Cinco poemas de Samantha Abreu
Samantha Abreu (Londrina, 1980) é professora e pesquisadora da literatura. Já foi publicada em sites, revistas e teve textos adaptados para o teatro. Participa e produz eventos e projetos literários. Lançou os livros Fantasias para quando vier a chuva (Orpheu, 2011); Mulheres sob Descontrole (Atrito Arte, 2015); A pequena mão da criança morta (Penalux, 2018); e tem dois livros no prelo. Integra as antologias O Fio de Ariadne (Atrito Arte, 2014); 29 de Abril: o verso da violência (Patuá, 2015); e Sob a pele da língua (Cintra, 2019) junto com autores contemporâneos de todo o país. Faz parte do Coletivo VERSA, que divulga, organiza e dialoga com a escrita de autoras londrinenses.
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Manual para ser espectro
I
Sentar-se na frente do espelho e rasgar os poros com longas unhas,
espalhar o sangue
que escorre.
Erguer as têmporas em direção ao sol,
então fechar os olhos no silêncio honroso da graça,
o milagre
do corpo que se integra: de si mesmo
em si mesmo
pois em si mesmo uma
reciclagem,
autofagia da carne sendo engolida pelas cavidades de onde levantam os pelos.
Sentir calafrio, suor e,
finalmente,
desistir de resistir ao gozo.
*
Babilônia
Estou na casa do sempre
quando abres teu peito e crias imagens que reconheço profanas
desde tempos
atrás, o tempo do retrovisor, um pretérito,
outras formas de vida, suor,
uma arfada,
gametas e cigarros,
de memórias hieroglifas,
dos símbolos: uma palavra é desenho com som.
Agora faz de conta que somos fluentes; que deciframos
a linguagem das caixas torácicas. Faz de conta
que já pronunciamos todas as
falas que dominam os gestos; que já percorremos
todos os traços feitos por meus dedos em teu corpo.
Depois saltamos – juntos e destemidos –
na grande fornalha de fogo
que é teu coração-babilônia pulsando exposto.
*
Uma palavra nunca é a coisa antes dela
Eu preciso falar do meu ódio, mas a palavra ódio não consegue falar do que sinto. Também quando sinto dor, ao dizer que dói nunca confesso exatamente a dor que tenho.
Uma vez, depois de estranhar e se assustar com algo, minha mãe disse que ficou abismada. Aí eu imaginei dentro dela um buraco fundo, infinitamente fundo, e muito escuro. Tanto que se ela abafasse um grito, seu corpo todo vibraria com os ecos do grito virado para o lado de dentro.
Mas não era isso. Ela estava abismada mas não se referia a um abismo dentro de si mesma.
Então entendi que existe uma coisa antes da palavra ser palavra, uma imagem que tenta – mas não pode – encontrar escoamento nos acordos que criamos.
Uma palavra nunca é a coisa que nasceu antes dela.
Por isso a poesia: algo como fazer alguém entender o quanto de sexo contenho quando uso a língua pra dizer que amo.
*
De esplendor e asas
A profunda letargia de um corpo entre carros,
entre caos.
Toda a apatia das mulheres cansadas nasce
do peso das asas.
É quando planam silenciosas,
com seus olhares pra dentro de si.
Um desejo de morte leve, lenta. Algo de beleza.
A letargia de um rosto afundado
na desordem natural dos ovários, um período
pré-histórico, ancestral
um cântico de renascimento.
É quando, de novo,
as asas se abrem sobre os homens.
E o esplendor cega as grandes ordens do dia.
*
Um desejo latejando na córnea
Uma vontade não é reprimida na ausência.
O desejo de outro desejo, uma faculdade do querer,
uma cisma.
Teimar em fisgar o oxigênio nas trompas,
até sentir o ar alcançando as amígdalas
liquefação
explodindo nas córneas.
Arranhar as paredes da casa com os dentes,
gritar socorro entre os buracos dos tijolos que agora se mostram,
querer diluir o corpo e sumir entre o concreto, assim
feito massa corrida: lisa, fina e confortável.