Cinco poemas de Carlos Orfeu
Carlos Orfeu, nasceu em Queimados, Baixada Fluminense. É autor de invisíveis cotidianos e nervura ambos pela editora Patuá. Ramagem Pulmonar, Editora Primata.
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dorme como a chuva
você sentada no escuro mastiga com os olhos
os ossos da pálida luz: the queen is dead a canção
do the smiths ressoa em nosso corpo nu na sombra
seu hálito atravessa as partículas de poeira do
espaço: o lençol amarelo: encardido como os cílios
caem feito folhas de uma velha árvore: caem
dos seus olhos: caem os cílios essas aves muito
pequenas: você flácida com a cicatriz visível
sentada no escuro que nos envolve: cascas do teto
se misturam com os nossos cabelos: se misturam
com a cor negra de nossos corpos: agora chove
um pouco do céu tom metálico: cada gota fria
que cai pela fenda do teto estilhaça no lado
esquerdo do seu seio com o bico luzente e
leitoso: você pensa em tanta coisa depois
levemente dorme como a chuva dorme no
útero de uma romã abandonada no quintal
*
pétala
a pétala vermelha e suja na lama
metálica da manhã: devagar a frágil luz
enovela o vermelho da pétala: faz dela
um coágulo aceso no chão úmido
faz dela uma gengiva opaca de formiga
rindo no fundo das entranhas da relva
no fundo da névoa: dissolvem-se os
cavalos ferozes: a carroça: as mãos
dos homens estraçalhadas de suor
*
enquanto passo o café
vai recordando aquele poema de Raymond Carver enquanto
passo o café fresquinho: sim acenda um cigarro e divida comigo
divida a mesma fumaça: lá fora alguém chama outro corpo
para dentro da voz: escute: o café está quase pronto: sim:
onde estávamos acho que nos perdemos um pouco: lembrei
de seu rosto dizendo sobre os olhos dobrados de seu pai num lenço
azul bem gasto: os olhos castanhos de seu pai: vejo neles uma
lágrima endurecida: no lenço azul que não é seu mas sim
de seu pai-fóssil: de seu pai vento: vai recordando as mãos
calejadas de seu pai refletindo nas suas mãos ainda jovens porém
fodidas de tanto trabalhar na fábrica de tanto cloro: de tanto calo
dia a dia: vai recordando devagar e beba o café: não demore porque
esfria: sim: acenda outro cigarro o tempo não é longo mas cabe nossa
saliva cabe uma tonelada da nossa voz: nosso remorso moído feito vidro
em nossos ígneos gestos: estamos tristes: vai recordando o que agora
de fato esquecemos: talvez nem eu nem você saberemos
*
em seus poros
suas mãos são ilhas de carne
afagam o espelho de guelras
uma saúva se move por dentro
do seu suor nessa manhã mineral
onde os baobás mastigam
o vento com veias erguidas
à beira do rio prateado de sol
sua boca faz um parto de canção
ora yê yê ô
odoyá odoyá
as roupas batem nas
cicatrizes das pedras
o sol repousa
em seus poros
gira no chão
luz e sombras
*
com dylan aceso nos tímpanos
:entre os dentes do rádio faminto
não sabemos o quanto dessa fome
nos atravessa: flor eletromagnética
flor sobre a velha mesa toda ferrada
how many roads a man walk down
esgoela dylan enquanto espancamos
nos lábios o cigarro sarnento: o sol
bate com a violência de um touro
em nosso rosto: esgoela dylan
the answer is blowin `in the wind
entre heróis vencidos e comuns
mas em pé com pássaros nas feridas
mais um dia de cão surrado com
dylan aceso nos tímpanos