Cinco poemas de Daniel Gil
Daniel Gil é poeta e ensaísta. Autor, entre outros, de O amor curvo (Oito e Meio, 2018); organizou recentemente livro póstumo de Vinicius de Moraes, Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2018). É secretário executivo da UFRJ, onde conclui o doutorado em literatura brasileira; foi músico da Companhia Folclórica do Rio e atua eventualmente em pesquisas editoriais. Poemas do autor podem ser encontrados no site Daniel Gil.
***
E
Eu te amo com espanto
E solidão.
Com as lâmpadas oblíquas
Do céu fechado
Da roupa esgarçada
Do incrédulo que reza
E não sabe.
Amo como um troglodita
E não te digo
O amor curvo
Feito criança com medo.
Mas esse meu amor
É mais bonito que a água
É simples como um tropeço
É maior que o tempo
Esse adivinho espantado
Ensimesmado.
Eu te amo como quem
Já não acreditava.
Juro.
*
G
O amor perpassa o policarbonato
A matéria magnética dos discos
Kubricks, polanskis, a anteposta luz
Ainda a desvelar. Seus dentes místicos
Incidem sobre cordas, pregadores
As roupas gotejantes da semana
A máquina, a memória (tudo gira
E se desbasta, mas o amor acorda
As cortinas). O vidro se trepida.
Chaves, página, tábua de cortar.
O amor combina as borras do café
Imbica a direção dos passos, vai
Sem destino imediato. Não colide
O espelho, a reflexão, os Four Quartets
O elétrico aparelho de afeitar
Na pia (em nada se depara, o amor
Renasce de si mesmo, sucessivo
Sem tributos à morte). Seus anéis
Tintinam o interior impermeável
As realizações. O amor se lança
Ao termostato, às linhas de drenagem
Acondiciona serpentinamente
As paredes, o jeans na maçaneta.
Súbito sobressai das luvas de
Boxe, da vida oculta dos cabides
Do juramento inabalável (dentro
Da vibração do dia, sempiterno
Emenda sonho e vigilância). Tufa
Os travesseiros. O edredom intui
Adivinha sua própria gramatura
À investida do amor. É ele! o sopro
O movimento que repousa
Em mim, em ti, Amor da minha vida.
*
O
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer
Adélia Prado.
Doce asfalto onde pisa meu instante
Esse instante onde piso e o outro adiante
Doce lume, disperso e prisioneiro
Mais duradouro que o maior isqueiro
Baba de uma doçura tão distante
Que do mar a ela cabe o rio inteiro
Ciscos em meu espaço, cheiro
Do mundo e música perseverante —
Da ausência, da saudade, da lonjura
Essa presença apetecível
Mas nunca de matéria que não dura —
Te amo com a memória, imperecível.
*
V
Sono: duas
Borboletas pousadas
Em teu rosto.
Suas asas
Se acalmam desaceleradamente.
*
Z
Ao crestar o céu
A noite se alastra:
Tudo é substituído…
O sol verde das folhas pela paúra dos troncos
O barulho das borboletas pelo silêncio dos uivos
A sombra pelo vulto
A dor pelo sono. Cai
A cor do chão, laminada sob a lua.
Mas o mar, não.
Tudo é substituído menos
O mar, que morre.
Que desenha o nada
Entre a espuma e a espátula
Do horizonte:
O aposento de um filho perdido
É seu lugar vazio deitado
Na noite.