Cinco poemas de Tarso de Melo
Tarso de Melo (Santo André, 1976) é autor de diversos livros de poemas. Os seis primeiros estão reunidos em Poemas 1999-2014 (2015). Lançou também Íntimo desabrigo (2017) e, em parceria com Carlos Augusto Lima, Dois mil e quatro quilômetros, aqui (2018). É colunista do site da revista Cult, advogado e doutor em Filosofia do Direito pela USP.
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por que
retrair-se à agenda alheia — desistir
dos cinco sentidos — por que o relógio,
as distâncias que cria, o mover-se
a sua sombra — por que as chaves
giradas, o diário trancar-se com a família
— por que a gravata, esperar o fim do dia,
dos dias — por que o espelho, o asseio,
a rotina dos sapatos — por que as senhas,
os códigos, os telefones de emergência,
endereços — por que os passos, os prazos
exíguos, as datas consumidas
como aspirinas
[de Carbono, 2002]
*
azul
estranhos, percebo, nossos dias
tempo de fingir que não, que sim
tempo de cadeados em latas de lixo
lanças nos muros, nas praças, na boca
bombas lacrimogêneas, gritos, despejos
tempo de grades na alma e nas janelas
tempo de falar de futuro nos bancos
tempo de não falar do passado
tempo de arder tudo que vai
entre a lua e este pedaço de carne
[de Caderno inquieto, 2012]
*
desajustes
sobre minhas mãos sem calos
a biografia deita como um espelho:
os poetas fizeram mal para mim
alguns cantores me roubaram
todo eixo, todo prumo, todo arrimo
na pele persigo seus versos
certas estrofes que me bateram
e ainda batem como um formão
gravando em mim tantas arestas
e de repente entendo
claro como o sol que me alucina
porque não me encaixo
nem vejo mal nisso
[de Íntimo desabrigo, 2017]
*
digo
e se eu disser
que só o que você
sabe de cor
é que me ajuda
a entender
quem você é
e cada
esquecimento
faz nascer
outro você
e cada
memória nova
dá à luz
um você
que jamais
colocou os pés
aqui
e se o que
eu nunca disse
for exatamente
o que falta
para que você
se complete
e se assim
meu silêncio
roubar de nós
o melhor
que você
poderia ser
[de Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui, 2018]
*
dentro
para o Mario Rui, por nós
sinto o país doer
no ombro esquerdo
a notícia de ontem
pesando ainda
nas pálpebras
quando a de hoje
já se instala incômoda
no centro da testa
e pesa e pulsa
arrasto no pé direito
a ameaça do ministro
e aquela lei nova
castiga a sola do outro pé
como uma pedra intrusa
no macio da palmilha
arquivo injustiças
no hálito que em vão
tento esconder
com os cafés que espantam
as visitas diurnas do sono
acomodo infinitos
pronunciamentos
oficiais entre a nuca
e o travesseiro
e é na madrugada
que eles ardem mais
coleciono mortes
não esclarecidas
no quadril e é mais difícil
a cada manhã
correr dos leões
[inédito em livro]