Cinco poemas de Caio Bulla
Caio Bulla nasceu em 1991, em Maringá-PR. Graduado em Direito, é servidor público na cidade de Palmas. Lançou o livro de estreia, afiado, asfixiado, aficionado, pela Editora Folheando. Tem poemas publicados no blog Poesia na Alma, no portal Mirada Janela Cultural e nas revistas Toró, Aboio, Sucuru e Variações.
***
qual o nome da sua febre?
ser fim
em si mesmo
mesmo que seja
o fim do outro
falar sim
para si mesmo
mesmo que cale
o sim do outro
alimentar o mim
com mais do mesmo
mesmo que engula
o mim do outro
a única partilha irrestrita
é o egoísmo
cimento do mundo
fundação
do poço sem fundo
que construímos
verte água a alguns
nada aos nenhuns
cada tijolo posto
tem gosto
de virar o rosto
pro lado de fora
feche a janela
está na hora
da novela
*
editorial
é improvável não perceber a fome
ela invade qualquer olhar
ela morde ainda no ar
a menor possibilidade de comer
e come a distância até quem
almoça e janta
é estranho não se atentar ao preço
porque muitos compram
outros vendem o que é caro
e tudo o que precisamos
é tão caro a nós
que a única solução
é se tornar impreciso
é impossível não sentir a morte
porque debaixo do sol
que ilumina esta terra
ela é a sombra do povo
inextricável dos seus calcanhares
ela é o item mais barato
da cesta básica
e há um ou mais mortos
sentados à mesa
em todas as refeições
não ver é uma escolha
uma escolha muito difícil
difícil pra quem tem fome
difícil pra quem paga o preço
difícil pra quem morre
*
dia do fico
até o cume da culpa
pisa-se nos corpos
dos que padeceram
pelo caminho
para quê?
vencido o risco
fincar uma bandeira
com um nome escrito?
registrar a passagem
do rito?
a culpa é real
como o pico
sólida
como o pico
alucinógena
feito o pico
por isso
me desculpem
os culpados
mas anuncio
o dia do fico
e a culpa
não escalo
calo o bico
num desvio
ou atalho
saio do outro lado
*
pièce de résistance
só, não sou
só sou em função do outro
coisas podem parecer
não depender de nada para ser
uma pedra, uma poça d’água
mas até a pedra
se só houvesse a pedra
não seria pedra
não haveria a necessidade de ser pedra
a pedra só é pedra
por não poder ser
todo o resto que não é pedra
então o que sou?
para quase todas as pessoas do mundo
o que aumenta o peso desse meu eu
sou nada
para algumas tantas pessoas
fui durante um tempo qualquer coisa
hoje sou completo esquecimento
para outros sou uma ou duas palavras
no máximo uma ou duas linhas
mas para poucas pessoas
sou muito e tanto
que vivo
sou filho dos meus pais
e só filho dos meus pais
e sou pai dos meus filhos
e só pai dos meus filhos
para minha filha de três anos
sou uma lista infinita de personagens
quando ela está grudada em minha perna
e um relógio quebrado
ou um século passado
na hora da bronca
em relação ao meu filho de três dias
nem eu nem ele já sabemos o que sou
mas quando o seguro no colo sou o bastante
posso até ser Deus
ou algo parecido
se alguém me ama
e onde dois ou três estiverem reunidos
em meu nome, eu estarei ali
mas posso ser o médico e o monstro
na mesma sala
cada pessoa que se vai
sem me conhecer
leva consigo
pequena chance perdida
de aumentar a minha existência
que cessem as guerras, os assassinatos!
ainda tenho versos não lidos
pois não seria a poesia
e todas as invenções humanas
resistência contra o desaparecimento?
*
por una cabeza
sexta-feira, com dor de garganta
fui à médica
a doutora, olhando pra dentro de mim
você tem uma placa aqui
e está bastante congestionado
me passou uma longa receita
de spray, xarope e comprimidos
me conheço
passei reto pela farmácia
a placa é sem retorno
num sentido, o remédio
é engolir os sapos
mesmo que doa
noutro, engarrafamentos
são normais
vai chegando o fim de semana
todas as palavras querem
descer o trecho
pra se espraiar no papel
e isso
nem por una cabeza se resolve