Cinco poemas de Mariana Queiroz
Mariana Queiroz, mato-grossense, de Cuiabá, 34 anos. Atualmente mora em Florianópolis, SC. Carregou o cerrado na pele terrosa pra perto do mar ventoso do Sul. Coleciona livros não publicados, mas há chances que um deles venha ao mundo em breve. Trabalha como psicanalista e psicóloga nas políticas de Assistência Social na região metropolitana.
***
para gestar um passo
alimentar suas minúcias
nutrir de minerais
os movimentos
atravessar
deslocar
o corpo:
as pipas do estômago
os postes de luz
as encruzilhadas
os rios subterrâneos
deslocar as escápulas
os ísquios
as retinas
gestar o passo
e pari-lo
pela garganta
*
caixa torácica
no peito, sete corações
comprimem as costelas
falta-me pulmão para tantas trocas gasosas
tubulações subterrâneas bombeiam cardumes
amores emaranhados, pilhas de contas, andanças, bigornas de passado
diante daqueles
olhos
ferveram os rios
subcutâneos
– pelas veias as letras do seu nome navegam as águas caudalosas –
quase me
explode
a caixa torácica
no peito, sete corações
mares de sangue arrebatam os becos sem saída
navegantes me engasgam
a garganta
seria
a língua
uma ponte
sob Baía de Guanabara?
– entre os nossos dialetos –
ligando
a boca
ao sexo?
lâamina
afiada
de navalha?
no peito, sete corações
um arranha céu me atravessa o
crânio
calçadas largas acolhem passantes
todos furam o sinal quando possível
navegantes me engasgam
a garganta
nos olhos denúuncias de tempestades
respiro como quem carrega
abaixo dos seios
um submundo
*
mobília
não cessa
este arrastar de móveis
já tiraram a geladeira da cozinha
umas quinze vezes!
ela se equilibra
nas escadas
parece que algo irá desabar
sobre meus quadris e joelhos
ateei fogo em um sofá velho esburacado
comido de cupins
e vejam só!
fantasmagórico apareceu
soltando seus fiapos
em cima da cama
não cessa
este arrastar de móveis
entalou entre as costelas
um guarda roupa
quando tusso
abrem as portas
batendo no esterno
a vigilância sanitária
já notificou:
risco de rachaduras
permanentes no peito
sei que preciso
de uma nova estante
para os livros
que seguem se amuntoando pelas partes
moles do meu corpo
esse fogão enferrujado
suja as unhas
os dentes
as solas dos pés
encracaquelado
me lembra da coleção de
podridões ao redor
das mesas de reuniões
não cessa este arrastar de móveis
fico confusa
a casa balança
tropeço em uma pia
em baús
e quinquilharias
perdi o despertador
coberta com folhas rabiscadas
pareceram por demais pesadas
para a entrada do verão
troquei pelas páginas dos
textos inacabados
descobri a ingenuidade
(minha)
em tudo pesa este silêncio de cicuta
guardado no pote de talheres
que se alojou na jugular
não cessa
este arrastar de móveis
convivo com um ruído gástrico
ácido
não há potes de joias
nada de visivelmente valioso
o problema não é arranhar o piso
mas resolverem
amolar as facas
guardei -as em um baú
enferrujadas e sujas de sangue
o perigo
é abrirem o armário de produtos de limpeza
e acharem uma caixa de Pandora
é do forno
saírem palavras ainda vivas e proibidas
é quebrarem os pratos
e eu não ter mais como
disfarçar
perigo
maior perigo
é abrirem um dos meus
cômodos
quem sabe as minhas pernas
é se abrirem em eco
as portas dos hospícios
e sair disso que chamam
casa
um bafo quente
e seres falantes de outras línguas
eu ali
descabelada
agarrada aos textos
parindo grunhidos
sem saber
como dispor
corretamente
sobre este lugar
que chamam de lar
*
jogo de tabuleiro
falar sabendo
que a vida está
em jogo
falar sabendo
das vidas
que estão pra jogo
falar sabendo
– muito bem –
que jogam com
as nossas vidas
falar
é desobedecer
as regras do jogo
falar
palavra
com peso para
derrubar as peças
e quebrar o tabuleiro
*
partidas se anunciam desde o céu
passar pela terceira vez na mesma rua
amanhã isso não será possível
estarei caminhando por outras ruas
estas já tão familiares que seus trechos estão decodificados
na sola dos pés
outras ruas também me anunciam partidas
despedir-se é ato longo
o aceno de mão e abraço
são só os 3 primeiros segundos
estou me despedindo de uma
infinidade de coisas
há um pouco mais de 33 anos
emendo
remendo
as partidas de outrem
as minhas próprias
nunca saio ilesa das ruas
da raridade breve dos encontros
do desfazer dos braços nos terminais
do assombro com meu próprio corpo
de um certo olhar de um certo alguém
jamais ilesa
depois de dançar pelas esquinas das cidades
depois do risco
de se lançar
como foguetes
jamais ilesa
depois de partir,
e partir de novo
e de novo
às vezes no estrondo
às vezes com a sorte
de um pequeno aviso no céu
(Foto de Capa: Osiris Duarte).