Cinco textos de Camila de Moura
Camila de Moura nasceu em Brasília, em 1989. É escritora, tradutora e doutoranda em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, com uma pesquisa em torno às antigas Vidas de poetas gregos. Publicou poemas, fotografias e traduções em diversas revistas e suplementos literários impressos e virtuais. Assina as traduções de Dark Deleuze, de Andrew Culp (GLAC Edições, 2020), e Contra a hidra capitalista, do Subcomandante Insurgente Galeano (n-1 Edições, 2021).
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16 de julho de 2020.
Durante anos, usei um mesmo anel de prata no dedo indicador. Ele me fascinava, me protegia, me recordava, ao tocá-lo, de que isto não é o mesmo que um sonho. Mas ele era grande demais, e eu sabia que cedo ou tarde o perderia. Há alguns meses, me dei conta de que ele tinha sumido da minha mão. Passei esse tempo achando que o encontraria ao lavar as cobertas, ou no bolso de alguma jaqueta esquecida, mas não, e fui lentamente me despedindo. Eis que hoje, transplantando um pé de hortelã, ele surge de entre as raízes emaranhadas, onde dormitava sabe lá desde quando, como uma espada, buscando talvez o silêncio mineral de onde veio. E eu já não tenho como saber se isto é ou não é um sonho.
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21 de abril de 2021.
Sonhei que caminhava por uma enorme feira de antiguidades e que, por cinquenta reais, comprava um colchão que havia pertencido a Charles Baudelaire.
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05 de setembro de 2021.
Eu estava sentada numa carteira da Universidade quando entrava na sala a Anne Carson, que chegava para dar aula. A aula era uma espécie de conversa infinita – ela dava o mote e as pessoas conversavam entre si. Muitos dos presentes choravam. Ela então descia do púlpito e passava a caminhar por entre as mesas. Finalmente, sentava-se ao meu lado e começávamos a conversar. Eu lhe contava algumas ideias que tinha a respeito de certo livro dela, e nos dávamos muito bem, e quando eu pegava o celular para ver as horas, eram já duas da manhã. Eu não sabia como sair dali, “devem estar achando que eu morri”, pensava. Então olhava para o chão e via suas botas de caubói vermelhas. Alguém com aquelas botas só podia ter me enfeitiçado.
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16 de setembro de 2021.
Todos os dias, meu gato Nicanor derruba a água do pote. Não importa, obviamente, se acabei de passar duas horas faxinando a cozinha. Chego depois de meia hora e há uma poça enorme com marcas sujas de patas por todos os lados. Antes eu bradava aos céus, ficava zureta toda vez que ele fazia isso. Até que um dia, na calada da noite, resolvi observá-lo. Eis que ele se posiciona ao lado do pote e mergulha uma pata de cada vez na água, e depois esfrega a sua cabecinha meticulosamente e faz sons miúdos como um tigre que se lava. Depois, finalmente, bebe a água lançada ao chão com uma dignidade inesperada, como se passeasse pelas florestas úmidas do Himalaia, ciente de ser ele sob a lua o predador mais belo & forte. Certo, não deixa de ser cansativo ter que passar pano no chão todos os dias, mas, deuses, é impossível brigar com um gato.
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06 de junho de 2022.
Me dei de presente um relógio para poder sair de casa sem o celular. Sempre havia achado relógio um acessório careta, supérfluo. Mas agora que já não há tantos relógios no mundo, bem… talvez eu seja mesmo nostálgica. Também tem o fato de eu ter me surpreendido com um vídeo do Hermeto Pascoal usando um relógio de pulso ao tocar clarinete, e ter ficado pensando longamente nessa relação tão complicada da música com o tempo. Então eu entrei na relojoaria e, enquanto esperava o ajuste da pulseira, percebi que cada relógio ali dentro marcava uma hora diferente – talvez para confundir possíveis ladrões? Não sei de onde tirei essa ideia. Demorei até encontrar o único relógio que marcava a hora certa: 14:03. Mas a luz está tão baixa que já não tenho certeza se essa é mesmo a hora certa, e, atordoada, pago a conta sem verificar o valor. Ao que tudo indica, minha decisão já está surtindo efeito, e eu continuo sem saber que horas são.