Cinco poemas de Natasha Tinet
Natasha Tinet (1988) é poeta e artista visual. Nasceu em Palmeira dos Índios, Alagoas, e mora em Curitiba desde 2014. Integra a grupa Membrana literária e coedita a Totem & Pagu Firrrma de poesia. Seu livro de estreia, Veludo Violento (2018), recebeu o segundo lugar no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional 2019 na categoria poesia. Também publicou a plaquete Silêncio Bergman (Editora Primata) e o livro Uma alegria difícil (Kotter Editorial) ambos de poesia.
Os poemas abaixam integram o livro Uma alegria difícil.
***
Marguerite
Enfim desejei O amante como se deseja
um livro amado em pé na livraria
quando queria mesmo tê-lo na cama
despido e devorado até o sono chegar.
Sou a menina branca com vestido surrado
sou a imagem jamais fotografada
o milionário chinês trêmulo, a mãe
que lava a casa com sabão de marselha
sou o irmãozinho morto e o irmão ladrão
todos eles, devastados pelas palavras
de um rio cambojano e pelo bafo caramelo
do clima ardente de Saigon.
Sabe, Marguerite,
também cresci numa terra de calorosa monotonia
tinha o corpo magro tal qual monocultura de cana
me faltaram nutrientes de mulher e mesmo assim
tive amantes imaturos que eu beijava com lábios
secos de batom velho, batom escuro encontrado
no ventre do guarda-roupa materno
ao lado de roupas de uma antiga prosperidade
eu tinha a beleza anêmica de um molusco exótico
com anseios e desesperos bem escondidos
por uma concha grossa de segredos.
Amei sem aceitar que merecia ser amada
escrevi acreditando que escrevia para nada
muito cedo em minha vida ficou tarde demais
e eu quis deixar o carteado sobre a mesa
e me jogar do navio, tantas vezes, tantas vozes
me calaram em uma catatonia de impossibilidades
até que eu descobrisse o silêncio da minha própria voz
como o respiro diante de uma nova jornada.
Marguerite, antes tarde do que mais tarde
te encontrei com olhos de recém nascida
que se abriram no momento exato
de um encontro há muito tempo já marcado.
*
Pedaços
no nordeste da Etiópia
arqueólogos se ajoelham sobre um
vasto véu de lascas obsidianas
pincelam a areia buscando
resquícios dos nossos primeiros
ancestrais, fragmentos de ossos
revestidos em areia vulcânica
que as hienas falharam em devorar
não é preciso escavar tão fundo
para encontrá-los, difícil mesmo
é saber a qual parte do corpo
pertence cada pedaço perdido
os braços da Vênus de Milo
ninguém sabe onde foram parar
encontraram apenas uma mão
decepada, a palma virada
oferecendo uma maçã
suas cores berrantes desbotaram
os penduricalhos despencaram
foram a terra e o tempo
que fizeram das estátuas gregas
símbolos de elegância e classe
um desses tantos casos
em que a decadência caiu bem.
*
Mãe
Para Fernanda
A pele viscosa de marisco contra a correnteza
de umbigos, pernas ásperas, suores salobres
hálitos embriagados pela urgência de cervejas
mulheres de biquínis molhados sob as roupas
coçam discretamente suas virilhas e vulvas
sonham morar com vista pro mar, cooper toda a manhã
a maresia corroendo os eletrodomésticos seria a grande tragédia
do horário nobre, assim que o ônibus lotado desvia do cartão postal,
os intervalos comerciais as trazem à realidade, a cada curva
sua mão aperta meus dedos contra a barra de alumínio,
faço biquinho, peço socorro, quero voltar ao mar
onde me perco e me confundo com outros banhistas
e seus olhos anseiam por mim
ela me ama como perda,
não para de apertar minhas mãos entre as suas
mesmo em casa, quando me ensina a expulsar o sal da cabeça
esfregando shampoo de babosa debaixo do chuveiro, alguns fios
se despedem pelo ralo, não umedecerão o travesseiro, não
receberão o sermão: “não deite de cabelo molhado”.
ela me ama como doença crônica
ela me ama como peso de porta: eu
uma tartaruga marinha encalhada
engasgada com uma lista de compras.
*
Midas
Para Philip Glass,
Glória Anzaldúa,
Scholastik Mukasonga
e Nick Cave
O som dos seus dedos cristalizam meus pensamentos
entorpecem as horas, as letras levitam sobre a pauta cinza
olhe pra mim agora, sou um monumento
tal qual Anzaldúa, profetisa que escreve com os ouvidos
na fronteira do sono, minhas mãos estão gravadas no interior
de uma caverna pré-histórica, meus pés enxergam no escuro
sem exorcismos, escrevo com a tinta dos meus fantasmas
olhe pra mim agora, o mal mora em mim também
essa loucura de criança que me acompanha, júbilo e destruição
uma melodia minimalista que me agiganta diante da tela branca
olhe pra mim agora, tão grandiosa que ninguém consegue me ver.
*
A roupa íntima das laranjas
lavo minhas calcinhas no chuveiro
na minha família era assim
cada um cuidava de sua roupa íntima
era inconcebível outra pessoa lavar
mesmo que do mesmo núcleo familiar
essa era a preservação máxima da intimidade
que se revelava apenas no quintal
onde descansavam no varal
calcinhas e cuecas que mesmo lavadas
e esfregadas com convicção
ainda denunciavam a ação do tempo
e o calor do uso
fundos amarelados
pequenos furos,
elásticos esgarçados
manchas acidentais de sangue
secando ao lado de outras mais novas
imagina, minha filha,
ser atropelada com calcinha degradada
a intimidade uma fratura exposta na avenida
assim pra quem quiser ver
tem coisas e pessoas que não podemos
conhecer assim tão intimamente
muito difícil atravessar o tecido da pele
mas sempre fui curiosa
facilmente atraída pelo mistério
por mãos habilidosas em criar beleza
apreciava minha mãe despindo laranjas
a roupa verde cedendo ao giro contínuo
a espiral perfeita estendida,
a faca deslizando como um carinho
deixando intacto o tecido alvo
ela reparte a laranja pela metade
e me entrega no prato
absorvo o sabor,
sinto a pelinha fina entre os dentes
e quando a fruta seca seu interior
não sei se também devo comer
a roupa íntima da laranja.