou em escolas públicas do começo do mundo (e do fim). Pesquisadora de memórias dissidentes de outras, nada óbvias, docentes de crianças. Pode ser encontrada em: @anapoetaladeira ou numa rede arco-íris, dessas que a gente pendura em barcos para atravessar rios. Tem atravessado rios.
***
Áries da gota serena
Diz: quem é de fogo, demônia
quebra tudo, briga
Sem
vergonha
paciência e compostura.
Cem
por cento
agonia e gastura.
Diz: sem chance dar certo a gente.
Com base em quê?
Em signo.
me define pela hora do meu parto
Ora, que besteira, e eu lá ligo
para essas coisas de planetas?
Ela partiu foi meu de dentro, ela
a flor com asa jogou na lama…
Por conta de bestagem, deusas.
Mas é claro, só podia, escorpiana!
*
Sumida
na clausura também tem disso
e como!
antes mastigo
com qualquer das
bocas, duas
abertas, babo, bocejo
delírio do bom e Gozo, epíteto
daquela ilha
ilhada sem mar em volta
só vírus vacina escassa
mil aulas online, lives
mascaro as ganas de enlace
gosto e tato de outra pele
com ávidos dedos bem vivos
recém-limpos, purificados
saudade encontro das águas
bruta inveja deles me invade
desses rios amazônicos
densidades temperaturas
tonalidades velocidades
em tudo por demais díspares
mas tão próximos que quase
o mesmo, um só, se (en)tornam
se encostam e, então, são dois
conseguem, ainda bem juntos
manter, ao que tudo indica
as velocidades temperaturas
densidades e tonalidades
próprias
mil perdões, Solimões e Negro
sou só seiva a tombar de pedras
salto, sem hesitar um átimo
nas coxas lábios pescoço braços
lentos quentes absolutos dela
muito embora, eu bem sei, me perca
inteirinha, nessa úmida mescla.
*
Entrega em mãos
Alguém tem que nos querer pra gente querer de volta?
Me digam vocês; eu, quando quero, quero de ida
Vou lá e sopro feito a sina fosse flauta:
te quero, viu?
Se quem ouviu desaprova a ousadia
nos calcanhares giro, dou meia (revira)volta
e, assim, terei feito dois percursos
um de ida e um de vinda.
Vê lá se fico parada?, acaso sou poste, árvore
paralelepípedo?, e olha, ainda que fosse:
postes caem, árvores se movem com o vento
raízes levantam concreto, cimento
paralelepípedos saem do lugar
desmancham o quebra-cabeça ao qual pertencem
o fato é: independo de ser querida pra querer alguém.
Uma continha de mais ilustra o impasse
quatro parcelas e um resultado:
Se eu aguardo ser querida de volta
a pessoa que eu quero espera ser querida de ida
eu me abstenho de ir porque resolvo demorar antes
+ ela evita vir porque vai-que-é-à-toa-olha-o-mico…
Cadê surpresa chegança alívio?
Claro, dirão:
ao menos se previne susto discordância o temido “deixa disso”
Eu, hein? prefiro tomar um fora, amargo trago de espuma,
tendo andado
me exposto, palhaça num picadeiro invisível
prefiro.
Cerveja é amarga e os copos viram em inúmeras goelas
quando tem sol, praias ficam lotadas e tem espuma nelas
já o salto sem rede – de graça
adrenalina e inverno no avesso do umbigo
acontece debaixo de chuva, de neve, de estrela
Abro a boca e digo: te quero.
Abro os braços: e agora?, digo
É mais que como amiga nunca falo
Como amiga é o máximo possível
É te quero de desejo, entenda
e se a pessoa me dá um nem te ligo
eu rumo pra onde eu estava
mentira
Ao ir embora inaugurar um abismo
se perde bonito o ponto de partida
aterrissamos então numa vírgula
Como duas e duas mãos são quatro:
vamos mais é nos arriscar de novo
e a essa danação nós chamamos vida.
*
Madrepérolas
Nossas cabeças, porventura, sobre a mesma
fronha
Ela, de soslaio, indaga (espanto-onda-alegria)
após meu afago redondo:
Vamos dormir de conchinha
seguida de pontos em forma de orelha
e dentes, que se mostram, e
gengivas
quer saber como
Como será essa concha
Me ocorre que passei pesquisa sobre as
conchas esta semana
contemplando a curiosidade de trinta crianças
um adorável 4º ano
Duras casas de moluscos (as conchas)
feitas de nácar,
tamanhos e cores variados, diversos seus
habitantes
podem estar tanto em água doce
quanto salgada
e provoca impactos ambientais
levá-las aos montes embora das
praias
Impactada pelo desfecho do dia,
misto de surpresa
com encanto, na verdade
prefiro ficar na parte de dentro
Ela se vira, desfaz meu abraço
e com seu corpo cálcio me rodeia
Somos, então, de nácar
Aroma de maresia, imersas nas vagas
até que elas, bravas, nos devolvam à
areia.
*
Nós outras
E o nó maior-supremo é ser
tudo menos bonita
tudo, tudo vem disso, dessa ausência de
beleza
vem o que perfuma e o que apesta
nessa história
vem dor de xingamentos e solidão
em menina
em cada ano-espinho-letivo
título de feia, de horrorosa
também vem essa mania de se amar
em demasia
O que pode causar problemas
e até uma fúria assassina
Num mundo em que a todas as mulheres
inclusive às lindas
lhes é negado afago na
autoestima
Ostentar autoconfiança
depois de um passado de feiura ainda recente
de um presente de pouca
lindeza e nada
intensa
e mesmo assim que se dane o resto
vamo
em frente
é fogo num rastro de pólvora
tem quem aguente?
A felicidade alheia já incomodaria
de qualquer maneira
A de uma mulher satisfeita com seu corpo
“desarrumada”, “mal depilada”
se assemelha a um delito
“Mulher direita se ajeita e não se
gosta desse tanto”
Ser “esquisita” e de bem com o espelho
objeto de todas inimigo
Pra começo de conversa, nem faz
sentido
Em verdade, em verdade, vos digo:
Quase nada é mais temerário
que amar a si mesma sem ser bonita
Saber-se adorável, sendo
e por esse grave, terrível pecado
– O brilho próprio –
nem pedir desculpas
Obrigar ao astro-rei mais que sagrado
gigantesco par de escuros óculos
mesmo tendo parentesco é com
a lua
Contraindicado fazê-lo em cima de tapetes e cavalos.