Cinco poemas de Gabriela Pacheco
Gabi Pacheco (@gabiepaaa) nasceu na rua estrela, no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1999. Se graduou em Japanese Language and Culture pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio (東京外国語大学). Hoje, espera a graduação de seu diploma Brasileiro enquanto participa de oficinas de poesia, pinta telas assombradas, tira fotos borradas e tenta a vida de produtora cultural. Seu zine quando a festa acaba (2023) foi sua primeira publicação, artesanal e de tiragem limitada.
***
não posso continuar tenho que continuar
quando sinto a vida epecialmente dura ou humilhante
lembro da australopithecus dinkisnesh e seu bando vagando às cegas o chifre da Àfrica a areia fina
debaixo das unhas as dores de dente os quatro sisos rasgando gengiva
a areia fina
o deserto escaldante
farejando pelo rio Awash algum filhote de elefante ou um peixe para tirar
escama com os dentes
penso nos homo sapiens no rio Yangtzé uma vida inteira com o corpo em meia a lua
sob o sol
os pés mergulhados nos arroizais
penso em outros humanos já um frio impossível talvez 1000 de nós restava e seguiam
circunspectos
atravessando o estreito atravessando pelas beiradas tateando o novo continente avançando
atrás da vida e de toda a floresta
os pés como a própria morada
os pés sempre pra frente
e penso também na bisavó catarina. quando seu pai morreu e ela ainda uma [adolescente
tendo que tomar as rédeas de tudo e de todos e tantos e tantos filhos depois
o que eles pensavam do futuro. não sei se pensavam do futuro. não pensavam nada do [futuro.
mas se eu pudesse pensar que no meu rosto há o que alguém amou por milhares e milhares [de anos
por entre milhões e milhões de mamíferos apaixonados
*
limpando o fim da festa
fiquei muito deprimida quando soube que mark fisher se suicidou em 2017
em 2017 eu fechava o meu ciclo numerológico estava me formando no ensino [médio
meu ano 9
esbarrar por acaso com a felicidade era um sabor muito novo eu
fico imaginando mark na cidade mais terrível e neoliberal européia londres
isolado e triste triste triste imaginando zumbis que sempre voltam e empregos que [nunca
chegam
acho que é como a poeta disse esse mundo foi muito porcamente feito ou melhor
foi muito mal construído
esse mundo parece o rio de janeiro
e o rio de janeiro vive em uma febre constante o rio de janeiro vive com tosse
todos sabem que o rio de janeiro foi avançando contra a natureza uma luta pele
[na pele aterrar praias e
mangues arrasar os morros e as florestas drenar os pântanos
e é meio assim como a vida agora funciona em três meses sete e terras e meias são consumidas
sei que tudo está difícil este novo século xxi cada vez mais estéril
que nos piores momentos nos fazem acreditar que há mais ruído que silêncio que [abundância
não pertence às grandes zonas de sacrifício do sul global
esse grande aterro humano
que o trabalho é uma benção engrandecedora e não uma tortura
sei que a cada ano que passa um grupo específico de idiotas quer manipular o mercado
e precarizar ainda mais empregos já precarizados
e que o número de bilionários aumenta e esse número de super ricos deve de toda [forma estar ligado a extrema direita subindo ao poder
ratazanas que nunca sumiram só estavam esperando em seus bueiros mas olha
nasa descobriu um país perfeito para vida humana
onde é possível mergulhar em águas salgadas e depois tomar cerveja gelada e se chama
planeta terra
eu confesso mark ter nascido nesse capitalismo fim de festa
é realmente horrível eu sempre penso nos sem rosto da viagem de chihiro vomitando
tudo o que devoraram com tanta avareza sem propósito
olha mark eu te compartilho a raiva na vida em que eu nasci estou condenada a [compartilhar
a raiva
acho que os nefastos ainda amanhecerão presos pelo calcanhares
cada filho da puta
acordando de cabeça pra baixo
mas por enquanto
por enquanto posso ficar te contando como a noção de humanidade poderia não vir da guerra e da conquista e do estupro mas dos nossos ancestrais verdadeiramente mais próximos os bonobos
que diferentes do chimpazés são dóceis
se organizam em sociedades pacíficas e geralmente resolvem conflitos através do sexo
por enquanto posso te falar que para mim é muito óbvio a depressão e a solidão serem as doenças do capitalismo mas também só sobrevivemos como espécie porque aprendemos a
diferenciar o rosto das pessoas
nós, animais tão sociáveis
por enquanto posso falar que o mundo é terrível e eu queria mesmo era esta à altura disso tudo
que meu pai disse chutando por baixo caberia umas 20 bilhões de pessoas no mundo
que a gente pode continuar fazendo o que sempre nos restou: o impossível
*
de quem espera você voltar
derrame agora todo o leite no chão
agora sim
você pode me jogar aos leões
o que deixa um amargo na sua boca?
onde você estava ontem à noite?
quando você teima
quando eu digo eu te amo
quando mel e leite choverem de uma nuvem branca
quando raspo uma lapa de pele das canelas e o sangue escorre pelos calcanhares
(que o amargo da cachaça poderia
ser o amargo do nilo
que arrependimento é também nome de um rio)
diga o seu anél na minha língua
quando eu
diga
é assim que se faz, é assim
disse quem se deita com um filho de Allah para sempre retorna pros seus reinos de abundância pele de carneiro
rindo
disse
que desossar uma cabra era trabalho fácil difícil mesmo era a maciez da carne as [mulheres da família sempre davam um jeito
que mais perto do osso mais suculento
respondo que machos em briga miram nos testículos
que guanacos mirando os testículos do inimigo com os dentes
no cio e cuspindo
eu digo a barriga de um pato cinza no lago a barriga de um pato cinza no inverno
não entram na água
está gelada demais só ficam
na borda molhando de vez em quando os pézinhos
uma carta de amor não enviada 3500 anos atrás
na cidade empoeirada de tebas alguém cantando sua voz um romã e nunca hei de passar fome ou sede
tudo assim ainda muito antes do antigo
a garganta já arranhou tanto
o amor minguando. o útero seco.
eu não conseguiria pôr no estômago e dentro do estômago
é muito sensível. meu segundo cérebro. os egípcios já sabiam.
eu estava tirando os meus pelos me despindo do seu cheiro de dinheiro molhado
era isso tudo entre nós
todos meus aquedutos
todos os meus túneis e aquedutos
e se tubulações
se serpentes
se sonham o cheiro dos sapos
afastar crocodilos como ratos não deitar na boca do crocodilo não se espreguiçar na boca do
crocodilo
os chacais me esperando onde deságua o rio
obediência, mas estende a tua mão e fere tudo o que ele tem e com certeza ele lhe almadiçoará
em tua face
estende a tua mão
toca-lhe nos ossos e na carne
é que você tem que entender você não entende
todas as roupas que visto são para você tirar
e sendo nós frutas da mesma árvore
pedras do mesmo rio
espero eu o quanto quiser
cada pelo meu já foi lambido pela fúria
continuo sendo a única filha da ira boiando em seu útero
de napalm
obediência. viúva de vivos. tenho coragem para bençãos insuportáveis.
*
proibido se humilhar
o meu corpo pertence
a uma mulher que se disfarça de mulher
e que por estar mulher pensa toda hora trepar como puta
na cabeça: quem é essa puta?
o suor era um bom sinal
era também mágoa, angústia abocanha
mete uma lambida bem molhada bem na minha bochecha
o suor dessa transa me persegue como uma canção de fossa
estar menina
eu calada. você elogiando minha boca. eu
calada assim não me salvo
a imundície em mim ronronou quando viu a imundície em você
não é o meu tipo de homem é o meu tédio
talvez o meu tipo de mulher esteja no suor da virilha eu reconheço pelo feromônio
e estar mulher
espera, deixa eu ajeitar os cotovelos joelhos a cama esse colchão é muito fino
Warsan disse uma vez que o corpo é como uma casa e
quantas vezes não li sobre
o quarto da vergonha como uma janelinha basculante dando para dispensa ou quarto de empregada culpa burguesa dentro do corpo ou até as portas emperradas o corpo
que é casa mal-assombrado um casarão decrépito você pode amar muito alguém mas há portas dentro de ti que nem você sabe onde estão as chaves como
você não vai entrar por aqui
vai ficar me olhando do seu corpo pelas janela eu vou olhar de volta mas aqui
não vai entrar aqui
isso são outras falando
estar mulher é tirar o sinal de vida dos objetos, vigiar as manchas
torcer panos tirar o grosso da poeira a poeira devia ser um estado químico por si só
gasoso sólido líquido e poeira
estar mulher é ficar limpando a poeira dos vivos
poeira rosna
vou te falar Warsan
cada corpo é um mar
é uma casa sendo enchida d’água talvez podre de infiltrações ou
como as enchentes do rio
algumas pessoas são água até os joelhos
e outras estreitos sufocadas por corpos de terra
você que viveu 23 anos em um país sem litoral nem sabia o quão salgado podia ser a água
como ela vai invadindo as fissuras do corpo sem pedir permissão
seus outros 4 em uma ilha sem praias aquela areia preta proibido tatuagens álcool música drogas
suas placas tectônicas não se roçam não criam muitas ondas
conheço esse mar
e você conhece esse aqui
um mar escuro escuro turvo e encrespado
levanta mais esse quadril tem que usar a força das coxas se manter empinada na cama
você ainda parecendo você
um ângulo inumano
e mesmo assim
sou a mulher que eu sou olhando pela fechadura a mulher dentro de mim olhando pela fechadura o homem dentro de mim olhando pela fechadura a mulher dentro de mim dentro de mim
na cabeça: quem é essa puta?
toda puta um tsunami
sendo águas salgadas que os rios deságuam porque eu sei
vibra um pouco o meu desejo encharcando
enchente rosna
não vou me afogar
porque o que uma puta diz? morder forte é o que diz
você não me deixa saber se estou nua ou pelada
me expliquem
expliquem pro homenzinho dentro de mim
desentupir o ralo e abrir a torneira
pensa que vai escapar pensa que não vai se afogar um tsunami não vem como uma grande onda
mas como uma enchente inesgotável
e você pode até pensar que o antônimo de mar é a secura mas são
fantasmas
e que não é porque te assombro que te desejo
porque eu sei o que você quer
eu, nesse quarto
criando a sua dor na mesma velocidade da minha
*
todo dia [estar vivo nesse mundo é coisa seríssima]
acordar quando possível
fazer os cabelos crescerem
escapar de samsara
lavar toda a louça da casa passar pano nas beiradas
assistir no silêncio dentro da própria cabeça o vão entre eu e eu
tirar o pó
alimentar o basilisco
crescer cabelo crescer ossos crescer unhas
20g de escitalopram
mesmo depois de conviver com a dor não entendo a dor
e ainda assim
hoje a manhã tão fresca